A matéria da marginalidade

Crítica da peça O miolo da estória, programação do Festival Palco Giratório

8 de junho de 2013 Críticas
Foto: Paulo Caruá.

Lauande Aires assina, dirige e atua na peça O miolo da estória, integrante do Festival Palco Giratório de 2013, promovido pelo SESC. O ator também se responsabiliza pela música, pelo figurino e pela cenografia do espetáculo, incorporando o que parece ser uma dramaturgia de um homem só. Longe de propagar a ideia de que este espetáculo teatral se fez apenas com o esforço de Lauande, gostaria de desenvolver a ideia da concentração, ou ainda da condensação, do fenômeno teatral no corpo de um só homem, de um só personagem, de uma só história. Isso porque o espetáculo parece se estruturar na unicidade do protagonista João, perscrutando as motivações e utopias de um pedreiro / brincante (1) de boi bumbá, na mesma medida em que descortina um universo pessoal, um “miolo” pessoal, o homem João Miolo — sugestivo nome pelo qual o personagem se dá a conhecer.

Logicamente, como todo trabalho de arte, a condensação que a unicidade parece exigir não propõe a univocidade: inúmeros sentidos, estratos culturais e signos cênicos perpassam a trajetória de João Miolo. Tal aspecto se dá no cruzamento entre o mundo do trabalho, o imaginário folclórico e a devoção religiosa, que se imiscuem na narrativa, no canto e nos recursos expressivos acionados pelo ator. No entanto, o que mais chama a atenção talvez seja a concisão com que esses elementos são agenciados, concentrando-se nos (poucos) constitutivos do espetáculo, sem fazer concessões a leituras redutoras ou a conduções prévias de sentido.

Exemplo mais claro disso é o trabalho cenográfico que busca a superposição ou o espelhamento entre o universo do operariado, o do boi bumbá e o da religiosidade. Os materiais da construção civil são transpostos facilmente para o universo brincante ou espiritual da cultura nordestina, sem deixar de remeter também à própria atmosfera sufocante das grandes metrópoles. Nesse sentido, o carrinho de mão do pedreiro faz as vezes de altar e de fantasia de boi bumbá, condensando num mesmo objeto cênico diversas esferas da vida do protagonista. De maneira análoga, a armação circular de ferro, que delimita o local de trabalho e/ou moradia de João, posteriormente se ergue do chão e se ilumina, remetendo aos folguedos e às luzes da festa popular. Dessa forma, o espetáculo provoca a sensação de que, numa mesma névoa, se misturam fumaça de carros, pó de obra e poeira de terra batida, agitados pelos passos e pela voz do protagonista.

Entretanto, vale lembrar que a unicidade dramatúrgica mostra mais do que a sucessão de estratos da cultura popular e urbana, ou ainda mais do que a multifuncionalidade dos objetos em cena. Atentemos, primeiramente, para o fato de que a escolha pelo carrinho de mão em detrimento da fantasia do boi projeta em cena o próprio corpo de João Miolo / Lauande. Se o boi esconde aquele que lhe sustenta e lhe confere a evolução dos movimentos — o miolo —, o carrinho de mão por sua vez não só explicita o pedreiro por baixo da fantasia folclórica, como também o corpo e a voz do próprio homem. Em O miolo da estória, os objetos cênicos são antes de tudo manipulados pelo próprio ator em trabalho solo. Nessa perspectiva, o trabalho manual do pedreiro e a dança do boi deixam entrever um corpo sob a vestimenta social, cujos movimentos vigorosos se desenvolvem na repetição do trabalho braçal ou na ginga de pés. Dessa forma, giram em torno de João Miolo — e em torno do corpo em cena — vários universos culturais que, em conjunto, dotam o personagem de ressonância coletiva sem, contudo, diluí-lo no tecido das socialidades em jogo. E aí talvez possamos entender a equação que Renato Ferracini propõe sobre as potencialidades estéticas dos monólogos: solo = coletivo, percebendo a força e a expressividade que podem advir da economia de meios (2).

Nesse contexto, a voz surge como metáfora de projeção tanto pessoal quanto social, assim como elemento cênico que costura toda a dramaturgia de O miolo da estória. O sonho de João de se tornar cantor de boi bumbá possibilita a ascensão social que nem o miolo e nem o pedreiro marginalizado alcançam. Acompanhando de perto esse dado narrativo, a voz de João Miolo / Lauande perpassa todo espetáculo, presente sob a forma de canto, narração ou solilóquio, em íntima organicidade com a carga simbólica que o cantar assume na trajetória do personagem. Nesse sentido, a voz surge como elemento de convergência, que concentra num mesmo ponto o objetivo do personagem ficcional — com todas as camadas de sentido que a sua estória pode suscitar —, ao mesmo tempo em que ergue sonora e esteticamente a figura de um só homem, vocalizando de maneira singular os anseios de um e de todos os indivíduos.

Vale lembrar, por fim, que uma tal concepção dramatúrgica prima por “desfolclorizar” o tema em favor de um trabalho estético com os signos do universo de João. A escolha de colocar o homem e o corpo do ator como centro da encenação atenua e matiza os clichês nordestinos, consagrados em manifestações como o cordel, o repente e a exuberância de cores do ritual do boi bumbá. Tais elementos acabam por se tornar clichês na medida em que o exotismo folclórico e o regionalismo se tornam chaves não tanto de crítica social, mas, principalmente, de leitura. Na esteira desse processo, por exemplo, resgata-se frequentemente o imaginário severino de João Cabral de Melo Neto, mencionado no debate ocorrido após o espetáculo, promovido pela organização do Festival Palco Giratório.

No entanto, se de João Cabral não podemos (e não queremos) fugir, parece-me que a relação de O miolo da estória se dá muito menos com “Morte e vida Severina” do que com “Uma faca só lâmina” (3): “que a imagem de uma faca / entregue inteiramente / à fome pelas coisas / que nas facas se sente”, ressoa muito mais com a busca desejante de João Miolo pela própria voz, do que com o canto de comiseração severina. Dessa maneira, em conexão profunda com esse desejo “só lâmina”, obstinação que nos mostra “a serventia das ideias fixas”, a concisão dos meios expressivos incorpora o despojamento como forma de realçar o cerne do espetáculo — o miolo do homem e seu objetivo supremo: cantar. Humanidade persistente, escondida e anônima, resistindo esteticamente como a própria matéria densa dos que estão à margem.

Notas:

(1) Brincantes são os participantes e os responsáveis pela montagem do ritual do Bumba meu boi, diferentes dos foliões, que somente são seguidores livres do cortejo ou da manifestação. Cf. glossário do catálogo do Festival Palco Giratório, “Expressões em artes cênicas”, verbete “Brincante”, p. 94.

(2) Conforme artigo de Renato Ferracini, intitulado “Solo = Coletivo”, no catálogo do Festival Palco Giratório 2013. Disponível em: http://www.sesc.com.br/palcogiratorio/solo.html

(3) “Uma faca só lâmina ou a serventia das ideias fixas” (1955). Fonte: João Cabral de Melo Neto, Obra Completa, Nova Aguilar, 1994.

Renan Ji é doutorando em Literatura Comparada pela UFF, Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ.

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