Para mastigar o teatro
Notas sobre o Fringe e o Edinburgh Showcase British Council 2019
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Em agosto de 2019, passei uma semana em Edimburgo, assistindo às peças do Fringe, festival que viabiliza um imenso mercado de artes cênicas que é referência no mundo inteiro. Representando a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, acompanhei a programação do Edinburgh Showcase do British Council (que inclui obras que fazem parte do Edinburgh Festival Fringe e do Edinburgh International Festival). Foram mais de trinta espetáculos em seis dias – o que não é nada em comparação aos quase 4.000 que fizeram parte da edição deste ano. Neste artigo, escrevo sobre uma parte dessa programação. Não pretendo fazer uma crítica de cada trabalho, mas apresentar algumas ideias que se formaram no acúmulo e nos atravessamentos.
Observo os números do festival, ciente da relevância que esse evento tem para a economia da cidade e do país em que acontece. O Fringe movimenta cerca de 140 milhões de libras e gera quase 3.000 empregos na cidade. Enquanto o atual governo brasileiro põe em prática o projeto de destruir a nossa produção artística, me pergunto se tais líderes políticos têm ideia da diferença que a cultura faz na economia de um país. O que eles querem destruir afinal?
Olhando retrospectivamente, depois de voltar para o Rio de Janeiro, o que ficou mais firme na minha memória foi a mirada crítica sobre a masculinidade, sua relação com a violência e com o desejo de aniquilação do outro, mas principalmente no seu modo de lidar com o poder – tanto na atualidade da vida cotidiana quanto em uma perspectiva histórica. Assim, nas próximas páginas, faço uma reflexão sobre as peças a partir dessa ideia de masculinidade, seus impactos concretos e as proposições que se colocam na direção contrária a essa visão de mundo, confrontando o colonialismo e a xenofobia, a misoginia, a transfobia e o racismo, por exemplo. Mas falo também sobre outros espetáculos, que não necessariamente abordam esses temas e que marcaram positivamente a minha experiência do festival.
HOMENS, INTERNET E POLÍTICA
Alguns temas caros às discussões sobre identidade e política no Reino Unido são explorados nos solos de Chris Thorpe e Javaad Alipoor que, apesar de bastante diferentes, formaram uma dupla interessante no conjunto do showcase. Ambos trabalham com uma noção de dramaturgia que não separa texto, encenação, atuação e reflexão crítica. Expondo suas experiências, pesquisas, ideias e insights, eles não pretendem revelar verdades ocultas ou transmitir informações para os espectadores, mas compartilhar suas ideias sobre o mundo em que vivemos, chamando atenção para as estruturas que constroem os afetos, as visões de mundo e, acima de tudo, as noções de “nós e eles”.
The Believers Are But Brothers, palestra-performance de Javaad Alipoor, com direção dele e de Kristy Housley, e que conta com a colaboração de Chris Thorpe como dramaturgista, coloca em jogo ideias cruciais sobre masculinidade, identidade, e o modo como a tecnologia está atuando sobre essas noções. É importante observar que é um artista muçulmano que, ao tomar a palavra, se posiciona como um agente epistemológico na lida com um assunto sobre o qual, no Reino Unido, ele seria tomado como objeto, como alteridade.
Antes do início da apresentação realizada no Studio Two do Assembly, somos convidados a entrar em um grupo de WhatsApp, pois a dramaturgia se dá também na interação proporcionada por esse dispositivo. Algumas citações do texto fazem mais sentido se recebidas na moldura do aplicativo, na tela do telefone de cada espectador, pois o modo como as interações acontecem na internet é tão relevante quanto os conteúdos que nela circulam. Há diversas intervenções que acontecem apenas pelo aplicativo, como um recurso realista que invade o ambiente supostamente seguro de uma peça de teatro e provoca atravessamentos desconcertantes.
Expondo sua investigação sobre o extremismo islâmico em relação aos modos de aliciamento nas redes sociais e a uma série de campanhas de ódio na Internet (o Gamergate, o movimento Red Pill e os discursos de ódio fomentados em sites como o 4chan), Alipoor situa a violência de jovens que aderem a movimentos extremistas em um contexto mais amplo. Ele explora o terror iminente do ajuntamento de homens frustrados de qualquer religião, etnia ou nacionalidade, trazendo à tona o debate sobre a onda de violência dos incels, por exemplo. Na verticalidade da sua pesquisa, Alipoor está falando sobre um problema que diz respeito ao mundo inteiro, afinal, a vitória de pautas de extrema direita está relacionada com a capilaridade e o poder de mobilização desses grupos rancorosos.
