Tensões entre teatro e cinema: notas a partir da MITsp e de experiências de infância

31 de agosto de 2015 Estudos

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: A partir da análise de quatro espetáculos apresentados na MITsp 2015 – Woyzeck; Senhorita Julia, Julia e E se Elas Fossem para Moscou? –, a autora analisa relações entre teatro e audiovisual, considerando as tensões entre presença e ausência, corporificação e desincorporação, territorialização e desterritorialização, tempo real e tempo ficcional, passado e presente. Na segunda parte do artigo, investiga outras relações possíveis entre cinema e teatro pela perspectiva das diferentes experiências propiciadas ao espectador.

Palavras-chave: Teatro, cinema, infância, convívio, tecnovívio

Resumen: Con base en el analisis de cuatro piezas presentadas en MITsp 2015 – Woyzeck; Miss Julie, Julia e E se Elas Fossem para Moscou? – la autora del articulo analisa relaciones entre teatro y audiovisual, teniendo em cuenta las tensiones entre presencia e ausencia, corporificación e desincorporación, territorialización y desterritorialización, tempo real y ficcional, pasado e presente. Em la segunda parte del articulo, investiga otras relaciones posibles entre el cine y el teatro desde la perspectiva de las diferentes experiencias que ofrecen al espectador.

Palabras-clave: Teatro, cine, infancia, convivio, tecnovivio

 

  1. Quatro cenários para corpos, tempos e espaços ambivalentes

Primeiro cenário: enquanto os atores ocupam nichos transparentes, como aquários, no nível do palco, três telões no alto e ao fundo exibem imagens praticamente iguais às que ocorrem ao vivo, exceto por algum detalhe, alguma mudança no espaço revelada pelo enquadramento.

Segundo cenário: a grande tela em suspenso no alto exibe o filme que está sendo produzido ao vivo pelos atores e técnicos no palco.

Terceiro cenário: por uma porta aberta, vemos os atores contracenarem diante de uma câmera, enquanto a imagem nos é dada por completo (?) no telão ao lado.

Quarto cenário: as atrizes representam entre câmeras uma situação convivial com o público, enquanto na sala ao lado outra plateia assiste à mesma representação cujas imagens são montadas como um filme.

Foto: Ligia Jardim.
Foto: Ligia Jardim.

Quatro[1] configurações distintas de um teatro que acolhe o vídeo ou o cinema como parte integrante de sua dramaturgia (por vezes, é o dispositivo central) vistas na MITsp 2015 – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo: Woyzeck (direção de Andriy Zholdak, Ucrânia); Senhorita Julia (Katie Mitchell, Inglaterra/ Alemanha), Julia e E se Elas Fossem para Moscou? (Christiane Jatahy, Brasil). A partir delas, pretende-se pensar sobre as relações entre o teatro e o cinema na contemporaneidade, considerando que algumas das principais marcas dessa interação ou justaposição são as tensões entre presença e ausência, corporificação e desincorporação, territorialização e desterritorialização, tempo real e tempo ficcional, passado e presente. Tensões irredutíveis, não excludentes, que encontram potência justamente na experiência simultânea ou oscilante dos dois polos dos binômios – ou ainda na dissolução da estrutura de polaridade.

Vamos ao primeiro caso. Mas, antes, um aparte: toda escrita sobre teatro, toda crítica, deveria ser uma admissão da perda. Ao menos quando se liberta da projeção de um espectador ideal ou de uma apresentação ideal para debruçar-se sobre a efemeridade precária que é constitutiva do teatro. Neste ensaio, cuja escrita está distante dois meses já das apresentações das peças ora analisadas, o tempo age sobre a memória, e interessa menos escrutinar incansavelmente os meandros das encenações do que deixar reverberarem algumas questões específicas, que indagam sobre o estatuto da imagem no teatro do nosso tempo em sua faceta multimídia, no entrecruzamento com o cinema. A referida tensão entre a imagem do corpo presente e a imagem do corpo ausente.

