O real afetivo em cena

Crítica da peça Feito pra acabar, de Vanessa Silveira e Ricardo Libertini

26 de janeiro de 2012 Críticas
Foto: Rafael Turatti.

Antes de falar sobre a peça Feito pra acabar, que fez três apresentações na XI Mostra de Teatro da UFRJ, gostaria de me ater a esse evento realizado anualmente pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sendo oficialmente o espaço em que os alunos formandos do curso de direção teatral apresentam seus trabalhos cênicos de conclusão de curso, e assim um momento de fechamento de ciclo dentro da formação do artista, a Mostra possui um caráter de integração entre as partes que produzem um objeto artístico. De fato, o evento aparece como um grande acontecimento dentro da universidade, movimentando os corredores históricos do prédio da Praia Vermelha e intensificando uma vontade do público e de estudantes de teatro, especialmente, em que haja mais eventos teatrais dessa natureza em nossa cidade.

Abrindo suas portas para o público carioca e tendo como tema norteador dessa XI edição o “Rio de Janeiro”, o evento universitário apresentou dez experimentos teatrais dos seus alunos formandos, além do trabalho de Artes Cênicas do Colégio de Aplicação (Cap), dirigido pelos alunos do quarto período naquela instituição. Eleonora Fabião, coordenadora do Curso de Direção Teatral, reitera que a Mostra de Teatro da UFRJ tem um forte caráter colaborativo em sua estrutura, pois congrega uma parceria efetiva entre esses alunos, os alunos de indumentária e iluminação da Escola de Belas Artes (EBA), de jornalismo, audiovisual, iluminação e de produção da Escola de Comunicação (ECO) além de bolsistas de iniciação científica e elencos convidados. Dessa receita interdisciplinar, o evento desponta como um espaço em que as peças de formatura não são apresentadas como produtos finais e acabados de uma formação acadêmica, mas de acordo com a fala da própria coordenadora, como experimentos teatrais que querem antes problematizar o “como” pensar e fazer teatro na cidade do Rio de Janeiro e como intervir no meio artístico e cultural da cidade, já que “parte fundamental do trabalho de artistas, professores e estudantes é justamente conhecer, discutir e recriar mundo.” (1)

Ainda no editorial da revista dessa edição da Mostra há explicitamente um desejo de pensamento entre os alunos de comunicação que querem fazer dela uma futura publicação especializada em teatro o que pressupõe uma integração e um diálogo com o curso de direção teatral bem como com todas as outras áreas acima relacionadas.

Foto: Rafael Turatti.

Dessa forma chamou-me a atenção justamente esse empenho em perceber a universidade como o lugar da experimentação, do erro, do trabalho colaborativo e, principalmente, do “pensar mundo”. Assim, vários trabalhos da Mostra de 2011 tiveram a criação colaborativa, a pesquisa de temas como realidade e memória, as inquietações dos artistas diante de suas obras e do fazer teatral, e o caráter performativo como vertentes bastante dinâmicas e singularizadas em cada experiência. Havia claramente uma vertente performática nas atuações, uma atenção voltada para a memória pessoal e afetiva dos envolvidos nas criações e, o que me pareceu mais profícuo e dialógico com o evento, o potencial autoral nos trabalhos cênicos ali expostos e repartidos com o público. Por esse viés, correr riscos desde já imanava como condição do “lançar-se dos muros da universidade para o mundo profissional vindouro”.

Nesse sentido, Feito pra acabar, com direção do aluno Ricardo Libertini e dramaturgia de Vanessa Silveira abarca de forma sintomática essa vontade exposta pelas palavras de Eleonora Fabião sobre a XI Mostra de Teatro da UFRJ. O experimento teatral do aluno formando de direção se apresenta como uma experiência arriscada, e possui uma voz autoral singularizada por seus atores, Laura Becker e Daniel Gnatalli, irmãos, assim como da voz do próprio diretor e da dramaturgista, irmãos também. Autoral e experimental na medida em que vemos a potencialidade artística e humana de cada envolvido nesse projeto exposto abertamente na cena.

Em Feito pra acabar o que vemos antes de tudo é um documento de família, um álbum de recordações e histórias da memória dos dois performers que comungam com o público sua intimidade recheada de questões pessoais e diálogos sobre seu cotidiano e existências. A realidade de cada individualidade e da dupla ali exposta será tema e tomará forma como experimento teatral. Além disso, a música parece ser um fio condutor bastante preponderante na arquitetura da dramaturgia cênica ali experienciada. De acordo com as palavras do diretor, foi esta a válvula iniciadora do projeto, numa espécie de questionamento de como a música opera nos nossos sentidos e em nossas vidas. Não obstante, numa de suas primeiras falas, Daniel Gnatalli reitera “não ser ator” e sim músico e designer, enquanto Laura Becker afirma “ser atriz” e música também. A experiência é toda entrecortada por alguma música que opera uma espécie de divisão dramatúrgica na estrutura da cena, são movimentos de uma partitura de falas documentais e biográficas intimamente ligadas ao tema da música. A forte presença da música é evidenciada pela estrutura dessa narrativa e no discurso afetivo que ela gera na fala de Laura e Daniel.

