Apesar do vento

Crítica de Uma peça para Fellini, espetáculo solo de Marcia do Valle

24 de junho de 2022 Críticas

Como aconteceu com diversos projetos, a pandemia atrasou em dois anos a estreia de Uma peça para Fellini, projeto idealizado pela atriz e diretora de teatro Marcia do Valle com o diretor e produtor de cinema Cavi Borges. A proposta era estrear em 2020, ano de celebração do centenário de nascimento do cineasta italiano Federico Fellini, a quem o espetáculo presta uma homenagem franca e afetuosa. O teatro e o cinema estão juntos neste projeto em diversos aspectos. Além da parceria entre Marcia e Cavi, o espetáculo se dá como uma espécie de resposta às referências que Fellini faz ao teatro em seus filmes e acontece dentro de um cinema, no foyer do Estação Net Rio, em Botafogo, no Rio de Janeiro, tendo feito parte das ações contra a ação de despejo que ameaçou a continuidade deste espaço tão importante para o cinema nacional na cidade.

O espetáculo traz frases do cineasta e apresenta imagens de seus filmes, entremeadas com depoimentos da atriz e aparições de uma personagem fictícia. A dramaturgia de Joaquim Vicente é despretensiosa, talvez até despretensiosa demais, na medida em que se dedica à função de organizar citações e pequenas cenas, sem se colocar em uma dimensão autoral mais propositiva. Isso não é necessariamente um problema, porque o foco mesmo do trabalho me parece estar no modo como a atriz apresenta a sua admiração e amor pelos filmes e não no aprofundamento das questões que poderiam ser exploradas na fértil relação entre a filmografia felliniana e a linguagem do teatro. Fica, no entanto, uma sensação de que o projeto poderia ir mais longe. A peça me fez imaginar, por exemplo, uma série de peças curtas, com diferentes perspectivas autorais e de encenação, que pensassem a relação entre cinema e teatro nos filmes do Fellini, ou uma criação com o Grupo Galpão a partir de situações e imagens fellinianas… Enfim, não é nada mal quando um espetáculo faz a gente sonhar com outros.

Voltando à peça que realmente existe e que está agora no finalzinho da sua temporada de estreia, é importante dar atenção a uma das proposições que sustentam a construção cênica dessa homenagem, a personagem que sintetiza a colocação central do espetáculo. É pelas palavras de uma faxineira que a atriz verbaliza o pensamento de que os filmes de Fellini são acessíveis a qualquer pessoa, que eles não são “difíceis”, não foram feitos para uma suposta casta intelectual. Embora essa ideia seja colocada de forma leve e bem-humorada, a questão ressoa fundo em quem se pergunta por que tanta gente pensa o contrário. E não deixa de ser um pouco triste perceber que essa proposição atenta para preconceitos da sociedade em que vivemos com relação às hierarquias sociais e relações de trabalho, com pressuposições sobre as sensibilidades de acordo com situações financeiras. Até porque a associação entre ter “poder aquisitivo” (coloquei entre aspas porque acho essa expressão cafona) e ter sensibilidade para as artes é simplesmente estapafúrdia. As elites financeiras do Brasil são um exemplo até exagerado disso.

Daí que esse recado funciona como um convite e uma provocação. O convite é para quem está disposto a olhar de novo, a olhar diferente, a quem nunca parou para se deixar seduzir por filmes (ou peças) que não demandam nada além da nossa sensibilidade. A provocação é para quem se considera de uma casta superior, embora sequer desfrute do acesso que tem às pequenas maravilhas que um filme – essa coisa tão gigante e tão banal – pode fazer com os nossos dias mais esvaziados de sentido. Talvez a peça só alcance quem já está em sintonia com os idealizadores do projeto, mas isso também não é pouca coisa. Uma vez, depois de apresentar um espetáculo no Sesc Madureira, um espectador começou a conversar comigo e me disse: “Sabe por que eu gosto de vir aqui? Porque eu vejo que eu não estou maluco.” Às vezes a gente só precisa disso. Saber que existem pessoas que sentem e pensam coisas parecidas e ainda se dão ao trabalho de montar peças sobre isso. E não é pouco trabalho montar uma peça. É como manter uma vela acesa ao longo de uma procissão atravessada por um vendaval – imagem que aparece em um relato de Fellini logo no início do espetáculo.

Marcia do Valle em Uma peça para Fellini. Foro: Cláudia Ribeiro.
Marcia do Valle em Uma peça para Fellini. Foro: Cláudia Ribeiro.

Não é na espetacularidade, nem em qualquer exibição de virtuosismo, que o espetáculo se firma, e sim na sua honestidade e coerência. A atuação vibrante de Marcia do Valle não se pauta por uma exibição de tecnicalidades, mas pelo vínculo estreito que há entre o que a artista está fazendo em cena e a motivação que ela tem para estar ali. Na plateia de mesas e cadeiras do foyer de um querido cinema de rua da zona sul do Rio, estamos diante de alguém que compartilha uma coisa que é fundamental para ela e com a qual podemos nos conectar. Seja porque também amamos esses filmes, ou porque amamos outros filmes do mesmo modo, porque temos lembranças do espaço de trocas e conversas das locadoras de vídeo ou por tantas outras ressonâncias que a peça reverbera em quem também precisa, de vez em quando, verificar que não está louco. Ou que estamos, sim, completamente loucos, mas não estamos sozinhos na recusa categórica de uma sanidade burocrática na nossa relação com o mundo.

Uma peça para Fellini não homenageia apenas o diretor que está ali em evidência, mas também a inesquecível Giulieta Masina, atriz que o espetáculo também reverencia. Só que a ideia mesma de homenagem parece pequena para o que está em jogo no gesto de fazer essa peça. A relação que as pessoas têm com suas referências, com aqueles e aquelas que lhes inspiram, movem, arrebatam, pode ser uma parte significativa das nossas vidas, algo que contribui para fazer a gente querer viver todos os dias e ver beleza num mundo que escancara seus horrores diariamente diante de nossos olhos. E isso não funciona só nas artes. Em diversos ofícios e áreas de pesquisa, ou mesmo na vida cotidiana, é interessante pensar nessas figuras a quem nos sentimos profundamente ligadas, como se de algum modo precisássemos dar continuidade ao que elas fizeram, ao que elas deixaram, como se elas fossem parte daquilo que nos constitui.

E assim, marcando posição num mundo que reiteradamente convoca a nossa insensibilidade e nos impele a rejeitar de antemão o que parece estranho ou inadequado, essa peça funciona como uma singela fonte de calor e energia, ao colocar em cena o entusiasmo da relação entre uma espectadora e uma obra. No caso, a espectadora é também atriz e diretora e se dispõe a expor com alegria e sinceridade o substrato mais íntimo daquilo que dá sustentação (embora nem sempre provenha sustento) para a prática artística e, em alguma medida, para o simples viver a vida (quem sabe uma outra forma de prática artística): a sensação de que um filme, um livro, uma peça, ou ainda a filmografia inteira de um artista, por algum motivo que vai muito além da qualidade e da técnica, faz um sentido imenso e faz tudo valer a pena.


 

Daniele Avila Small (Rio de Janeiro, 1976) é artista de teatro, crítica e curadora. É Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO e realiza seus projetos artísticos com o coletivo Complexo Duplo. Idealizadora e editora da Questão de Crítica desde 2008, é presidenta da seção brasileira da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IATC).

Vol. XIV nº 73, junho a dezembro de 2022

Foto em destaque: Alvaro Riveros.

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