Woyzeck é encenado sob o signo do caos, intensamente polifônico. Na profusão de estímulos, visuais sobretudo, os três telões são somente mais uma fonte a compor o grande quadro pelo qual o espectador adentra, passando literalmente por dentro de uma sala-cenário, para depois sentar-se frontalmente diante do palco em posição contemplativa, enquanto a sala preambular torna-se acessível somente por meio de imagens projetadas nos telões. Acesso, aliás, é uma palavra-chave para uma das (inúmeras) possibilidades de recepção criativa[2] do espetáculo. Tanto os “aquários” quanto os telões podem ser vistos como mediações entre o espectador e a ação, quando não é o próprio meio que, mais do que recortar a realidade e permitir vê-la sob determinado prisma, configura a ação e o (efeito de) real. Nesse sentido, a escolha por projetar em telas – em vez de qualquer outro: parede, corpos, etc. – propicia a vinculação imediata com os meios de comunicação de massa que se utilizam do mesmo suporte em nossa sociedade espetacularizada.

Nas projeções, ora aparecem imagens do fora do espaço cênico que não seriam acessíveis à visão da plateia senão pela mediação tecnológica, ora simulacros mais ou menos fiéis do que se está a ver naquele mesmo instante em um dos cantos do palco. Então, quando se colocam simultaneamente diante do olhar do espectador a cena em carne e osso dos atores percorrendo os aquários e a mesma cena descarnada, fantasmagórica, dos vídeos projetados, o que nos olha são as diferenças: um enquadramento que ressignifica a ação, uma mudança de cenário que fornece novos signos ou qualquer sinal de que não se trata da reprodutibilidade ao vivo da performance dos atores, mas, sim, de outro espaço, outro tempo, outros sentidos, simulando reproduzir algo que o olhar atento identificará como diferente.

A que (não) temos acesso em uma cena que se passa diante dos nossos olhos, mas que, no entanto, é recortada e interposta por uma camada de acrílico? E a que (não) temos acesso em uma cena que é recortada e mediada pelas tecnologias audiovisuais? No paradigma cinematográfico, o ângulo câmera, o campo de visão, a montagem e a edição impõem-nos silenciosamente um modo de ver, sob a aparência de olhar direto. No contraste entre as duas cenas, a naturalização do artifício se desfaz. Mas não há solução dada: é mais verdadeira a imagem enquadrada na tela ou encenada aquário? Haveria, afinal, uma verdade? Se remetermos para o fora da ficção, isto é, para o contexto sociopolítico de conflitos internacionais (caso da Ucrânia com a Rússia), faz-se o paralelo com a impossibilidade de acessarmos diretamente a realidade daqueles povos. Quando o acesso ao “outro” se dá através de meios de comunicação de massa ou mesmo independentes, o que a imagem recorta, altera, ressignifica? Como turistas, vemos o que além de aquários? Sob ponto de vista do quê – ou de quem – o mundo nos é dado a ver? Eis uma questão estrutural depreendida da organização material da encenação de Zholdak.

Outro aspecto interessante para esta discussão é a disputa da atenção da plateia entre as telas de projeção e os corpos presentes. Como é incapaz de apreender o todo que está diante de si, cabe ao espectador escolher para onde olhar – o que lhe permite tomar uma posição mais ativa no acontecimento teatral. Pode optar por mirar o palco, e acompanhar o oscilar entre o vínculo territorial instaurado pela copresença dos corpos fenomênicos dos atores e a desterritorialização de seus corpos semióticos; ou fitar a tensão entre a desterritorialização desses mesmos corpos como imagem e sua materialidade reterritorializada quando identificados como luz na superfície da tela. Copresença convivial ou ausência que ilude presença por um mecanismo psíquico próprio da infância – o de presentificar o que está diante dos olhos? O erotismo do corpo ou o fetiche do fantasmático?