É nesse mesmo discurso introdutório de Laura e Daniel que se apresenta uma condição inicial para o olhar do espectador. Ele está diante de uma experiência híbrida, em que a questão da atuação e do elemento ator é problematizada, já que em cena Laura e Daniel são executores reais de si próprios, sem disfarces – e sublinhando essa condição. Uma experiência inacabada, com um roteiro dramatúrgico pontilhado de improvisos e que solicita um olhar cúmplice do espectador.

Foto: Rafael Turatti.

Esse jogo teatral em que o real é matéria bruta se impõe a partir do momento em que o público se acomoda em seus lugares e os dois, de forma descontraída, interagem: Daniel toca uma canção enquanto Laura sapateia, ao mesmo tempo em que distribui chocolates entre os presentes. O que se segue é uma interação espontânea e, me parece, improvisada pelo casal de performers/executores/irmãos da cena. Além disso, há uma câmera que filma em tempo real a ação do público que ocupa o espaço. No telão ao fundo do espaço cênico essa ação é transmitida, o que confere o status de acontecimento do trabalho. Ela retifica o caráter performativo e inacabado da peça. Desde já esse início norteia os passos da experiência engendrada pelo casal de irmãos de dentro (Laura e Daniel) e de fora da cena (Vanessa e Ricardo).

De fato o que vemos em cena é o desejo de falar sobre algo, como o afetar-se pela música, por exemplo, através de parte das memórias dos dois irmãos em cena. As suas falas, todas, têm um caráter documental, sempre resgatando suas histórias passadas e vividas juntas, ou falando das idiossincrasias de cada um. Falam de suas particularidades dentro da família, de como enxergam seus trabalhos, seus amores perdidos e inventados. Revivem jogos de infância, desenham, mostram fotos e vídeos caseiros. Expõem seus devaneios e desejos ao mesmo tempo em que falam do processo de criação do presente trabalho. Esse emaranhado de auto-exposição biográfica dos dois performers/executores/irmãos se instaura dentro de um espaço em que o real e a ficção se imbricam constantemente, fundando a realidade (e futura memória) da cena ali compartilhada com o espectador. Real na medida em que vemos duas pessoas se apresentando por seus nomes verdadeiros, despidas de qualquer carapuça de personagens, falando de suas realidades que habitam a memória, como o presente e o futuro. A ficção aparece justamente nesse ponto, pois ao entrarmos no espaço habitado pelos dois performers/executores/irmãos estamos ocupando o espaço destinado a uma representação teatral. A carga documental, matéria-prima do trabalho, se ficcionaliza na relação estabelecida entre cena e plateia, na medida em que as memórias íntimas e secretas passam a ser elemento dramatúrgico exposto e compartilhado com o outro, o espectador, no espaço e tempo comprimido da experiência efêmera do teatro. Um espaço tensionado entre o presente real da ação e o artificial construído a priori.

Esse presente real da ação e a realidade como temática em Feito pra acabar dialoga com o trabalho desenvolvido pela atriz Janaina Leite e pelo músico e filósofo Felipe Teixeira Pinto, Festa de separação: Um documentário cênico (2008) espetáculo em que a matéria-prima documental e autobiográfica tomava contornos radicais, já que o tema do amor contemporâneo era discutido tendo como referência a própria ruptura do ex-casal Janaína e Felipe. Em seu texto publicado na edição de outubro de 2011 da Questão de Crítica sobre o processo de criação de tal experiência cênica, Janaina Leite fala sobre como a realidade é operada no trabalho, ela nos dá uma chave importante para pensar Feito pra acabar: “Não falar da realidade como algo que existe e é passível de ser lida, objetivamente, pelos homens, mas do “real” como aquilo que atravessa a representação e rompe a trama ideológica presente na linguagem, nos códigos, nas relações, criando pequenas fissuras em nossos mecanismos de representação.”(2)

As duas experiências têm o real como fonte primeira e desestabilizadora na medida em que o espectador se pergunta até onde o que se diz e o que se mostra é realidade ou memória inventada. A meu ver o “real” em ambos os trabalhos é, antes de tudo, matéria central e fonte de inspiração, é sobre ele e a partir dele que podemos encontrar a chave de leitura de tais espetáculos.

Notas:

(1)FABIÃO, Eleonora. XI Mostra de Teatro da UFRJ: um espetáculo em 11 atos. Mostra (Revista–programa sobre a XI Mostra de teatro da UFRJ). Escola de Comunicação da UFRJ, Rio de Janeiro: 2011 (p. 4)

(2)LEITE, Janaina. Teatro Documentário ou sob o risco do real. Questão de Crítica. Out. 2011. Disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2011/10/teatro-documentario-ou-sob-o-risco-do-real/

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro pela Unirio.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores