O espaço teatral como zona de conflito estético

Crítica do espetáculo Julia, de Christianne Jatahy

27 de novembro de 2011 Críticas
Julia. Foto: Gui Maia.

Julia, título do mais recente trabalho da diretora Christianne Jatahy, expõe o clássico da dramaturgia universal, escrito pelo sueco August Strindberg, Senhorita Julia, às cisões, deslocamentos e produções de sentido via conexão entre as linguagens teatral e cinematográfica. É sobre esse enfoque estilístico que a análise da peça irá se debruçar.

Afirmar somente que Julia é cinema dentro do teatro é meio redundante e explica muito pouco ou quase nada sobre a complexidade que se engendra no espaço de atuação, principalmente no que tange ao olhar, no que se refere à potência com que as imagens se oferecem à visão do espectador, determinando suas escolhas.

Há um filme que é exibido em telão. Há uma cena que se desenrola no espaço do palco. Os dois dispositivos são apresentados em concomitância. O conteúdo da projeção é o mesmo que é apresentado em cena. Em seu enredo, o que se evidencia são as relações de força que se estabelecem entre duas instâncias sociais distintas, mas que ao mesmo tempo tornam-se oscilantes. Julia, que no jogo desta adaptação foi alçada ao status de “patricinha” mimada pelo pai, tipo recorrente no imaginário da zona sul carioca, inicialmente se diverte numa tentativa de conquistar o motorista da família. O Jean oficial do texto dramático atende pelo nome de Jelson. Ao sucumbir aos apelos da senhorita, vislumbra uma possibilidade de tentar conquistar sua “alforria” e começar uma vida nova, longe do peso, da pressão e da submissão que o cargo que ocupa lhe impõe. Para isso, não importa quais sejam os meios a serem utilizados para atingir seu intento, mesmo que para isso tente iludir a tal senhorita do título de Strindberg. O que está em jogo é a estratégia elaborada para não ter que vestir mais a farda que o aprisiona, que o paralisa e amedronta.

Imagino que quando as duas poéticas – cinema e ação cênica – estavam dialogando ao mesmo tempo, em algum momento da peça o espectador pode ter se dado conta de que estava assistindo ou somente ao telão, como se estivesse sentado numa sala de exibição assistindo a um filme estrelado pelos atores Julia Bernat, Rodrigo dos Santos, Tatiana Tiburcio e a atriz mirim Aline Gastal (a intérprete de Julia na infância) ou dado mais atenção à performance que se desenrolava no palco, realizada somente por Julia Bernat e Rodrigo dos Santos.

Julia. Foto: Gui Maia.

Parafraseando Deleuze, há uma máquina cinematográfica que precisa estar ligada na tomada da máquina teatral para funcionar (1), e vice-versa. Entretanto, há aí um interessante problema, por que não podemos falar em criação autônoma, nem de teatro nem de cinema. Assim como a semióloga Anne Ubersfeld afirma que o texto teatral é lacunar, podemos embarcar nessa proposição e pressupor que o filme potencializa essa estrutura neste sentido, quando presenciamos os atores no palco ao vivo executando suas ações, ações estas que são teatrais, mas que, ao mesmo tempo, são filmadas e exibidas em dimensão maior no suporte da tela, completando o sentido do fio dramatúrgico. O “texto fílmico” apresenta buracos que são preenchidos com a ação dos atores ao vivo. As relações entre as linguagens audiovisual e cênica estão inteiramente entrelaçadas.

Mas se agora há pouco eu falei em entrelaçamento, volto à ideia do parágrafo inicial quando eu havia comentado sobre cisões e deslocamentos. O telão em que o filme é projetado se divide em duas partes que funcionam como uma espécie de cortina que abre a boca de cena para o desenrolar da ação, como também para expandir a visão do espectador para a tridimensionalidade do palco. Interessante pensar que há vida por trás da tela, coisa que não podemos supor numa sala de cinema, por exemplo. No espaço de atuação, além da cena projetada, há segredos, conversas íntimas, há sexo e, durante o ato sexual, planos são feitos para logo em seguida serem desfeitos. Há frustrações, sangue e morte. Há uma grande demolição de expectativas, e quando a madrugada dá lugar ao dia, os fantasmas que vagueavam pelo espaço conseguem enxergar claramente suas faces escondidas pela noite. Há também situações que não podemos ver ao vivo, ou que só podemos testemunhar pela metade. Há cenários e elementos cenográficos realistas, pensados por Marcelo Lipiani e pela própria Christianne Jatahy, como o quarto de Jean, a cozinha, o quarto de Julia, um passarinho pendurado na gaiola, que apreendem os indícios de um forte naturalismo contido no texto de Strindberg e que também vão dialogar com as locações escolhidas para a gravação do filme, como o grande casarão onde a história se passa.

Julia. Foto: Gui Maia.

A edição do filme, que ficou sob os cuidados de Jatahy e de Sergio Mekler, permite que vejamos mais de uma ação ao mesmo tempo na tela, imagens previamente gravadas e imagens que são capturadas e projetadas ao vivo. A fissura também está em cena, quando, dependendo do ângulo de visão da plateia ou da cadeira em que o espectador escolhe para sentar, captamos apenas uma parte dos corpos dos atores. Podemos mais uma vez recorrer à ajuda democrática do telão, em que vemos a atuação transformada em película ampliada, quando esta não tem sua contemplação descontinuada por algo que nos interrompa a visão, como uma parede, uma porta que se fecha, ou outro elemento que dificulta o olhar do público, mas, ainda assim, nesse sentido, estamos reféns do olhar privilegiado de David Pacheco, o operador de câmera que escolhe o melhor enquadramento para registrar e captar tais imagens.

Se as cisões e fissuras que são possíveis de detectar na feitura da própria imagem do filme funcionam em menor escala como um dispositivo que ajuda a lembrar a plateia que esta está contemplando uma fábula, a figura de David em cena, dando ordens de ação, de corte e filmando incansavelmente cada momento íntimo e pessoal da vida dos personagens, chama para si a responsabilidade de friccionar a organicidade estética da encenação. Quando a dramaturgia se instaura com força, captando toda atenção do espectador, eis que a figura dele surge, ora evocado pela própria Julia, que se dirige a ele em momentos pontuais da encenação, pedindo para parar de gravar, ora deixando de lado sua função e passando a entrar no jogo da atuação e brincando de ser personagem.

O que fica dessa experiência estética é a possibilidade de pensar nos efeitos provocados pelos diversos movimentos e deslocamentos da visão, oscilantes entre a apreciação espaço-temporal da imagem de cinema e a materialidade das atuações ao vivo, nas fraturas que expõem as diferenças sensíveis do aparato técnico do filme e da elaboração do aqui e agora da atuação, que pretendem não deixar a plateia esquecer que estão num lugar teatral, zona de conflito por excelência.

Nota:

(1) “Mas a única questão, quando se escreve, é saber com que outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e deve ser ligada para funcionar”. DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Félix. Rizoma. In: Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.

Pedro Allonso é ator e bacharel em Artes Cênicas, com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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