Status, solo de Chris Thorpe dirigido por Rachel Chavkin, apresentado no Blue Room do Assembly, traz uma fantasiosa narrativa de viagem entremeada por canções. Thorpe se dirige ao público, narrando a história de um cidadão inglês, que por acaso tem dois passaportes, e empreende uma jornada para questionar sua noção de pertencimento a uma nacionalidade, encontrando personagens alegóricos e passando por situações desafiadoras. Por um lado, o tema pode parecer restrito ao contexto local, mas as questões são relevantes para além dos problemas do Reino Unido, pois as ideias mais distorcidas sobre nacionalidade fazem parte do surto coletivo resultante das manipulações políticas no mundo atual. Pode-se observar que o discurso subjacente à propaganda nacionalista está diretamente ligado aos valores patriarcais que têm aparecido nas mais assustadoras campanhas políticas. Sabendo dos riscos de fazer o papel do “branco bacana” na lida com seus privilégios e de cair na armadilha de “pregar para convertidos”, Thorpe aborda uma questão atual de política internacional pelo ponto de vista das implicações mais individuais e subjetivas.
ALTERIDADE E LINGUAGEM
O racismo e a xenofobia são abordados em The Claim, espetáculo dirigido por Mark Maughan, apresentado na arena do Roundabout, no Summerhall. Um imigrante congolês pede asilo ao Reino Unido e é recebido por uma entrevistadora que o tem sob suspeita a priori e um intérprete cuja presunção é maior que sua capacidade de falar a língua do imigrante. O tradutor é uma caricatura da vaidade paternalista do homem branco que vê a si mesmo como um grande salvador; a tradução aparece como uma mediação perversa, uma outra forma de opressão. A dramaturgia de Tim Cowbury, habilidosa na elaboração dos diálogos, é praticamente um thriller. Um pouco mais de violência e teríamos uma peça de terror – o que não seria um exagero, afinal, a experiência do racismo e da xenofobia, para quem tem a vida ameaçada nas situações insólitas do preconceito, é bastante análoga ao gênero.
Questiono, no entanto, que a língua estrangeira da trama seja falada em inglês. O posicionamento crítico da obra ficaria mais contundente se a dramaturgia arriscasse articular o inglês com uma língua estrangeira e suas respectivas legendas. Para quem tem o inglês como língua materna, imagino que seja confortável ter qualquer língua ficcionalmente transposta para a sua, como tanto se vê no cinema e nas séries de TV, mas para falantes de outros idiomas esse recurso soa estranhamente artificial, como uma dublagem. A presença de legendas reforçaria o convite ao pensamento crítico, pois daria aos espectadores a escolha de simplesmente confiar no presunçoso tradutor ou conferir o testemunho real do imigrante. Para uma espectadora estrangeira, que não tem o inglês como língua materna, mesmo diante dos seus méritos e da sua relevância social e política, a obra tropeça na mesma questão que critica: a visão de mundo ensimesmada do homem branco europeu enquanto ser histórico, que toma os seus parâmetros de linguagem como marco regulatório para todas as relações.
A violência das migrações contemporâneas aparece mais uma vez em How Not To Drown, a que assisti no Traverse Theater. Autor e ator da peça, Dritan Kastrati (que assina o texto junto com Nicola MacCarthy), conta a história que viveu na infância quando migrou do Kosovo para a Inglaterra, passando por todos os riscos da travessia clandestina e pelas violências de um sistema de adoção cheio de falhas. Embora o espetáculo conte com a força de uma história real, narrada de corpo presente por um rapaz que viveu na pele todos os abusos desse processo, o excesso de acabamento e o comprometimento com um certo padrão de qualidade comercial proporcionam uma experiência contraditória de entretenimento. É como se o público burguês de classe média pudesse se redimir sentindo compaixão por aquela história e compensar seus privilégios aplaudindo um imigrante que conseguiu se encaixar no seu sistema excludente. A eficiência e o virtuosismo nesse caso, assim como o tratamento dado à trama, que transforma um processo social terrivelmente cruel em uma aventura cinematográfica de um herói adolescente, parecem romantizar demais a realidade. Mesmo que o rapaz que viveu na pele tudo aquilo esteja em cena e que aquelas sejam as suas palavras – enfim, que ele seja “the real deal”, como diz –, o olhar organizador da encenação de Neil Bettles e o registro de atuação proposto para o elenco envolvem essa experiência do real em uma embalagem excessivamente colorida.
