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Conversa com Christiane Jatahy e Cristina Amadeo sobre a peça Corte seco

26 de janeiro de 2010 Conversas e

A conversa foi realizada em março de 2010.

DANIELE AVILA – Seria interessante se você pudesse começar falando um pouco sobre a peça e sobre o que é importante pra você como artista nessa peça.

CHRISTIANE JATAHY – Pra mim, o Corte seco se instaura como uma parte importante de uma pesquisa que, como vocês sabem, não começa com Corte seco. De alguma forma, o que está ali, sendo visto pelo público, no momento em que a peça está sendo feita – porque a peça tem essa característica de estar sendo feita em parte na hora – é muito do que a gente viveu, muito do que eu aplico, em todos os meus processos. De fato, o Corte Seco é uma tentativa, um desejo de abrir o processo, ou seja, colocar em cena de alguma forma a maneira como eu trabalho, tanto para a construção de uma peça quanto para o treinamento. Isso está tão ligado à questão dos sistemas, ao uso dos sistemas como material provocativo pra construção da dramaturgia, um estímulo para os atores construírem a cena, como também a essas interferências, que têm o objetivo de tornar vivo o que está acontecendo na cena, o que vai gerar uma dramaturgia que se transformará numa coisa que, apesar de parecer aberto, não está aberto. Está aberto como qualquer outra peça. No caso do Corte seco, a ideia é que isso esteja mais presente. Pra ser muito sincera, eu ainda quero mais. O processo começou sendo muito arriscado, ele continua sendo muito arriscado, mas ele precisou se estruturar pra existir como resultado. E eu sempre converso com os atores sobre o quanto eu quero criar coisas pra abrir mais ainda. É claro que isso acaba acontecendo, a gente fala sobre abrir, mas eu já tô apegadíssima. A gente já tenta construir novamente. Eu penso “Essa cena é tão boa, vamos fazer de novo” e quando eu vejo aquela cena está acontecendo todos os dias.

CRISTINA AMADEO – E ela começa a funcionar mais aqui, menos ali, e a gente começa a fazer escolhas, porque é assim que a gente funciona.

CHRISTIANE JATAHY – A Cris pode falar deste aspecto. É humanamente difícil saber que pode não ter a sua cena, que você pode não entrar em cena. Eu fico lidando com a frustração e o desejo dos atores o tempo inteiro. Tem dias que eu saio de cena e falo com os atores que eu fui muito mole e eles dizem: “Não, imagina!”. Aquele dia em que eu deixei tudo acontecer é o melhor dia… (risos)

CRISTINA AMADEO – Mas tem uma coisa sobre esse deixar tudo acontecer. Você começou a falar da duração das coisas. Às vezes quando, num processo de ensaio, numa improvisação, você deixa e estende uma cena, a gente tá em cena e pensa “Por que a Chris não tá cortando?” porque já deu, já deu, e aí de repente alguma coisa muito incrível acontece e gera um minuto e meio de uma coisa sensacional. E às vezes é o tempo que precisa. De cinco minutos, um minuto e meio foi incrível, e foi nos minutos finais.

CHRISTIANE JATAHY – Às vezes mais importante do que o que entra ou não entra, é o que dura ou que não dura.

CRISTINA AMADEO – E às vezes um minuto e meio de uma coisa que poderia ter cinco pode ser incrível naquele dia.

CHRISTIANE JATAHY – E essa questão do tempo está muito presente no trabalho. Tanto na construção como no resultado, até o ponto – e aqui vou fazer um paralelo – que na A falta, no filme principalmente, a gente chegou a filmar treze horas contínuas com esse objetivo: O que é que se cria quando você não pode parar? No que é que resulta quando você não sabe onde vai ser o fim? Eu lembro que eu vi uma vez numa matéria, acho que era até sobre o Glauber, eu também já ouvi o John Casavettes falando isso. Eles falavam: “Ele tá com a câmera lá, eu não tinha mais o que fazer e a câmera continuava.” Acho que tem um pouco disso no Corte seco: não tem mais o que fazer e o olhar do espectador continua lá.

DANIELE AVILA – Sobre essa questão da extensão, eu observei na peça e ouvi pessoas falando sobre a peça, acho que ter o título Corte seco e ter a referência ao título Short Cuts gera uma expectativa de que todas as cenas sejam curtas e de que tudo seja muito interrompido. Então essa extensão causa uma coisa interessante, porque você gera uma expectativa, cancela um pouco essa expectativa e gera outra. Porque um corte seco não é necessariamente um corte curto e eu não sei porque acontece essa expectativa, mas acho que ela existe.