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Em Julia tal dilema se repete, concentrado, quando a diretora Christiane Jatahy coloca lado a lado o telão e o cenário onde os atores atuam. A escolha do espectador, contudo, guarda um desafio a mais, que é o esforço de enxergar através das frestas de um cenário parcialmente fechado caso opte por não perder de vista os corpos fenomênicos. A cena-chave dessa disputa é a relação sexual entre Julia e Joelson, performada diante de uma câmera na parte de trás do cenário, podendo somente ser entrevista pelo espectador. Feito voyeur, cabe a este uma escolha estética e ética entre duas formas de invasão da intimidade: os fragmentos de corpos nus que encenam um ato sexual (olhar que exige esforço contra as barreiras do cenário) ou a imagem ilusória fetichizada do ato sexual realizado (dada em primeiro plano pelo telão).

Por um encadeamento da própria encenação, conduzida pela atriz Julia Bernat em uma triangulação constante com a plateia (seja pelo endereçamento de algumas falas ou de olhares), é possível dizer que o corpo fenomênico dos atores está em primeiro plano em relação à tecnologia. De certa maneira, é como se o corpo de Julia “mediasse” a relação entre o público e a tela. Esta é uma percepção admissível em uma configuração palco-plateia como a vista nas apresentações feitas durante a MITsp, em um palco contíguo à plateia, que permitia a proximidade de atores e espectadores, o olho no olho, a curta distância focal. Oposto era o efeito quando Julia foi apresentada no Festival de Curitiba de 2012, no palco italiano do Teatro Bom Jesus, onde a distância contemplativa reduzia as afetações geradas pelos corpos fenomênicos dos atores, privilegiando a imagem na tela.

Julia opera ainda a exposição dos mecanismos de fabricação da ilusão na construção da cena – no caso do teatro, a separação entre atriz e personagem; no filme, a presença do cameraman para quem os atores representam e repetem cenas e o recorte de folhagem usado para iludir um jardim realista. A justaposição das duas linguagens na mesma encenação evidencia aspectos da construção da ilusão em cada uma delas. Se no teatro estamos diante da materialidade dos corpos e objetos, mas o efeito de realidade está sujeito à precariedade da artesania, no cinema, a ausência material dá lugar ao efeito de presença (Féral, 2012) e ao “realismo congênito do cinema” (Bazin, 2014). Ou, como diria Jacques Aumont (2008): “Vamos ao cinema para estar frente a qualquer coisa, que está separada de nós por uma rampa real ou virtual, e que vai, durante o tempo de uma representação, oferecer-nos um simulacro aceitável de mundo”.

Foto: Ligia Jardim.
Foto: Ligia Jardim.

A exposição do mecanismo de construção desse simulacro é central em outra peça, Senhorita Julia. A diretora Katie Mitchell faz um recorte radical no texto de Strindberg pela perspectiva da empregada da casa, Christine, e transpõe a fábula para a linguagem cinematográfica, projetando em uma tela de cinema a montagem das imagens que estão sendo produzidas simultaneamente no cenário armado sobre o palco, às vistas do público, por atores, dublês, sonoplastas etc. Todos, sejam técnicos ou atores, performers que formam um mesmo corpo coletivo maquínico, como engrenagens rigorosamente ajustadas para a perfeita criação da ilusão das imagens em movimento. A distância focal do palco italiano é determinante para que se veja o quadro todo, mas novamente cabe ao espectador optar por onde deterá sua atenção. Tal como em Julia, corpo e tela coexistem em cena, contudo a relação que se estabelece entre eles é de outra ordem, não mais a mediação da tela pelo corpo nem mesmo a interação; em Senhorita Julia, o corpo está em função da tela, é a peça que faz o mecanismo funcionar e o filme – herdeiro do intimismo de Ingmar Bergman – existir.