A transfobia e o racismo são os temas do debate político que se apresenta em Burguerz, solo de Travis Alabanza, que também assina o texto e se define como “they”, eles/elas em inglês, que aqui traduzo como iles, numa tentativa de aproximação com as opções não binárias da língua portuguesa. Burguerz enfatiza que interseccionalidade é uma questão a se discutir e que a reflexão sobre os processos colonizatórios não pode deixar para trás o debate sobre gênero: “Pensar que as pessoas trans são as únicas que têm seu gênero confundido pelos outros é o jeito mais branco de pensar sobre corpos. Os corpos negros sabem o que significa ter seu gênero subtraído, exagerado ou confundido desde o começo da sua escravidão.” (To think it is only trans people that are misgendered is the whitest way to think about bodies. Black bodies have known what it means to be de-gendered, hyper-gendered, misgendered since the beginning of your slavery.)
A peça foi criada a partir de uma situação de violência: um dia, um homem jogou um hambúrguer em Travis, gritando uma expressão transfóbica. Como se isso não fosse violento o suficiente, o acontecimento ganhou uma nova camada de agressão: o silêncio e a indiferença de todos que estavam em volta. Para recapitular o momento em que foram agredides, iles convidam um voluntário na plateia para ajudá-les a fazer um hambúrguer enquanto conversam. Com tato, humor e inteligência, escolhem uma pessoa que sintetiza a fonte histórica de violência e opressão, um homem branco cisgênero. O hambúrguer é uma referência direta àquela situação traumática, bem como uma metáfora para os papéis sociais preestabelecidos e a ilusão de liberdade de escolha nos detalhes dentro desses padrões tão restritos. Por meio do preparo do hambúrguer, o trauma pessoal de Travis é trabalhado a cada sessão, como nas Tranz Talkz, conversas que a equipe empreendeu durante o processo de criação, com pessoas que passaram por experiências similares. Além disso, o espetáculo opera sobre a passividade de quem não toma partido no cotidiano. Mas o que me parece mais importante é que o preparo de uma refeição a quatro mãos, por uma pessoa que representa o agressor e outra que representa as minorias agredidas, propõe um processo de cura para quem está realmente doente: aquele que deseja a aniquilação do outro.
SOLUÇÕES MESSIÂNICAS
Da programação do Edinburgh International Festival, embora com linguagens absolutamente distintas, dois trabalhos chamam atenção para o efeito tóxico da masculinidade em seus delírios messiânicos. O Oedipus adaptado por Robert Icke com a International Theater Amsterdam traz uma versão contemporânea da tragédia de Sófocles, colocando o personagem título na condição de um poderoso candidato à presidência de um país em crise. A cenografia (que faz com que a peça se pareça demais com as encenações de Ivo Van Hove) mostra em destaque um relógio digital que marca a contagem regressiva no cenário do escritório de campanha. Na medida em que o tempo avança para a vitória das eleições, a investigação e a memória retornam ao passado, até que o protagonista, tomado como a grande esperança de salvação política, se revela a verdadeira fonte do caos. Apesar da pouca diferença de idade entre o ator e a atriz que fazem Édipo e Jocasta, e dos momentos finais do espetáculo serem excessivamente ilustrativos, a encenação mantém os espectadores que lotaram o King’s Theatre em profundo estado de atenção. A pesada carga de legendas não pareceu ser um problema. É surpreendente como a conhecida história se mantém atual. E é especialmente curioso que as narrativas centralizadas em grandes personagens masculinos, incapazes de enxergar a si mesmos e aos males que causam, sejam um tema tão recorrente do teatro ocidental, desde os gregos. Seria essa uma prova de que o teatro não é capaz de mudar a sociedade?