CHRISTIANE JATAHY – No filme A falta tem trechos super extensos, tem histórias muito contadas e outras que são mais curtas.

DANIELE AVILA – Essa tensão na extensão é interessante com relação às expectativas, porque tem a expectativa dos atores e dos espectadores também, que ficam naquele mesmo nível de tensão, esperando a cena acabar.

CRISTINA AMADEO – A gente teve um episódio no sábado passado, de uma moça que se levantou da plateia, disse “Eu vou entrar no seu lugar” e voltou uma cena.

CHRISTIANE JATAHY – É naquele momento em que o Leonardo Netto pergunta “Alguém quer entrar no meu lugar?”, ela falou “Eu quero”.

CRISTINA AMADEO – E aí ela voltou uma cena.

CHRISTIANE JATAHY – Ela disse “Eu quero entrar” e a gente achou que ela fosse entrar pra atuar, pra ser o pai, porque tem uma questão sobre a paternidade ali e ele fala: “Eu não me sinto adequado pra esse papel. Alguém quer entrar no meu lugar?”, que é uma repetição que o Paulo Dantas faz naquela outra cena da peça, que é uma dessas cenas que se estendem. E a expectativa de todo o mundo foi a de que ela fosse cumprir o papel, mas na verdade ela entrou pra mexer na peça.

CRISTINA AMADEO – Ela entrou pra entrar no lugar da Chris.

CHRISTIANE JATAHY – Ela começou a puxar um comando. Eu falei “OK”, não era isso o que tava sendo proposto, mas quem tá na chuva é pra se molhar. Aí ela deu o corte. Ela não esperava que a cena se concluísse, a cena entre o Paulo e o Felipe, uma cena que nunca existiu, que estava sendo improvisada, aí eu dei o microfone pra ela dar o corte. Ela falou “Então eu vou aproveitar e vou fazer que nem você, eu vou pedir uma outra cena.” E aí ela falou 2. Só que naquele dia, por uma coincidência dos deuses do teatro se é que eles existem, eu tinha colocado essa cena… Essa cena se divide em duas partes na dramaturgia e nem sempre entram as duas partes. Às vezes não entra nenhuma das partes, ela não aparece. E nesse dia entrou uma parte, num lugar em que ela nunca entra. E aí ela pediu 2. Ela disse depois que ela sabia, mas eu não acredito, porque é muito número. E tinha uma continuidade, então eles entraram e acabaram a cena. Então ela acabou fazendo o público ver a continuação de uma cena.

CRISTINA AMADEO – Foi um momento de suspensão.

CHRISTIANE JATAHY – Mas isso que você falou do espectador é muito importante. A primeira questão pra mim é como o espectador vai olhar a cena. Tanto é que todos os trabalhos têm essa relação com o espaço, eu começo a criar pensando como o espectador vai olhar. Por isso que o nome do grupo é Cia Vértice de Teatro, porque o vértice é o lugar onde se conflui. Só existe o triângulo porque existe o público. Não digo que seja o mais importante, porque as coisas se equilibram, mas é o ponto de onde saem as outras retas. Até estar em cena visível não é só pra eu estar sendo vista pelo público, mas pra eu ver o espectador. É duplo esse movimento. Nessa peça, realmente existe a questão do triângulo.

CRISTINA AMADEO – Pro ator, tem um negócio muito interessante: como eu, atriz, tô estou em cena junto com o personagem. É junto mesmo. Eu tô ali como personagem, mas eu tô ali atriz também, tendo que ter uma visão sobre o que o espectador tá vendo e ajudar pra que a coisa aconteça.

CHRISTIANE JATAHY – Estar responsável.

CRISTINA AMADEO – Dar ritmo à cena, perceber que não dá pra ter pausa, ou o contrário.

CHRISTIANE JATAHY – Não perder o tempo do ator criador. Não ser criador só na sala de ensaio.

CRISTINA AMADEO – Ser criador no palco. E esse trabalho de estar o tempo todo atento, não entrar num estado, não ficar tomado, ajuda você a ter esse senso, de estar ali de fato.

CHRISTIANE JATAHY – Existem os comandos da edição, mas existem os comandos sutis da direção.

DANIELE AVILA – É isso o que eu queria perguntar, se você interfere só nos cortes.