A territorialização propiciada pelos atores em convívio tensiona-se com a desterritorialização pela ficção audiovisual. Com o deslocamento da fábula strindberguiana para a tela, enquanto no plano do palco o desvelamento da artesania dos processos produtivos opera pela repetição, a matriz cinematográfica sobressai à teatral. Senhorita Julia, então, habita um entre instável entre o que se costuma entender por teatro e por cinema. A investigação dos limites entre essas duas linguagens não contribui tanto para ampliar a experiência teatral quanto o faz pelo cinema, ao inaugurar uma possibilidade de colocar em primeiro plano a dimensão processual não do momento da filmagem – mais frequentemente debatido no cânone das teorias de cinema –, mas do acontecimento cinematográfico, isto é, do evento que ocorre na sala escura com a presença dos espectadores. Nessa inversão de foco, alteram-se os tempos: justapõe-se o presente do momento em que se filma ao presente da projeção. Ao contrário do cinema tradicional, em que se projeta sempre uma imagem de passado, e o espectador se vê essencialmente diante de “um alhures e um antes”.

O filme foi rodado, montado, editado antes de ser projetado à minha frente nesta sala. A experiência da sessão que posso viver unicamente no presente me é dada como a marca atual de uma sequência perdida de acontecimentos passados. (…) Duas cenas, a da produção e a da projeção. A operação cinematográfica é inicialmente a experiência do descompasso e do recompasso entre essas dimensões temporais e espaciais. O filme e o espectador estão na sessão ao mesmo tempo presentes e ausentes um para o outro (COMOLLI, 2008, p. 213).

Senhorita Julia subverte, assim, uma situação entendida como própria do ser-cinema – algo que Christiane Jatahy, por outros dispositivos e com outros efeitos, também vem fazendo em espetáculos como Corte Seco e E se Elas Fossem para Moscou?.

O que distingue o cinema “ao vivo” de um teatro multimídia? O fato de integrar a programação de uma mostra de teatro influi na percepção do acontecimento, dotando o horizonte de expectativas de uma pressuposição de que o que se vá ver é teatro ainda que em uma concepção da cena expandida – em certa medida, em decorrência de uma definição prévia curatorial. Caberia Senhorita Julia em uma mostra de cinema? Mais do que isso, seria um potente contraponto para se pensar esta arte de uma perspectiva processual e expandida, em seus entrecruzamentos com as artes visuais, a performance e o teatro, que os festivais – ao menos brasileiros – ainda pouco contemplam. Quiçá teria impacto análogo ao que Stifters Dinge, de Heiner Goebbels, pela supressão de atores em cena[3], provoca no contexto de uma mostra de teatro.

Foto: João Valério.
Foto: João Valério.

Finalmente, E se Elas Fossem para Moscou? retoma a cisão entre as artes determinando que em uma sala se verá a peça, e em outra, o filme. No teatro, instaura-se a relação convivial – ou a tentativa de intensificar a zona de convívio por meio de falas e olhares direcionados aos espectadores, da oferta de comida e bebida e do convite para adentrar o palco e festejar com as personagens. Tais estratégias conviviais, contudo, nem sempre são suficientes para instaurar de fato um convívio no sentido forte, aquele que mais convergiria com a noção de experiência sustentada por Jorge Dubatti (2014) a partir de Giorgio Agamben (2012), e que estaria no antes da linguagem – na infância da humanidade. Tanto é temeroso afirmar a partir de uma única apresentação que o espetáculo (no potencial do acúmulo de suas temporadas) consegue instaurar tal convívio entre palco e plateia, quanto o é afirmar que uma experiência se instaura a partir da vivência de apenas uma espectadora. Esse tipo de conclusão, se possível for, dependeria de uma investigação exaustiva que somasse outras apresentações e outros depoimentos. Creio mesmo que essa fragilidade seja da natureza do convívio teatral; porém, num sentido mais amplo, não há por que negar que o convívio se instaura no teatro por meio de uma negociação que aproxima os afetos circulantes entre palco e plateia, e que implica os espectadores no acontecimento teatral como aqueles a quem as atrizes interpelam explicitamente, aqueles de quem não se tenta ocultar a presença, mas, sim, investi-la de atenção.

