Autor Renan Ji
A matéria da marginalidade
Lauande Aires assina, dirige e atua na peça O miolo da estória, integrante do Festival Palco Giratório de 2013, promovido pelo SESC. O ator também se responsabiliza pela música, pelo figurino e pela cenografia do espetáculo, incorporando o que parece ser uma dramaturgia de um homem só. Longe de propagar a ideia de que este espetáculo teatral se fez apenas com o esforço de Lauande, gostaria de desenvolver a ideia da concentração, ou ainda da condensação, do fenômeno teatral no corpo de um só homem, de um só personagem, de uma só história. Isso porque o espetáculo parece se estruturar na unicidade do protagonista João, perscrutando as motivações e utopias de um pedreiro / brincante (1) de boi bumbá, na mesma medida em que descortina um universo pessoal, um “miolo” pessoal, o homem João Miolo — sugestivo nome pelo qual o personagem se dá a conhecer.
Cowboys das ruínas
Três homens maltrapilhos vagam com pedaços de madeira abaixo do peito, simulando estarem frente a um balcão do bar. Pedem whisky, no melhor sotaque norte-americano. Eles pensam, trocam olhares, fazem proposições, enquanto circulam pelo palco. Um primeiro sugere uma história, logo rechaçada pelos outros dois. Depois, um deles tem uma ideia aparentemente mirabolante, logo abandonada. Por fim, eis que se chega a algum lugar: um objeto é retirado do lixo e uma história começa.
Metáforas e arestas
A peça Céu sobre chuva ou Botequim, de Gianfrancesco Guarnieri, com direção de Antônio Pedro Borges, teve uma única montagem em 1973, e agora é encenada 40 anos depois, no Centro Cultural dos Correios. A tensão entre duas épocas, dois governos e duas realidades brasileiras não poderia ser maior. As montagens de 1973 e 2013 resistem como peças-irmãs, ligadas a partir de um esforço de reeditar a poética teatral de Guarnieri, porém partilhando de um inequívoco dissenso em face de seus respectivos contextos históricos.
Das (im)possibilidades da tragédia
Pode-se dizer que a tragédia, gênero teatral grego do século V a.C., é para nós um objeto eminentemente literário. De fato, os pesquisadores pouco podem afirmar sobre os festivais teatrais da Atenas de Péricles. Ao fim e ao cabo, permanece apenas o texto preservado ao longo dos séculos, repleto de emanações arcaicas, dotado de uma difusa dramaturgia calcada em intrincada (porém inegável) beleza poética. Resulta disso um desafio para o teatro contemporâneo: como dar vida a deuses e heróis, seres imortalizados e imobilizados não apenas em imagens de imenso peso cultural, mas principalmente em versos poéticos? Como dar vida, enfim, a estátuas de mármore e palavras, a ídolos fora do tempo e do espaço, tanto histórica quanto existencialmente?