CHRISTIANE JATAHY – Enquanto eu tô ali, tem uma circulação de pessoas. Como a Cris tava comentando, a peça tá acontecendo, mas ela tá ali perto de mim, eu falo: “Cris, está acontecendo isso e isso, a gente tem que ficar ligado.” Isso muda, isso já é um comando de direção. Mas não tanto um comando de direção do tipo “Você tá fazendo assim ou você tá fazendo assado”. Essas observações, em relação ao trabalho deles, eu nunca dou em cena, porque aí seria demais. Mas são comandos de direção no sentido de como cada um deles pode naquele momento ajudar esse todo que tá sendo construído ali na hora. Acho que isso faz parte do trabalho.

DANIELE AVILA – Como é o Corte seco com relação aos outros espetáculos de vocês?

CHRISTIANE JATAHY – A falta é o que mais tá colado nele, porque tem uma proximidade no tempo. Esse é um trabalho que tem uma importância pra mim e acho que pra todos os que participaram, por tudo o que ele significou, pelo tempo que a gente ficou ali, pelos quase cinco anos contínuos de pesquisa na própria peça.  Ganhando e perdendo, ganhando e perdendo… Pra que aconteça essa sensação de estar absolutamente vivo, você tem que correr o risco. Não tem jeito. Se você for fazer tudo certinho, você vai entrar numa coisa que pode funcionar muito bem, mas aquilo fica menos sujeito ao risco. E A falta também, apesar de não ser explicitamente sujeita ao risco, era muito sujeita ao risco, tinha muito espaço de improviso dentro da peça. E o fato de que era tão colada e descolada essa questão personagem e ator, e tão próximo, não tanto da história deles, porque as histórias deles se ficcionalizam. Essa não é a questão principal. O que vai pra cena, o que é deles, o que não é deles, o que é inventado, tudo passa a ser ficção. Mas tem uma coisa que é muito importante que é a proximidade – a Cris falou sobre essa questão do estado – com a sua experiência naquele dia. Isso é muito colado no palco, então isso determina muito eles estarem mais personagens, portanto mais artificias, ou menos personagens e portanto mais carne-viva. Isso vai dando uma qualidade pro trabalho. E A falta é o oposto do Corte seco nesse sentido, porque você pensa que é improviso, mas não, é sempre a mesma coisa. Mas por outro lado ela tinha ali nas suas entranhas, uma escolhida presença dos atores mesmos que causava essa sensação de instabilidade que o Corte seco causa por outro motivo.

DANIEL SCHENKER – Quando você fala de método de ator, qual é sentido do ator ter um método? Pra ele ter um chão, pra que ele não oscile muito entre o zero e o dez, pra que ele tenha uma média? Mas esse chão, não é interessante ter, mesmo? Ou essa desestabilização é boa, mas ter algum chão é importante?

CHRISTIANE JATAHY – Eu acredito que eu tô trabalhando a partir de uma ideia de metodologia de trabalho ator. Cada vez mais, eu acredito nas balizas, nos apoios porque, pra mim, o mais interessante que tá acontecendo tá entre. Tem uma frase que eu acho que é uma das frases mais bonitas da peça que é “O problema de viver no passado é que você sabe tudo o que vai acontecer”. Eu acho essa frase linda e é exatamente sobre esse aspecto: como é que a gente traz o ator pro tempo presente do público? Essa é a minha questão. O que eu (espectador) tô vendo e o que tá acontecendo com o ator é exatamente a mesma coisa. Isso só se dá no momento presente. E pra que o momento presente exista, o chão não pode ser um percurso em que eu sei que eu vou pisar “aqui” e “aqui”. Eu sei que eu tenho “aqui”, mas entre “aqui” e “aqui” tudo pode acontecer. Esse tudo às vezes não é nada, mas o fato de que pode acontecer tudo dá uma experiência sensorial, na minha opinião, pro ator e pro espectador que é o que dá essa sensação de vivo, e aí é uma questão de gosto. Eu quero ver teatro vivo. Pra isso, eu tenho que correr esse risco de que não vai ficar sempre sete. Às vezes vai ficar quatro. Mas em compensação tem outros dias que vai ser dez.

CRISTINA AMADEO – E a gente corre atrás do dez. Mas é um paradoxo porque você não pode correr atrás de nada.

CHRISTIANE JATAHY – Eu chamo a atenção pra não correr atrás do dez. Muitas vezes eu chamo a atenção pra eles não correrem atrás do resultado.

CRISTINA AMADEO – É engraçado porque volta e meia você descobre uma coisa incrível, mas a Chris olha e fala “Esquece. Não vamos repetir amanhã. Não congela isso não.” É muito mais interessante pro ator. Dá uma agonia horrorosa, porque você sabe que pode perseguir aquele lugar, aquela fala, aquela música, aquela intenção, ou emoção. Mas pode ser que não dê certo porque tem outra pessoa na sua frente, aquela pessoa tá te dando alguma coisa. E é em resposta.