Enquanto isso, no cinema, a relação é de supressão da presença física das atrizes, mas de um efeito de presença (Féral, 2012) gerado pela proximidade da câmera em relação a seus corpos, pelos enquadramentos que dão a ver detalhes, expressões em close. No regime de ilusão, próprio do cinema tradicional, outra é a relação com a infância possível de ser depreendida quando o espectador suspende a descrença e imerge na fábula. Justamente aquela em que se experimenta a presença vivida e ausência real, como o bebê que não tem consciência da ausência daquilo que ele vê como imagem. Contudo, uma linguagem invade a outra, e a ordem que o espectador elegeu para ver peça e filme ou filme e peça pode alterar a experiência.

Assim como a câmera é elemento onipresente no palco e, o que os espectadores viam como corpos vivos torna-se ausente e desencarnado – simulacros – quando ao fim as três atrizes saem de cena; também as imagens antes virtuais para os espectadores do cinema se materializam quando as mesmas atrizes adentram a sala de exibição e o inverso ocorre: os simulacros viram corpos vivos. Na soma dessas duas experiências, há uma complementariedade antagônica que amplia a consciência sobre o que é próprio do acontecimento teatral e o que é próprio do acontecimento cinematográfico, e sobre a zona de tensão em que se desdiferenciam. Porém, há ainda o elemento ordenador: para quem vê primeiro a peça, a relação tradicional do espectador de cinema com a imagem se afeta pelo conhecimento (não mais somente teórico e abstrato, mas prático e concreto) prévio de como as cenas foram gravadas. E o contrário: quem viu antes no cinema, toma parte de um acontecimento sobre o qual já carrega imagens mentais.

A esta altura da discussão, permito-me fazer uma provocação aos pesquisadores e críticos de cinema para que ampliem e atualizem seu olhar sobre o teatro nos debates e estudos comparativos entre essas duas artes. É comum ouvir e ler aproximações que se sustentam ainda em grande parte por uma visão do teatro dramático textocêntrico, fechado num tipo de representação que já não condiz com a realidade expandida das artes da cena. Muitas vezes reduz-se a discussão ao teatro filmado e a outras perspectivas de análise comparada que busquem aproximações e distanciamentos somente em categorias como encenação e atuação – conforme já se viu, por exemplo, em “O Cinema e a Encenação” (Jacques Aumont, 2006) ou “O Que É o Cinema?” (André Bazin, 2014). A autonomia da cena, a crise do drama, a performatividade, as experimentações várias com tempos e espaços doravante precisam ser consideradas em qualquer análise comparativa entre as duas artes, sob o risco de que o cinema se relacione com uma ideia museificada de teatro.

 

  1. Duas infâncias: o espectador de teatro e o espectador de cinema

Esboçada uma breve análise de caso de quatro espetáculos, enveredo agora por searas mais teóricas no intento de traçar outras relações possíveis entre cinema e teatro. Por mais que essas duas artes partilhem elementos em comum e se entrecruzem em experiências cênicas contemporâneas, as experiências do espectador de teatro e do espectador de cinema são essencialmente diversas, como já se viu, e suas especificidades instauram distintos paradigmas existenciais para os seus respectivos espectadores. Para avançar na discussão sobre essas experiências, é importante considerar ambas não somente como linguagens, mas como o acontecimento que cada uma instaura no seu lugar privilegiado de realização – a sala de teatro e a sala de cinema –, pressupondo que tanto o cinema quanto o teatro só se realizam em relação ao espectador. Uma primeira diferenciação possível se dá entre o acontecimento convivial, entendido como próprio do teatro, e o acontecimento tecnovivial, próprio do cinema (Dubatti, 2007, 2011, 2014). Enquanto o primeiro se funda na copresença física entre atores e espectadores[4] numa mesma zona de experiência, podendo incluir tecnologias audiovisuais desde que ainda haja em alguma medida a referida copresença, o segundo seria determinado justamente pela supressão da presença dos atores.

