Cowboys das ruínas

Crítica da peça Wanted, da programação do Festival Dois Pontos

27 de abril de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

Três homens maltrapilhos vagam com pedaços de madeira abaixo do peito, simulando estarem frente a um balcão do bar. Pedem whisky, no melhor sotaque norte-americano. Eles pensam, trocam olhares, fazem proposições, enquanto circulam pelo palco. Um primeiro sugere uma história, logo rechaçada pelos outros dois. Depois, um deles tem uma ideia aparentemente mirabolante, logo abandonada. Por fim, eis que se chega a algum lugar: um objeto é retirado do lixo e uma história começa.

A peça Wanted, do grupo teatral Commedia a la carte, em cartaz no Teatro Maria Clara Machado por ocasião do Festival Dois Pontos, é uma peça que tem o lixo como suporte cenográfico e dramatúrgico. Cenográfico, porque é partir de uma pilha de destroços no meio do palco que se constrói a ilusão teatral. Episódios e símbolos da mitologia western, como o roubo de cofres, as entradas triunfais no saloon, o andar ritmado pelo som das esporas, são mimetizados improvisadamente com os materiais espalhados pelo chão. De fato, o elemento cômico da peça se baseia frequentemente na habilidade dos atores de aludir à atmosfera do faroeste, seja por meio de garrafas, cordas e caixas de papelão (que se chocam e se friccionam constantemente), seja por meio do gestual e de onomatopeias inusitadas, nos quais entra em ação o próprio corpo e a voz do ator. Nesse sentido, é interessante observar como o corpo acaba por se equiparar ao lixo, uma vez que ambos são alçados à condição de prop, agregando, mimeticamente, detalhes expressivos às cenas-modelo do faroeste tradicional.

Contudo, para além desse aspecto cenográfico, gostaria de ressaltar o rendimento dramatúrgico do lixo. Invertamos o sentido do título: “wanted”, “procurados”. Se os atores em cena, como os cowboys mais valentes do velho oeste, são procurados, tentemos, ao contrário, perceber o que eles próprios procuram. Disse anteriormente que, em vários momentos da peça, eles tomam seu whisky — um copo feito de ar — e pensam. Pensam em como dar início a uma nova história, a um novo esquete, agenciando os materiais que já estão no palco, prontos para ganhar vida e ressignificação. Ou seja, esses atores procuram histórias. Com isso, o lixo se vê redimido de sua inutilidade, virando catalisador de uma nova narrativa, concorrendo para a construção de uma nova cena. Diversos episódios autônomos e cenas antigas de filmes de faroeste são revividas no corpo e nos objetos em cena. É como se, do lixo circundante, várias e variadas histórias rodeassem os atores, cada uma delas começando no preciso momento em que se pega do chão uma ideia e um pedaço de papelão.

Foto: Divulgação.

O rendimento dramatúrgico do lixo, portanto, advém exatamente desse “pegar do chão”, dessa criação improvisada. Da mesma forma que o lixo se espalha por todo o palco, desordenadamente, as cenas se sucedem sem linearidade, sem uma condução progressiva, mantendo somente o elo pela presença dos três cowboys aventureiros a cada nova situação ficcional. Por outro lado, a contingência dos despojos, dos props, muitas vezes desperta o cômico pela sua precariedade, pela imperfeição ou pela forma desajeitada com que é utilizada como ferramenta expressiva. Assim, um duelo de armas tem o som de seus tiros ricocheteando fora de hora, e os membros dos corpos atingidos são marcados por um pedaço de plástico vermelho com durex. Ou seja, não há o mergulho pleno num universo ficcional coeso, apenas cenas cuja narratividade é constante e comicamente deturpada pelos adereços inusitados.

Consequentemente, um efeito notável desse uso dramatúrgico do lixo é a constante oscilação entre diferentes realidades cênicas, que atravessam difusamente o palco e raramente se deixam flagrar de forma singular. Por entre essas realidades, os três sujeitos em cena ora são personagens cowboys, ora atores brincando num exercício de palco, ou ainda atores portugueses visitando o Rio de Janeiro, interagindo com a plateia. Porém, eles nunca assumem totalmente nenhuma dessas facetas, da mesma forma que nenhuma dessas camadas de realidade se impõe sobre as outras. O resultado é um fluxo de encenações que realmente conduz os espectadores, marcado profundamente pela errância temática, pelo precário dos objetos cênicos e pela frouxidão narrativa.

Tal fluxo parece ser o que garante, aparentemente, uma boa resposta do público. Wanted, portanto, é um espetáculo que faz rir — um pouco devido ao uso inusitado do lixo como adereço cênico e, principalmente, pelo que este mesmo lixo pode conferir à própria estrutura do espetáculo — narrativa oscilante, brincalhona, incerta. A peça tem direção de John Mowat, e tem Carlos M. Cunha, César Mourão e Ricardo Peres como os corajosos e desajeitados cowboys das ruínas.

Renan Ji é doutorando em Literatura Comparada pela UFF, Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ.

Programação do Festival Dois Pontos: http://www.doispontos.art.br/

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