Sensações suspensas e partilhadas

Crítica do espetáculo Nível 6, do Grupo Garimpo

20 de janeiro de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

Nível 6 é o mais recente trabalho do Grupo Garimpo, formado por Ricardo Libertini, Vanessa Silveira e Marina Mercier, que desde 2007 se reúne em volta de projetos que têm em seu cerne a pesquisa da linguagem performática, o processo colaborativo e a busca pelo intercâmbio artístico com companhias de diversas origens e lugares. Uma primeira versão do trabalho, em 2010, tinha um caráter performativo, de intervenção no cotidiano da cidade, já que os atores ocupavam lugares públicos e de grande circulação de pessoas na zona sul carioca e em Niterói, apenas observando e tentando aproximações corporais com os transeuntes. Em 2011, Nível 6 fez apresentações na Mostra Fringe do Festival de Curitiba e dentro do projeto Armazém 19, na sede do Grupo XIX de Teatro. Partindo destas experiências isoladas, em 2012 o grupo resolveu levar o trabalho para o Espaço Rampa, em Ipanema, e em seguida realizou quatro apresentações em outro espaço alternativo, destinado a exposições de fotografia, de artes plásticas, e a peças também, o espaço A Comuna. As experiências na rua, em Curitiba, em São Paulo e nos dois espaços alternativos corroboram a proposta vigente na peça e na pesquisa do grupo, preocupado com a relação de interação entre a cena e o público.

Por estes caminhos, o novo espetáculo é, em certa medida, uma continuação da pesquisa de Feito pra acabar, peça de formatura de Ricardo Libertini no curso de direção da UFRJ, que tratava do tema memória a partir da relação entre dois atores que eram irmãos. Em Nível 6, o tema central é o medo, e a temática da memória afetiva do sujeito é discutida de forma menos direta que em Feito para acabar, em que os dois irmãos dividiam suas histórias pessoais e familiares com o público de forma aberta e sem uma composição de personagens. Mostravam suas individualidades e subjetividades sem uma referência sequer a personagens fictícios. No recente espetáculo, as biografias e memórias divididas com o espectador são, aparentemente, das personagens, interpretadas por Marina Mercier e Luisa Rangel, que pertencem a épocas distintas entre si e distantes da atualidade. É o mesmo princípio de depoimento para o público, que vai interagindo e construindo o espetáculo junto aos atores, mas em Nível 6 a subjetividade do artista é sobrepujada pela ficcionalização dos depoimentos afetivos. Quem se relaciona diretamente com o espectador são os personagens. Eles compartilham e relembram suas histórias com o público sim, mas sempre à sombra do medo a que são submetidos na clausura do espaço e de uma situação inóspita. Em Feito para acabar a memória que rege a ação é a dos atuadores irmãos, enquanto em Nível 6 se dá um imbricamento de vozes afetivas diluídas nas figuras caracterizadas por uma época distinta.

A atual montagem apresenta quatro personagens de diferentes épocas, que vivenciam quarentenas durante surtos epidêmicos na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o diretor, trata-se de um trabalho que investiga o medo através da clausura. É esse o estado em que se encontram os personagens e em que se encontrará o espectador: todos presos a uma sala asséptica que conta apenas com a luz natural, uma ou duas cadeiras, um piso frio e pouco, ou nenhum, conforto. Ricardo Libertini e Natalia Mikeliunas se apresentam ao público com megafones, antes do início do espetáculo, representando dois agentes de saúde. A sua função é encaminhar o público ao local da cena, orientando-o a não encostar-se às paredes e ali permanecer. Em seguida entram as personagens acima citadas, uma prostituta do século XVIII e uma jovem dos anos 20 do século passado. As duas são deixadas no espaço pelos mesmos agentes e permanecem enclausuradas com o público ali presente, sem ter qualquer informação ou orientação prévia. Só sabemos que estão aguardando por algo. O público compartilha o mesmo espaço com as duas e é delicadamente convidado por elas a participar do espetáculo. Cabe ao espectador deixar o pudor de interagir, com a cena e com o desconhecido, para junto a elas fazer com que o espetáculo se desenrole no aqui e agora.

Ao longo do espetáculo, a discussão apontada pelo grupo sobre o compartilhamento de sensações e sentidos entre os atores e o público dentro de um ambiente que busca dissipar o medo, o mistério e a dúvida, ora se concretiza ora se esvai. Isso se dá pelo tempo de reação das atrizes, um quase ralentar de suas ações em relação ao que acontece no aqui e agora. Mas tais sentidos e sensações são constantemente evocados pelos personagens, bem como na sua relação com aquele estado de clausura e com o outro, o espectador, que em momento algum é ignorado. Entre o que é sugerido ao espectador e aquilo que ele pode apreender daquela situação proposta, há um quadro de incertezas. A própria história é um emaranhado de dúvidas e questionamentos das duas mulheres sobre seus passados, suas histórias. Há ainda a incerteza quanto aos seus futuros, e em como lidar com o presente no qual o público é corpo estranho, mas se torna vital na trajetória das personagens. Elas transitam entre o passado e o presente de forma claudicante e instável, sempre enunciando perguntas para o espectador, como “Há quanto tempo vocês estão aqui?”, ou “Alguém sabe o que farão conosco? Quando sairemos desse local?” intercaladas pelos relatos de suas histórias pessoais. Esta profusão incansável de perguntas e depoimentos, juntamente ao espaço frio e iluminado apenas pela luz natural vinda das janelas, transfere o espectador para um estado diferente daquele em que ele estava ao chegar, ativando seu estado de atenção para o aqui e agora, estimulando a experiência de sensações inesperadas (como a dança de salão em grupo e o jogo da cabra cega) e o diálogo constante com as atrizes.

O que podemos vislumbrar em Nível 6 é um estado de suspensão. No final do espetáculo os atores que são agentes sanitários chamam, com os mesmos megafones, cada espectador pelo nome, para que se retirem do espaço. Há ali uma tensão de todos à espera por seu nome e mesmo uma incerteza quanto ao término do espetáculo. Esta sensação de instabilidade é fruto do trabalho relacional das atrizes com o espectador e o espaço, no decorrer da uma hora em que permanecemos ali trancafiados junto a elas. Ao sair da sala escurecida , aquilo que resta é a imagem de duas mulheres sozinhas e abandonadas, presas às histórias que tentaram dividir com o espectador e a uma esperança criada ali naquela situação de presença. O que acaba emergindo desta experiência é a suspensão de sensações que compartilhamos com as duas atrizes. Curiosidade, estranhamento e tristeza diante da situação das duas mulheres são sentimentos que se dão em tal experiência cênica. Apontamentos e possíveis desdobramentos a partir dali são possibilidades abertas ao espectador que partilhou aquela experiência cênica.

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do teatro pela UNIRIO.

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