Ao discutir esses paradigmas, ademais, não se deve desconsiderar o contexto de empobrecimento da experiência de convívio diante da ascensão do tecnovívio nas últimas décadas – a mudança perceptiva, segundo Jonathan Crary (2014), iniciou-se com a popularização da televisão e se agrava com as redes sociais e dispositivos móveis que criam um estado de atenção que almeja estar conectado 24 horas por dia, sete dias por semana. Moisés de Lemos Martins aborda semelhantes questões ao caracterizar a “irrupção da civilização da tela”, a partir da qual se formaria “uma comunidade sem o corpo do outro, embora alimentada pelos seus fantasmas, e também pelos fantasmas do nosso próprio corpo”, e afirma que “as tecnologias da informação e da comunicação não deixam de exprimir a crise da experiência contemporânea” (MARTINS, 2011, p. 19). Outra perspectiva para a questão é dada por Hans-Ulrich Gumbrecht, quando situa o apagamento da dimensão da presença, em privilégio do sentido, já no início da Modernidade – o que teria gerado um “império” do sentido, com a consequente anulação da “capacidade de lidar com o que está à nossa frente, diante dos olhos e no contato com o corpo” (GUMBRECHT, 2011, p. 10).

No universo do teatro, este pensamento sobre o convívio vem se desenvolvendo fortemente entre uma vertente de artistas e teóricos como modo de reafirmar a especificidade do acontecimento teatral – e um dos aspectos que o fazem relevante no mundo de hoje – como o lugar do resgate do convívio. Para Dubatti, o convívio implica um rito de sociabilidade compartilhado, em que haja reconhecimento de si e do outro, deixando-se afetar pelo encontro e suspendendo o isolamento. Quanto ao cinema, embora os estudos estéticos geralmente concentrem-se em uma concepção de obra restrita à linguagem – quando muito, como já dito aqui, ao processo de filmagem, não ao de exibição –, a relação com o espectador não é menos fundamental. É somente no processo mental do espectador que o filme passa a existir e onde a articulação de fragmentos (sejam pixels, frames, planos, cenas ou sequências) forma um todo, gera afetações e sentidos. Como diz Aumont, “falando psicologicamente, o filme não existe nem na película nem na tela, mas somente no espírito que lhe proporciona sua realidade” (AUMONT, 2008, p. 225) – ou seja, só existe na relação com o espectador.

Num artigo de 2014, Dubatti relaciona o resgate do convívio teatral à experiência e, consequentemente, à infância, retomando a reflexão de Agamben (2012) sobre uma experiência originária só concebível “antes do sujeito” e “antes da linguagem”, ou seja, na “in-fância do homem, da qual a linguagem deveria, precisamente, assinalar o limite” (AGAMBEM, 2012, p. 58). Para o filósofo italiano, “o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência” não porque não ocorram eventos significativos, mas por estar “extenuado de eventos que não se tornam experiência”[5], de modo que “é a incapacidade de traduzir-se em experiência que torna hoje insuportável – como em momento algum no passado – a existência cotidiana” (AGAMBEN, 2012, p. 22). A partir dessa reflexão, Dubatti (2014) sustenta que o convívio estabelece um tipo de vínculo ancestral e que a experiência do teatro (fundada no convívio) permite perceber essa região da infância na vida adulta. Em contraponto, segundo o autor argentino, o tecnovívio acarretaria o esquecimento e o ocultamento da infância.

Tal conclusão difere do pensamento de teóricos do cinema como Aumont, Bergala e Michel Marie, cujos artigos a respeito do espectador estão reunidos no livro “A Estética do Filme”.