CHRISTIANE JATAHY – Essa é a questão. Eu falo muito dessa ideia da resposta. É um pouco como a gente tava conversando antes, em que eu perguntei como ia ser e você disse que a gente ia só conversar. Mas agora a gente tá criando isso. Como é que isso aqui se repete? Não tem como eu não olhar pra você de novo e não ter certeza absoluta do que vai vir de você. Se eu tiver certeza absoluta, eu já vou estar aqui, eu já sei a minha resposta. Por outro lado, eu sempre falo pra eles que não é improvisando o texto e criando caco.

CRISTINA AMADEO – Na A falta a gente apanhou muito com isso.

CHRISTIANE JATAHY – E eu sou aquela diretora que vai todos os dias…

CRISTINA AMADEO – Leva lápis e papel… (risos) Mas na A falta tinha um agravante de a peça não começar.

CHRISTIANE JATAHY – Mas ela começava. Era mentira que não começava. Quatro anos fazendo a peça e ela não começava…

CRISTINA AMADEO – Era mentira, mas a gente tinha que enganar o público de verdade.

CHRISTIANE JATAHY – Tinha uma coisa que era uma trama e a gente sabe que o público já sabia. Algumas pessoas não sabiam. Na verdade, era assim: a gente sabe que essa peça já tá começando, mas vamos acreditar nessa mentira? A peça começava assim. Mas, por exemplo, teve a Cássia Kiss que foi ver a peça, encontrou depois o Felipe Rocha e perguntou “Você não foi fazer a peça?” De algumas pessoas a gente ouviu isso. Então, como algumas pessoas acreditavam, virava um código interessante.

DANIELE AVILA – Fica um jogo entre o público. A ficção da peça que não começa se estabelece também.

CHRISTIANE JATAHY – E a gente já anunciava isso no título: todas as histórias são ficção. Mas o “como” os atores faziam, mais do que “o quê” os atores faziam, ia ou não credibilizar. Porque quando você diz que não é ficção, você não pode fazer como se fosse ficção, mas é claro que você tá fazendo uma ficção. É por isso que essa ideia de momento presente é tão importante. Porque se eu estabeleço que é uma ficção, por exemplo, quando você tá contando uma história conhecida, um Nelson Rodrigues, em que eu sei essa história, você sabe essa história, de alguma maneira a gente já tá de acordo. A gente brinca sobre o “talvez não seja uma ficção”, ou “talvez não seja tudo ficção”. Diante disso, alguma coisa ali tem que ser diferente, pra que eu, como espectador, olhe praquilo e tenha a dúvida. Eu não quero dar a certeza. Porque a certeza é impossível. Porque é óbvio, é teatro: é claro que é ficção. Mas a dúvida é o que faz você olhar pro lado. É esse jogo. Teve até um crítico que veio falar com a gente, o Sérgio Sálvia, que fez uma crítica incrível da A falta, foi ver uma segunda vez e disse: “Gente, é a mesma coisa!”. E eu disse pra ele “Mas é claro!” E isso tem a ver com o como. Quando era bom era assim, as pessoas não identificavam que aquilo podia ser repetido daquela forma.

CRISTINA AMADEO – No Corte seco tem uma questão pra mim que é diferente. Durante o espetáculo, tem horas em que eu embarco na ficção e num segundo depois eu já saio dela imediatamente. Por exemplo, na hora em que tem a história do roubo do carro, o Leo volta e diz “Tem um Peugeot, etc”, eu, como atriz, sei que aquilo é mentira, que não tá havendo roubo nenhum. Então, quando eu volto, eu volto tentando manter uma ficção. Imediatamente depois, quando o Paulo diz “Essa história é minha”, aquilo pra mim quebrou: sou eu, Cristina, eu sei que aquela história é do Paulo, quebrou a ficção ali. Mas pra um segundo depois já voltar, porque eu tô entrando numa história com a Stella.

CHRISTIANE JATAHY – O Corte seco tem uma coisa de ilhas de ficção. É cheio de ilhas.

CRISTINA AMADEO – Eu fiquei tão preocupada em criar a ficção depois da A falta que ninguém me chama de Cris nesse espetáculo.

CHRISTIANE JATAHY – Mas a gente conversou sobre isso, de evitar se chamar pelos nomes.

CRISTINA AMADEO – Mas tem o Du, a Branca, a Stella eu chamo de Stella algumas vezes. O Ricardo se autodenomina Ricardo.

