Das (im)possibilidades da tragédia

Crítica de Oréstia, de Ésquilo, montagem de Malu Galli e Bel Garcia

30 de janeiro de 2013 Críticas

Pode-se dizer que a tragédia, gênero teatral grego do século V a.C., é para nós um objeto eminentemente literário. De fato, os pesquisadores pouco podem afirmar sobre os festivais teatrais da Atenas de Péricles. Ao fim e ao cabo, permanece apenas o texto preservado ao longo dos séculos, repleto de emanações arcaicas, dotado de uma difusa dramaturgia calcada em intrincada (porém inegável) beleza poética. Resulta disso um desafio para o teatro contemporâneo: como dar vida a deuses e heróis, seres imortalizados e imobilizados não apenas em imagens de imenso peso cultural, mas principalmente em versos poéticos? Como dar vida, enfim, a estátuas de mármore e palavras, a ídolos fora do tempo e do espaço, tanto histórica quanto existencialmente?

Dirigida por Malu Galli e Bel Garcia, a montagem da Oréstia — trilogia de Ésquilo, o mais antigo dos dramaturgos trágicos que chegaram até nós — procura estabelecer a difícil ponte entre texto clássico e materialidade cênica. Muitas são as dificuldades: a solenidade erudita da linguagem, o peso antropológico e religioso do mito, a forte presença do contexto político ateniense e a presença do coro e do corifeu, entidades cênicas há muito exorcizadas dos palcos. No entanto, é certo que tais dificuldades não devem pautar expectativas, pois seriam exigências pouco ou nada pertinentes no nosso tempo histórico e no momento atual das artes dramáticas. A recuperação do mito trágico (e do mito grego em geral) só pode se dar no nível da releitura, das variadas possibilidades expressivas que um texto e uma narrativa imemorial encerram.

É necessário, portanto, atentar para a releitura do mito trágico nos seus aspectos intrínsecos e nas potencialidades advindas da sua sobrevivência hoje, e não para o mero resgate de aspectos históricos e ritualísticos. Dessa forma, a Oréstia que ora se encena no Teatro Laura Alvim é uma adaptação ou uma releitura, e nunca poderia ser mais do que isso. Ainda que a tradução de Alexandre Costa e a dramaturgia de Patrick Pessoa tenham mantido estilisticamente a ambiência trágica — a elegância reverente na fluidez discursiva dos diálogos, o equilíbrio da linguagem entre o erudito e o derramado —, a montagem condensou o texto da trilogia num só espetáculo, com atores que se revezam entre o coro e os personagens heroicos. Percebe-se uma economia de sujeitos em cena que ora remete à hereditariedade — Malu Galli é Clitemnestra e Electra, Júlio Machado é Agamêmnon e Orestes —, ora denuncia a contenção um tanto excessiva dos meios — Luciano Chirolli, por exemplo, é o onipresente corifeu e, ainda, as terríveis Erínias.

Mesmo tendo em mente a reatualização e não a transposição do mito trágico, é certo que, a princípio, alguns ruídos parecem interferir na percepção, especialmente para aqueles que supostamente conhecem o contexto histórico da tragédia: é inevitável o estranhamento diante da musicalidade MPB cool do coro, ou das intervenções prosaicas da Atená de Gisele Fróes e do Apolo de Otto Jr., ou ainda da mencionada economia de meios expressivos no que tange à representação das Erínias. Tais aspectos parecem indicar um inevitável abastardamento do mito trágico, seja pelo fracasso inerente à incorporação cênica da ancestralidade e da gravidade — no tratamento do divino e do heroico —, seja pela escolha deliberada em fazê-lo, desconstruindo esteticamente os ídolos da tragédia.

A peça em questão parece ter resvalado para a segunda possibilidade, mas não foi movida pelo simples desejo de achincalhe ou de paródia crítica da tragédia clássica diante da impossibilidade de recuperá-la. Na verdade, tal releitura “infiel” da Oréstia parece advir de um profundo conhecimento de sua singularidade como objeto artístico. Afinal, a Oréstia é um drama antes de tudo questionador, que exalta e preconiza a emergência de novos valores políticos e existenciais, que, por sua vez, são tão ambíguos e contraditórios quanto os antigos. No plano religioso, a trilogia encena uma temeridade, se levarmos em conta o contexto grego antigo: transforma entidades altamente arcaicas da cultura grega, telúricas e insondáveis, temidas até pelos deuses — as Erínias —, em deusas cívicas, “domesticadas” e benevolentes, geradas no seio da pólis democrática. Além disso, não deixa de ser uma peça que incita a reflexão da própria plateia como sujeito decisório, uma vez que o crime de matricídio de Orestes é julgado pelos próprios membros de um júri popular.

Enfim, uma peça revolucionária — como o foram, à sua maneira, todas as outras tragédias — no sentido de poetizar os conflitos entre uma civilização arcaica em declínio e uma sociedade jurídica nascente. Nessa perspectiva, o que surgiu inicialmente como sinal de adaptação de um original clássico ou ruído de estranheza se revela como elaboração estética sobre aspectos intrínsecos à trilogia. As músicas de Rômulo Fróes e Cacá Machado, se não mimetizam a gravidade e o ritualismo do coro trágico antigo, trazem poesia e ritmo ao canto dos atores, reelaborando o forte elemento musical característico de todas as peças de Ésquilo. Por outro lado, o certo prosaísmo da aparição dos deuses, o Apolo de terno kitsch e a frivolidade de Atená, apenas reforça a necessidade de vislumbrarmos não especificamente os deuses cósmicos, e sim as ideias em jogo no texto trágico. Prova disso é a quebra da quarta parede teatral, no desfecho, em que alguns espectadores são convocados a votar pela condenação ou não de Orestes, o que realça profundamente o aspecto reflexivo, totalmente voltado ao público, do texto de Ésquilo.

A Oréstia que surge perante nós, portanto, é uma peça que problematiza a contingência histórica do público. A montagem contemporânea de Malu Galli e Bel Garcia busca provocar o mesmo curto-circuito ideológico e espiritual que marca as tragédias antigas, mas logicamente o faz sobre outras bases que não a da Atenas do século V a.C. Nesse sentido, a adaptação é infiel em nome de uma fidelidade ainda maior, mais profunda, mais constitutiva, ao texto clássico. Em muitos casos, é exatamente na infidelidade que se prova a sobrevivência e a atualidade das imemoriais tragédias gregas, até os nossos dias.

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