O texto externado

Crítica da peça Mulheres sonharam cavalos, de Daniel Veronese, com direção de Ivan Sugahara

26 de dezembro de 2011 Críticas
Foto: Dalton Valério.

Em cartaz no Poeirinha até fevereiro, o espetáculo Mulheres sonharam cavalos dá continuidade à parceria entre a atriz e tradutora Letícia Isnard e o diretor Ivan Sugahara, que em 2011 trouxeram à cena carioca textos contemporâneas de autores argentinos. O primeiro, A estupidez, de Rafael Spregelburd, estreou em abril, com a Cia. Os Dezequilibrados, no CCBB. O segundo é o texto do espetáculo em questão, de Daniel Veronese, encenado por um grupo distinto, que envolve componentes da Cia. e outros atores.

O diálogo entre as dramaturgias se realiza para além das fronteiras da nacionalidade. Existe uma temática que pontua questões parecidas: partindo de um pensamento verticalizado sobre o homem do nosso tempo – e aqui vale ressaltar a dimensão histórica dos textos. Os personagens são lugares de reflexão de uma sociedade cercada por crises sociais, econômicas e políticas. Um desdobramento psicológico dos recentes acontecimentos no território argentino, de onde escrevem os autores. Logo, o “homem do nosso tempo” tem território geográfico definido, porém, as crises pelas quais ele passa não são exclusivas. O homem argentino de nosso tempo tem a qualidade de poder ser expandido para muitos territórios do mundo, mas podemos nos fixar no Brasil.

A escolha pelas dramaturgias dos nossos vizinhos evidencia, talvez, o desejo de falar do homem de uma forma que os contemporâneos brasileiros não estejam priorizando. O homem dos argentinos é estúpido, fracassado, violento, está em processo de desfazimento. O homem de Veronese, como uma característica particular, assume ainda uma atitude animalesca. É o homem sendo desfigurado por causa da falência do sistema. Em A estupidez, isto nos era apresentado como algo risível, cômico. Agora, em Mulheres sonharam cavalos é constrangedor.

Entramos no Poeirinha e o espectador se senta no “lugar que sobrou”, em cadeiras que ficam nas brechas do cenário que é constituído pelos praticáveis do próprio teatro montados em alturas irregulares. Os planos que se formam obrigam os atores a caminharem entre altos e baixos, metáfora dos inconstantes humores de seus personagens e da fragilidade de suas histórias pessoais. No teto, barbantes escurecidos figuram teias/destroços sobre nossas cabeças, que apesar de não provocar uma visualização convincente, são compreensíveis para tentar produzir a atmosfera que foi proposta. Todavia, os praticáveis, e os espaços ocos, visíveis entre suas hastes de sustentação, já passavam a ideia de um “pisar em falso” num lugar de deterioração. Um lugar ruim tanto para homens, quanto para cavalos.

Este espaço é a casa nova de um casal, que recebe os dois irmãos do anfitrião com suas respectivas esposas para jantar e apresentar-lhes a nova moradia. Esta é a base fabular para a exposição do homem como mencionado acima: a violência nas relações familiares e amorosas – e o que fica de corrosão com o passar do tempo. É no espaço mais íntimo de relações que o homem pode manter que é exibida a transição do homem-social para o homem brutalizado, animalesco. Violento por instinto e desprotegido pela ignorância.

O texto de Veronese invoca um tipo muito peculiar de escuta. Os personagens conversam num “falso diálogo”, por isso o espectador deve estar atento ao que está implícito nas falas. Existe um jogo de incomunicabilidade que provoca uma angústia crescente nos personagens até que alguém irrompe com um sincero monólogo-desabafo, que não elimina a pressão psicológica, mas faz recomeçar o jogo. Ao que parece, a proposta de direção de Ivan Sugahara prima por tornar muito esclarecida a estrutura do texto de Veronese. Neste sentido, é uma direção colada ao entendimento do texto, não como uma interpretação ou explicação do mesmo, mas como uma dissecação da dramaturgia. O que pode ser visto em cena é uma sobreposição de referências trazidas do próprio texto pelos artistas envolvidos. Exemplificando: a dimensão animalesca está contida nos figurinos (com destaque para o rabo de cavalo usado por Letícia Isnard) e principalmente nos corpos dos atores, mostrados com muita nitidez nos repetidos pequenos coices dados pelo personagem de José Karini e no erotismo animal da personagem de Letícia Isnard. A violência está presente no treinamento de boxe, nas falsas lutas entre os irmãos, e na maneira seca e ríspida de falar e tratar os outros. Toda esta expansão do texto pelo corpo e voz do ator evidencia o caráter artificial da interpretação. O artificialismo da maneira de fazer é um movimento referencial à artificialidade das relações construídas no texto.

A montagem de Mulheres sonharam cavalos sobrepõe nas diversas demandas artísticas de uma produção teatral a leitura dos elementos mais óbvios, e por isso mesmo sintéticos, da obra. Como se fosse uma colagem de violência e animalidade em todos os recursos utilizados na feitura e encenação da peça. Uma overdose do que, para a direção, não poderia passar despercebido.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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