CHRISTIANE JATAHY – Mas é sempre meio de fora, quando o Ricardo fala “Eu sou Ricardo”… Mas faz parte. Porque o Corte seco é essa ideia de criar Short Cuts de ficção.

DANIEL SCHENKER – O fundamental é que seja vivo, que seja atual, que seja presente diante do espectador. Mas pra que seja presente diante do espectador, eu preciso que seja ensaiado, preparado, estruturado. Então tem aí talvez um paradoxo entre estruturação e espontaneidade, um presente que existe porque houve uma preparação pra que ele aconteça, tem um jogo temporal que eu queria que vocês comentassem.

CHRISTIANE JATAHY – Essa é a questão vital do método, ou da pesquisa, que tá principalmente ligada ao trabalho do ator. Que ator é esse? A gente fala muito sobre isso. Na minha opinião, é através desse como que o ator faz isso que se dá. Porque, de fato, aquilo precisa ser ensaiado, estruturado, de alguma maneira, pra que então ele possa ser ventilado, pra que ele possa voltar a ser aberto. Essa ventilação é uma qualidade que eu acho que o ator tem que estar trabalhando – que uns conseguem mais outros conseguem menos, mas é onde a gente fica em cima – que é a qualidade de reposta. Resposta a tudo o que tá acontecendo à sua volta. Porque essa sensação do presente, ela é muito sutil. Por exemplo, eu tô falando com você e ao mesmo tempo eu percebo a sensação do vento e isso me modifica. Mesmo que seja muito sutilmente. E o fato de que nós dois percebemos a sensação do vento naquele dia, que não tem todos os dias, coloca os dois num momento que não é combinado, porque não poderia ser. A peça é ensaiada, mas alguma coisa acontece ali que tá no presente de todo mundo. É nesse sentido que eu falo do momento presente. E isso se estende a milhões de pequenos fatores, se você for ver. Porque a plateia é um fator muito forte nisso e ela é nova a cada dia, o próprio outro que tá fazendo a cena com você é incrivelmente outro a cada dia. Se você olha, ele te dá muitas informações novas e se você se relaciona diferentemente com aquilo, sem se preocupar tanto onde você tem que chegar, mas em cada ponto da coisa, você não vai chegar da mesma maneira lá. Talvez uma cena não fique tão aberta, tão amplificada emocionalmente porque aconteceu alguma coisa aqui. O presente muda o percurso, mas a cena, o texto, a relação dos dois se mantém. É paradoxal, mas as coisas se juntam. E a tentativa disso, também em relação ao momento presente – e aí voltando a tratar da relação com a ficção e a realidade –, é um desejo de tentar trazer pra cena uma aproximação do que é a vida. Porque a vida tem essa qualidade. E o teatro se distancia da vida quando ele tenta naturalizar e fazer com que as coisas estejam todas sob controle. E aí você vê, na verdade, um congelamento da vida. Ela é muito cheia de imprevisibilidades. Tem uma coisa muito legal que é o objetivo secreto, que faz você estar no outro o tempo todo. Se eu quero alguma coisa do outro, por exemplo, agora, eu tô querendo te convencer de que o que eu tô falando é muito interessante… (risos) Se eu tô realmente querendo te convencer de que o que eu tô falando é interessante, eu tô o tempo todo em você. E aí, a cada olhar teu pra baixo, a cada movimento, isso transforma o meu discurso. Quando eu passo a ser só o discurso, já não me interessa mais que você ache interessante o meu discurso. Eu acredito que isso serve pra qualquer peça. Você pode levar isso pra qualquer lugar. Mas nesse trabalho, isso é imprescindível.

CRISTINA AMADEO – O que não significa que você vai fazer as mesmas escolhas sempre, ou que você não vai fazer as mesmas escolhas sempre. Na A falta, volta e meia tocava o celular de alguém. Isso virou texto. “Aqui nessa peça, você pode atender o seu celular…” Porque a peça não tinha começado, então tudo bem. Outro dia, tocou um celular no Corte seco. E um ator falou “Você não vai atender o celular?” E eu pensei que nessa peça não era o caso. Mas você pode até dizer pra plateia, “Desculpa, mas você pode desligar o seu celular?” porque nesse lugar, eu tô fazendo uma ficção, eu tô fazendo uma cena.

CHRISTIANE JATAHY – Mas de qualquer maneira é uma peça que permite você falar com o espectador.

CRISTINA AMADEO – Claro, mas não pra atender. São escolhas diferentes.