Antes de adentrar nessa discussão, no entanto, cabem ainda algumas considerações acerca da natureza do simulacro do cinema. André Bazin identifica no cinema a função de “liberar o espectador de sua poltrona”, transportado pela ficção (BAZIN, 2014, p. 164), pela desterritorialização. Jean-Louis (2008) descreve a situação da sessão de cinema como um estar “apartado de tudo que não é superfície de projeção”, sujeito à restrição da mobilidade corporal, de modo que “o corpo filmado” passa a atuar “como delegado do corpo do espectador” e este comprometa-se a “suspender ou censurar o essencial de suas relações” com qualquer outro que não esteja na tela – inclusive com os outros espectadores ao seu redor, “no mais alto grau da distração, no cúmulo da ilusão, embalado no turbilhão do engodo” (COMOLLI, 2008, p. 186). Nada disso, porém, faz-se contra a própria vontade. Para Comolli, só a adesão permite crer na verdade dos simulacros.

Ao tratar do espectador de cinema, Michel Marie retoma uma reflexão de Edgar Morin (1977) sobre a imagem como presença-ausência do objeto – presença vivida e ausência real –, que remete à percepção de mundo arcaica e infantil de não se estar consciente da ausência do objeto que se vê. É nesse sentido que a “ausência ou atrofia da participação motriz prática ou ativa” coloca o espectador “em situação regressiva, infantilizado sob o efeito de uma neurose artificial” (AUMONT, 2005, p. 237). Tem-se, a partir daí, outra possibilidade de se considerar a relação entre cinema e infância, não como o seu apagamento – como sugere Dubatti (2014) –, mas como a regressão a outro aspecto dessa fase do desenvolvimento humano. Não o convívio, mas o imaginário.

No acontecimento cinematográfico, o dispositivo induz a um tipo de sujeito-espectador determinado pela sala escura, a suspensão da motricidade e o investimento excessivo das funções visuais e auditivas. Em parte, essa caracterização é comum ao espectador de teatro em um grande número de espetáculos, sobretudo os que investem na ilusão da quarta parede. Contudo, no teatro contemporâneo, seja em sua forma performativa, pós-dramática, infradramática ou expandida, vê-se espetáculos que rompem esse modelo de ilusão e, ainda que o espectador possa manter-se sentado (ou ser convidado a participar e interagir), a situação da sala escura se desfaz ao menos parcialmente pela explicitação do convívio, por meio de estratégias que realçam o eixo extraficcional, como iluminar a plateia, interpelar diretamente o espectador e outros modos de demonstrar o reconhecimento da mútua presença.

No cinema tradicional, este que prepondera nos circuitos de exibição, então, “tudo ocorre, portanto, como se o dispositivo (…) imitasse ou reproduzisse parcialmente as condições que presidiram, na primeira infância, a constituição imaginária do eu quando da fase do espelho” (AUMONT, 2005, p. 246-247). Quem o escreve é Alain Bergala, apresentando uma nova abordagem da questão do espectador de cinema vinculada ao desejo: o espectador como o sujeito de um desejo insatisfeito, uma “presa do luto e da solidão” a quem se repara uma “perda irreparável, mesmo às custas de uma regressão passageira, socialmente regulada” (BERGALA, 2005, p. 242). Trata-se, então de uma opção pela autoilusão:

a escolha de entrar em uma sala de cinema sempre depende mais ou menos (…) de colocar entre parêntesis esse mundo, que depende precisamente da ação, da escolha de objeto e de seus riscos, em proveito de uma identificação com o universo imaginário da ficção (AUMONT, 2005, p. 253).

O regresso à primeira infância implicado nessa fruição pode ser explicado pelo princípio da identificação, segundo o qual “o eu se define por uma identificação com a imagem do outro”. Porém, como consequência da absorção do sujeito pela imagem, “a identificação permite reduzir (nas neuroses) ou suprimir (em um narcisismo absoluto) as relações com o outro” (AUMONT, 2005, p. 252).