A criação de Tim Crouch com o National Theatre of Scotland, Total Immediate Collective Imminent Terrestrial Salvation, nos convoca a olhar com desconfiança para uma forma declaradamente patriarcal de resolver as coisas: a visão megalômana de um homem que vê a si mesmo como o escolhido para proporcionar salvação total e imediata para todos aqueles que se dediquem a segui-lo – embora não passe de um homem comum, incapaz de lidar com uma perda severa. Em cadeiras dispostas em círculo na ampla sala do The Studio, os espectadores acompanham a ação a partir de um livro. Nas primeiras páginas, conhecemos pelos quadrinhos de Rachana Jadhav a situação que aconteceu 15 anos antes da ação da peça: um menino de cinco anos cai e se afoga em um lago, depois que se quebra a superfície de gelo sobre a qual ele andava de mãos dadas com o pai. A mãe e a irmã de três anos assistem a tudo mas permanecem seguras. O pai fica em coma, mas sobrevive e, quando retorna, passa a liderar uma seita que espera por um eclipse que vai proporcionar, para esse grupo seleto, a salvação imediata referida no título.
São as personagens femininas que determinam o tempo de virar cada uma das páginas do livro, ação que devemos realizar todos juntos. É como se o livro nas nossas mãos conferisse uma materialidade mais concreta ao espaço convivial do teatro. Esse recurso faz com que estejamos todos atentos ao momento presente, mesmo que a narrativa crie expectativas com relação ao futuro da trama. Parece simples, mas é sensivelmente sofisticado.
Durante a maior parte do espetáculo, lemos e assistimos à cena de reencontro entre a mãe e a filha. A mãe havia se posicionado contra as proposições insanas do marido e havia sido punida por isso, anos atrás. Ela traz outra proposta para a continuidade da vida da menina: um modus operandi mais próximo do feminino, que enfrenta e cuida (inclusive de si mesma), na contramão do que é feito sob a vigilância do pai, que empurra todos os problemas para uma solução mágica cósmica. O eclipse previsto é como o Juízo Final, que divide a humanidade entre os que se salvam e os que são condenados. É como a construção de um muro, ou o isolamento político de um país, soluções pueris para um problema inventado: a perversa construção da oposição entre “nós” e “eles”, mais uma vez.
A presença do adjetivo “immediate” (imediata) no título é crucial e esclarece aspectos de outros trabalhos sobre a ideia de masculinidade que está em discussão aqui. Em The Believers Are But Brothers, Alipoor destaca a ânsia da imediaticidade como uma característica do comportamento dos homens que se sentem ameaçados na sua masculinidade. Diante das possibilidades que surgem na tela do celular ou do computador, eles têm a ilusão de que as coisas podem se resolver com um click, com uma pílula que se pode engolir sem mastigar, ou seja, sem enfrentar os problemas passo a passo, sem se deter sobre as causas, os contextos e os desdobramentos, sem trabalhar sobre si mesmo, sem nenhum tipo de mediação. O gesto de preparar uma refeição, por exemplo, como Travis Alabanza propõe em Burguerz, em que é preciso cumprir uma etapa de cada vez, vai na direção contrária das soluções instantâneas. De maneira análoga, a mãe, em Total Immediate… traz algo para a filha mastigar.
O viés participativo da encenação alude ao poder de sedução/coação que agrega pessoas comuns em sandices coletivas. Nos momentos finais, a prazerosa fruição nos faz dizer sim várias vezes para um messias delirante. Mas não se trata de uma manipulação ardilosa. A direção de Andy Smith e Karl James constrói a desconfiança crítica nos espectadores aos poucos, o longo da condução da ação, principalmente pela atitude da mãe, o pilar simbólico de coerência na narrativa, delicadamente elaborada por Susan Vidler.
SAÚDE MENTAL E ENFRENTAMENTO
É irônico que a imagem da justiça seja representada na cultura ocidental por figuras femininas, quando, historicamente, vivemos em um mundo em que os homens dominam os lugares de poder e são capazes de qualquer coisa para não perder esse privilégio. As peças de tribunal não são comuns no Brasil, mas nós brasileiros conhecemos bem a teatralidade, a espetacularidade e a potência de um julgamento como encenação de uma ficção perversa que interfere na realidade. O julgamento do Presidente Lula e a meteórica ascensão política do juiz que o condenou é um ótimo exemplo disso.