CHRISTIANE JATAHY – O que importa é que existe o espaço pra isso. E é claro que essa ventilação pode ser uma porta gigantesca ou pode ser uma fresta. Eu lembro da Malu no Conjugado, uma peça que inaugura esse trabalho, apesar de que era muito mais cartesiano. Mas tinha também a presença da televisão.

DANIEL SCHENKER – O peixe.

CHRISTIANE JATAHY – O peixe e a televisão eram elementos completamente incontroláveis. O peixe reagia como queria e a televisão também. Então ela tinha que estar dialogando com aquilo o tempo todo. Eu lembro que no dia da estreia, ela não conseguia abrir a persiana e ela disse “Chris, eu não tô conseguindo abrir a persiana.” Então eu falei “Levanta.” Ela disse: “Tá bom.” E começou a peça como se aquilo fosse parte. É claro que todo o mundo percebeu que não era. Mas aquele momento, acho que dá um alívio pro espectador. Isso nem precisa acontecer. Mas é o acordo.

DANIELE AVILA – Como vocês vêm o lugar onde vocês estão no teatro carioca? Como vocês vêm o contexto do teatro carioca hoje?

CHRISTIANE JATAHY – Quem faz teatro acaba vendo pouco teatro. Vocês vêm mais teatro que a gente. Eu vejo alguma coisa, vejo coisas de pessoas próximas, mas não vejo tudo. Então às vezes eu me vejo inserida dentro de uma coisa que eu nem sei que eu tô inserida. Às vezes as pessoas relacionam coisas que eu nem sei que estão sendo relacionadas. Eu acho que tem uma coisa boa e uma coisa ruim. Tem uma coisa boa que, nos últimos anos, começou a haver realmente um interesse, um movimento, de algumas pessoas – e isso foi se espalhando – que tem a ver com um teatro mais de pesquisa. E eu acho que isso aparece. Dez anos atrás, era mais árido o espaço para que novos pensamentos aparecessem, tanto que eram muito aparentes esses novos pensamentos. O Gerald, por exemplo, aparecia muito, mas era um, dois ou três. E as outras coisas pareciam mais distanciadas disso. Agora eu acho que tem mais gente fazendo. Eu tenho uma sensação de onda, de movimento de onda. Até quando a gente fez A falta, o Conjugado, tinha uma coisa, tinha o Jefferson Miranda, e agora eu vejo um monte de outros grupos, de gente até mais jovens do que a gente. É como se tivesse num crescente, que é positivo. Por outro lado, tem um grande confronto de interesses que é uma celebração do “bom”, por um outro tipo de teatro que é muito diferente desse movimento de que eu tô falando. E essa celebração se dá em muitos aspectos, em premiações, em espaços, em críticas e tal. Então, é curioso que a gente esteja conversando sobre uma coisa desse tamanho e que todo o mundo que tá perto do teatro tá percebendo, e que isso não esteja sendo explicitado, comemorado como deveria. Acho uma pena, porque a gente tem uma oportunidade de arejamento, até mesmo sobre a questão do público. Eu fico muito impressionada porque as pessoas querem ver outras coisas. A gente não tem problema de público. Tudo bem que o nosso ingresso é muito barato, mas independentemente disso, tem público. Eu tenho certeza que as peças do Kike não têm problema de público. Tem gente que tá querendo ver. Eu imagino que isso aconteça com muitas outras peças de que eu não tô próxima, mas de que vocês estão próximos.

DANIELE AVILA – Às vezes eu vou numa peça e vejo um determinado público que eu nunca veria em outra peça. Depois vejo outra peça e encontro ainda um outro público, que eu não veria naquela outra peça. Mas eu acho que isso não é claro, que existe um movimento que ainda diz “Teatro bom é assim.” E essa fala não tem esse arejamento. Talvez, se tivesse, as suas peças e as do Kike teriam ainda mais público, ou ainda essa peça do Antonio Fagundes, Restos, teria um outro público, diferente do que ele vai ter lá no Shopping da Gávea.

CHRISTIANE JATAHY – Se tivesse mais diálogo.

DANIELE AVILA – Se essa fala dissesse também outras coisas sobre teatro. Tem um público que está sendo segregado e que tem que correr muito atrás de outra informação. Acho que o Daniel tem como falar bem sobre isso.

DANIEL SCHENKER – Eu tenho a impressão de que, antigamente, num certo sentido, bastava o tijolinho. Saía o tijolinho no jornal, tal peça, em tal teatro e em tal horário e isso valia, isso era uma fonte de informação. A impressão que eu tenho é que na medida em que o tempo passou, o tijolinho por si só se tornou invisível.