Postas essas diferenças paradigmáticas, cabe-nos pensar o teatro e o cinema enquanto acontecimentos que incluem os espectadores proporcionando-lhes distintas formas de relação com o tempo, o espaço, os corpos, o eu e o outro. Por vezes, e cada vez mais, tudo ao mesmo tempo.

 

Referências bibliográficas:                                            

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus Editora, 2005. 3ª ed.

BAZIN, André. O que é o cinema? Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Trad. Augustin de Tugny, Oswaldo Teixeira, Ruben Caixeta. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

CRARY, Jonathan. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono. Trad. Joaquim. Toledo Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

DUBATTI, Jorge. Convivio e tecnovivio – teatro entre infancia y babelismo, 2014. Disponível em: http://www.dramateatro.com/index.php?option=com_content&view= article&id=38:jorgedubatti-1&catid=13:monograficos-y-teoricos&Itemid=579&lang=ES. Acesso em 28/08/2014.

______ Filosofia del teatro I: convivio, experiencia, subjetividade. Buenos Aires: Atuel, 2007.

FÉRAL, Josette.  “Being : place and time. How to presence effects: the work of Janet Cardiff”. In: GIANNACHI, G., KAYE, N. e SHANKS, M (Orgs.). Archaeologies of Presence: Art, performance and the persistence of being. New York: Routledge, 2012.

GUMBRECHT, Ulrich Gumbrecht. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Contraponto/PUC-Rio, 2011.

MARTINS, Moisés de Lemos. Crise no castelo da cultura: das estrelas para as telas. São Paulo: Annablume, 2011.

 

Luciana Eastwood Romagnolli: Jornalista e crítica de teatro. É Mestre em Teatro pela EBA-UFMG (2013) e doutoranda em teatro pela ECA-USP. Atuou como repórter de cultura nos jornais Gazeta do Povo e O Tempo. Ministra oficinas de crítica, realiza cobertura crítica de festivais em todo país e é coordenadora de crítica do Janela de Dramaturgia. É fundadora e editora do blog Horizonte da Cena e integra a DocumentaCena – Plataforma de crítica.

 

Notas:

[1] Arquivo (Arkadi Zaides, Israel) poderia constar como quinto exemplo dentro da programação da MITsp. Contudo, não foi vista pela autora deste ensaio.

[2] Autores como Jorge Dubatti (2007) e, antes dele, estudiosos da Teoria da Recepção empregam as expressões produção criativa e produção receptiva para denominar e distinguir os trabalhos, respectivamente, de quem faz o espetáculo e de quem a ele assiste. Opto, contudo, pelas expressões produção criativa e recepção criativa, por considerar que ambos os trabalhos envolvem a criatividade e a imaginação, além do repertório particular de cada espectador (seu horizonte de expectativas), sendo o que os distingue a posição de propositores ou receptores no acontecimento teatral. Nesse sentido, a recepção destitui-se de uma concepção passiva quando se pensa o espectador como um sujeito a priori emancipado e capaz, com quem a encenação não deve estabelecer uma relação de embrutecimento.

[3] À exceção dos técnicos que armam a cena inicial, imprescindíveis para a significação do espetáculo também apresentado na MITsp 2015.

[4] Dubatti inclui os técnicos, o que faz sentido na medida em que denota que o mecanismo é operado presencialmente, embora os espectadores não necessariamente tomem consciência dessa copresença.

[5] Segundo Agamben, a humanidade foi expropriada de sua capacidade de fazer e transmitir experiências desde o nascimento da ciência moderna, que se configurou como uma desconfiança em relação à experiência, traduzida na desqualificação do senso comum e da imaginação como saberes. A experiência teria, então, sido transferida para fora do homem: para os instrumentos (e a tecnologia) e os números. Nesse movimento, a imaginação teria sido eliminada do campo do conhecimento por ser considerada irreal e irracional, perdendo a função de mediadora entre o inteligível e o sensível que exercia na Antiguidade, o que gerou uma cisão.

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