Metáforas e arestas

Crítica da peça Céu sobre chuva ou Botequim, de Gianfrancesco Guarnieri

28 de março de 2013 Críticas
Foto: Guga Melgar.

A peça Céu sobre chuva ou Botequim, de Gianfrancesco Guarnieri, com direção de Antônio Pedro Borges, teve uma única montagem em 1973, e agora é encenada 40 anos depois, no Centro Cultural dos Correios. A tensão entre duas épocas, dois governos e duas realidades brasileiras não poderia ser maior. As montagens de 1973 e 2013 resistem como peças-irmãs, ligadas a partir de um esforço de reeditar a poética teatral de Guarnieri, porém partilhando de um inequívoco dissenso em face de seus respectivos contextos históricos.

Artur Xexéo, na Revista O Globo, saudou a nova montagem de Botequim antes mesmo da estreia (1). Ele ressalta o aspecto notável de teatro-metáfora da peça, lembrando que Guarnieri atribuíra esse texto ao seu “teatro de ocasião”, ou seja, um teatro que procura eminentemente responder ao contexto político de sua época. De fato, trata-se de um teatro cuja metáfora é tão mais gritante quanto maior a intolerância do regime político: durante os anos de chumbo, um botequim repleto de referências ao sufocamento social e subjetivo dos personagens, com a tempestade e o caos natural ecoando o embrutecimento das instituições e a perda da liberdade.

Nesse sentido, a metáfora de Guarnieri se imbui de uma organicidade e de uma coesão que tem na própria irregularidade do texto uma resposta à planificação estatal do regime militar. Nos atos gratuitos, impensados e cambaleantes da embriaguez, no desafio às convenções tanto do teatro quanto dos costumes, no sensacionalismo da nudez e no cordialismo brasileiro de que falou Sérgio Buarque de Hollanda (incorporado pelo personagem Carrapato, interpretado hoje por Xando Graça) — por entre todos esses aspectos, uma amarra político-ideológica garante a atualidade, a repercussão profunda no público e o sucesso da peça em 1973.

No entanto, a metáfora ainda resiste em 2013? Os tempos pós-utópicos, blasés e marcados pelo “tudo visto” ainda podem se impressionar com a história contada (com garra, é preciso reconhecer) por Marcia do Valle, Xando Graça e Rogério Freitas? A metáfora de Guarnieri certamente perde a coesão diante de tempos em que, como afirma Antônio Pedro Borges, até mesmo a explosão comportamental da década de 70 fora absorvida pelos discursos midiáticos e hegemônicos do politicamente correto. Nessa perspectiva, os vários personagens que vão chegando ao bar, fugindo da chuva, seriam não apenas portadores de mensagens e notícias desencontradas, mas também de ideologias perdidas, desprovidos da ressonância política de outrora. O jovem casal de guerrilheiros — Julio e Dorinha, interpretados por Vandré Silveira e Dai Bonfim — se desencontram do bombeiro marxista de Rogério Freitas e do burocrata fragilizado de Nil Neves, ou ainda do cadáver da criança morta resgatado por este ou da sensibilidade messiânica-maníaca da dona Olga de Andréa Dantas. As arestas ou aparas dramatúrgicas, portanto, ficam mais pronunciadas na montagem atual de Botequim. É como se os vários constituintes desse microcosmo que é o botequim não casassem mais entre si, com suas respectivas intencionalidades e singularidades agindo no palco de maneira independente e difusa.

No entanto, é possível estender um pouco mais esse pensamento sobre o aspecto irregular da narrativa da peça. Uma vez que a subliminaridade política do texto original de Guarnieri não está mais tão fortemente presente, é possível atentar para a singularidade de algumas sobras dramatúrgicas, para os fragmentos que compõem esse objeto artístico remanescente da tradição teatral. O aspecto histórico mais imediato recua para que o apurado senso estético, como diria dona Olga num dos momentos da peça, entre em ação na apreciação deste espetáculo.

Eis então que a tempestade ficcional deixa de ecoar, por exemplo, uma possível relação com as chuvas intensas que tem assolado as capitais brasileiras nesses últimos anos (mostrando a inépcia da estrutura urbana para conter os desastres naturais), indo na direção de um caos de fogo e de água, anunciado por dona Olga, que refigura de maneira insana e poética a catástrofe social. Da mesma maneira, a centralidade do rádio, não apenas no espaço cênico, mas também no próprio enredo, salienta uma realidade de informações desencontradas, de músicas disparatadas e escapistas, permeadas por um chiado eletrostático todo feito de desespero e de apatia político-social. Por fim, a intervenção da polícia estatal no fim da peça, misto de SWAT team e Rede Globo, antes mesmo de concretizar a metáfora da repressão, ressalta a obediência absurda diante do poder estabelecido e a alienação dos personagens, que antes pareciam mais arremedos cômicos dos tipos sociais brasileiros.

Assim, nessa montagem de Antônio Pedro Borges e Marcia do Valle, tornam-se possíveis releituras e olhares diagonais ou não lineares sobre a condução irregular da peça. Nesse processo, certos estilhaços dramáticos subitamente se conectam com a realidade de hoje e fazem o texto “grudar” novamente na vida. Portanto, o Botequim de Guarnieri certamente perdeu um pouco do teor contingente que marcou sua estreia, porém não perdeu completamente o poder de jogar luz sobre alguns aspectos da realidade brasileira, mesmo quarenta anos depois.

No mais, ficam as belas músicas (reformuladas por Marcelo Alonso Neves e Gabriel Moura), o bom humor do elenco e a bebida, “que botam a gente comovido como o diabo”, como diria Drummond. É possível, através da música e da alegria, ainda achar um céu sobre a chuva? É possível ainda beber do conhaque que Guarnieri tem a nos oferecer? A nova montagem de Botequim procura servir aos espectadores uma dose dessa sensação.

(1) Texto de Artur Xexéo disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/xexeo/posts/2013/03/20/o-teatro-metafora-490493.asp

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