CHRISTIANE JATAHY – A pessoa só vai ver pra saber o horário.

DANIEL SCHENKER – Antigamente as pessoas olhavam ali o que efetivamente tava em cartaz.

CRISTINA AMADEO – As pessoas procuram o anúncio. Querem ver uma foto.

DANIEL SCHENKER – Exatamente.

CRISTINA AMADEO – Uma matéria. Às vezes, nem vai ler a matéria…

DANIEL SCHENKER – Só o título e a foto.

CHRISTIANE JATAHY – Acho que fazem muita questão de saber o que disseram sobre. Porque isso que você tá dizendo do tijolinho é uma busca. A outra coisa é quando isso já vem pra mim, já vem mastigado, então eu já sei: “Isso é legal, isso é assim e assim”.

DANIELE AVILA – Mas de um modo geral, tem um discurso que diz que o “bom” é uma coisa só.

DANIEL SCHENKER – Mas tem uma coisa no Corte seco, com relação aos atores. Eles recebem os espectadores. Por um lado, isso desglamouriza o lugar do ator, um lugar em que o ator tem que ficar salvaguardado. Por outro lado, em que medida esse lugar cotidiano de receber o espectador, de conversar com o espectador antes do espetáculo propriamente dito começar, em que medida essa esfera cotidiana é sempre boa?

CHRISTIANE JATAHY – O que eu peço pra eles, e espero que eles estejam fazendo (risos), não é que eles conversem com os espectadores…

CRISTINA AMADEO – A gente até faz isso numa primeira instância ali na porta.

CHRISTIANE JATAHY – Mas nem é o ideal. A ideia é que eles falem textos, como se fosse de uma maneira muito cotidiana, mas que vão se relacionar com a peça. Foi até bom você falar porque eu tô com isso na minha cabeça direto. (risos) Eles estão se aproveitando da possibilidade dos amigos e falando outras coisas. Então é o falso jogo do “eu tô recebendo você.”

DANIEL SCHENKER – Eu queria fazer uma pergunta com relação a essa coisa da construção, que eu acho que tem a ver com a busca do Jefferson Miranda, que é não deixar o trabalho de construção à mostra. A impressão que eu tenho é que existiu todo um trabalho de construção, de estruturação por parte dos atores, e o desafio agora é não deixar essa construção à mostra, talvez até fazendo o espectador pensar que é absolutamente espontâneo, que é ali na hora. Sem que tenha qualquer preparação anterior. Não sei se isso procede…

CHRISTIANE JATAHY – Em parte sim, mas acho que… Tem isso sim, de fato tem. Nesse sentido há esse diálogo, mas eu não acho que seja só entre nós, acho que isso tá aí. Tem muita coisa aí. Mas acho que – falando especificamente do meu trabalho – às vezes eu quero mostrar, dentro disso, eu quero. No Corte seco, muito. Na A falta também, como quando eles colocavam um copo na cabeça, ou quando se construía uma cena e um dizia “Coloca um refletor aqui.” Ou seja, como a questão da metalinguagem está presente no trabalho, nos três, se você for pensar, isso acaba quebrando. É como se você tivesse uma camada que eu construo pra não deixar aparecer, Mas aí por debaixo aparece uma outra que, pra mim, é como se dissesse “É teatro”. Como quando eles armam aquela imagem com os copos ou quando eles botam as máscaras. São momentos da A falta que eu acho que têm essa camada, essa janela. No Corte seco, tem isso muito. A gente quebra isso o tempo inteiro, no sentido de que a gente deixa aparente essa estrutura. A gente constrói a estrutura, esconde a estrutura e aparenta a estrutura. Então eu acho que num certo aspecto é isso, é desaparecer com o que constrói e, ao mesmo tempo, abrir de repente que tem uma estrutura e voltar a fechar. No meu caso é isso. No filme da A falta também.

DANIEL SCHENKER – Mas será que tem uma diferença entre a estrutura do espetáculo e a estrutura do ator? Porque no espetáculo existe a coisa do projeto ser o processo, de propositadamente evidenciar o processo. Você vê a construção e a desconstrução da cena. Mas, no trabalho do ator, não é que eu veja algo pronto, no sentido de cristalizado, mas o ator não tá apresentando um rascunho ali. O ator tá apresentando algo que foi construído. Então às vezes eu fico com essa impressão da construção à mostra: ela talvez se dê mais na esfera da construção da cena, do espetáculo, que propriamente na construção do ator.

CHRISTIANE JATAHY – Eu misturo tanto, tanto, tanto, que eu acredito que aquele personagem é aquele ator. A outra coisa é que eu misturo tanto, tanto, tanto, que eu acredito que aquele ator é aquele personagem, mas de vez em quando eu vejo que ele é um ator. E, nesse momento, essa máscara transparente cai. Pra haver essa queda da estrutura, tem que haver uma queda da máscara. Eu digo que isso é tão misturado que é real. Ao mesmo tempo é ficcional. Mas pra eu poder ir mais fundo nessa questão do real, que pra mim é muito importante artisticamente nesse momento, eu preciso arrancar a ilusão do personagem algumas vezes. No filme, tem um momento, por exemplo, em que eu mando um torpedo pra eles e aparece eles vendo o torpedo. Naquele instante, o que eu gostaria, como diretora, que o espectador se perguntasse é “O que eu estava vendo era uma ficção, era uma construção e agora eu passei a ver o real? Mas eles continuaram como se não tivesse havido quebra.” Eu tô tentando construir uma coisa ainda mais híbrida mesmo. E pra isso eu preciso quebrar. Senão, eu vou dar a sensação de muita proximidade. O que também é muito interessante, mas eu acho que é um pouquinho diferente.

CRISTINA AMADEO – Eu acho que a gente vai lidando com uma fração de segundo. Acho que porque eu tô trabalhando com a Chris já há algum tempo, tem horas que eu não consigo mais reagir quando tem algum comentário de outros atores, perguntando se vai repetir a cena… Eu já sei que vai repetir a cena. Eu tô ali sentada como atriz e eu sei que aquilo vai acontecer de novo. Eu não consigo mentir mais pra mim. Por outro lado, por um segundo, eu vou lá e valido e reajo a alguma coisa como se ela fosse nova.

CHRISTIANE JATAHY – Eu acho que na A Falta isso é ainda mais claro. Por isso eu acho que o filme é onde a peça sempre quis chegar. Como criadora mesmo, eu olho o filme hoje em dia e as pessoas podem gostar ou não gostar, mas eu tenho certeza absoluta de que ali a gente chegou onde a pesquisa de linguagem em relação ao ator, principalmente, mais até do que na estrutura, pretendia chegar. E é perigoso. Isso é muito importante. É perigoso. Tem uma zona movediça ali que precisa existir. Pra mim é isso o que vai colar com a coisa da performance.

CRISTINA AMADEO – E às vezes as coisas vão por água abaixo. Eu penso que tô canastrando brabo e que ninguém tá acreditando em mim. Nem eu.

CHRISTIANE JATAHY – Mas no momento em que você pensa isso, já mudou. Alguma coisa acontece diferente. Mas você perguntou isso porque você vê semelhanças nesses trabalhos.

DANIEL SCHENKER – Eu tenho sentido bastante um certo apagamento da construção, o que é uma coisa que acontece muito no cinema. Determinados filmes brasileiros têm um apagamento de uma ideia tradicional de personagem. Você vê o filme e a sensação que você tem é a de que você tá diante de pessoas que nasceram ali e não de atores que estão interpretando um personagem. Então esse apagamento me chama a atenção.

CHRISTIANE JATAHY – Talvez no sentido de não deixar ver a construção do personagem, você não vê o virtuosismo do ator que constrói aquele personagem. Por exemplo, eu vejo a Meryl Streep trabalhando, eu acho ela incrível, mas eu vejo a construção. Nesse sentido, eu acho que existe um apagamento mesmo, que é não deixar aparecer que você tá construindo alguma coisa e, portanto, fazer você esquecer que aquilo é construído. Porque no final das contas essa é a ideia da aproximação e da identificação. Quando você esquece que aquilo é construído, você acredita novamente, você para de ver como admirador, você passa a ver como uma pessoa. Acho que tem isso mesmo. E com relação à minha questão, é isso: aproximar pra pessoa abrir a porta. E na hora que se abre essa porta, eu tenho vontade de falar “Mas tem uma outra coisa aqui.” Porque eu acho que isso faz você voltar a pensar e não ficar só na relação emocional com aquilo. E isso não é muito diferente conceitualmente da ideia do Brecht, de aproximar e distanciar. Como é o distanciamento na contemporaneidade? Eu acho que quando você coloca isso você de alguma maneira faz o espectador ser ainda mais colaborador e ele passa a ser co-criador realmente daquilo. Eu acho que ele muda na relação com a obra. Essa é a pesquisa.

Site da peça Corte Seco
Leia também a crítica de Daniele Avila Small sobre a peça Corte Seco.

Vol. III, nº 17, janeiro de 2010

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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