Apresentada no Underbelly, It’s True, It’s True, It’s True reúne materiais de diversas fontes (em português, não temos uma tradução para a categoria “devised theatre”), mas que se baseia nos registros históricos do julgamento de um professor de arte que estuprou uma aluna. O julgamento do estuprador mais parece o julgamento da vítima que, enquanto era torturada para que se comprovasse a veracidade do seu depoimento, gritava repetidamente que o seu relato era a verdade – daí a reiteração do título. Concebida em meados de 2018, quando a campanha #MeToo nas redes sociais causou uma conscientização massiva da amplitude da cultura do estupro, a obra retoma um caso do século XVII. Em 1612, a jovem artista Artemísia Gentileschi foi estuprada dentro da própria casa pelo seu tutor, Agostino Tassi. Ao processá-lo, foi novamente vítima de violência: todas as testemunhas e o próprio sistema judicial fizeram de tudo para descredibilizar a sua palavra.
Para encobrir e naturalizar as práticas misóginas do mundo dos homens, as instituições culpavam (e ainda culpam) as mulheres, associando a sexualidade feminina a uma prática demoníaca. Na construção desse imaginário, o patriarcado se une à justiça e à medicina para criar o mito da loucura feminina e para comprová-lo criando ficções sociais tão cruéis como o julgamento de Artemísia, que podem realmente enlouquecer qualquer pessoa. A semelhança com a realidade atual de mulheres vítimas de todo o tipo de abuso é exasperante. Diante de narrativas como essa, vemos como o homem branco cisgênero tem agido como um predador ao longo da história. Como em The Claim, o material usado para It’s True, It’s True, It’s True também poderia resultar em uma peça de terror.
Apesar de o tema ser muito relevante e a dramaturgia ser altamente elaborada pelas atrizes, que assinam o texto, a linguagem do trabalho me apareceu um tanto escolar. A encenação de Billy Barrett aposta todas as fichas na exacerbação da teatralidade, como se sublinhasse várias vezes o que já está em evidência. A sofisticação do material fica sufocada pela proliferação de elementos visuais e cenográficos que fazem mais atrapalhar do que dar suporte às atuações. Assim, a peça não deixa nada para o espectador concluir por si.
Em I’m A Phoenix, Bitch, apresentado no Pleasance Courtyard, Bryony Kimmings faz um relato arrebatador sobre o pior ano de sua vida, quando precisou enfrentar o grave adoecimento do seu filho recém-nascido, um período de muita fragilidade de sua saúde mental, uma separação e a perda da sua casa. Aqui a narração de episódios reais se assume como parte de um processo de cura, como um passo adiante nos exercícios psíquicos necessários para que ela supere seus traumas. A artista os coloca em prática na cena, rebobinando e reperformando momentos chave da sua vida. Nesse processo, ela faz uma análise crítica dos elementos envolvidos, investigando os hábitos pessoais e culturais que moldam determinados comportamentos. Na medida em que olha para trás e examina o seu modo de lidar com homens, ela vê a influência de arquétipos femininos criados pela indústria cinematográfica. Com uma câmera e projeção ao vivo, apresenta caricaturas de si mesma, com perucas e adereços que sublinham a artificialidade da construção dessas imagens. A cenografia materializa estações de memória, como núcleos de nós a serem desatados, sendo a principal dessas estações a casa, um romântico chalé no campo, onde sua sanidade mental escapou do seu alcance.
A saúde mental pós-parto é um ponto nuclear da obra, mas a saúde mental de modo geral parece ser um tema caro à sua pesquisa recente. Ela se dedicou ao assunto em um trabalho anterior, mas do ponto de vista dos homens com depressão crônica. A omissão da sociedade quanto à abordagem desse assunto, que é um problema de saúde pública, é mais uma característica daquela ideia de masculinidade que não consegue se deter sobre coisas complexas e enfrentá-las, fingindo que está tudo sob controle enquanto busca soluções rápidas e indolores. Mas ela não faz acusações a ninguém ao contar a sua história. Aqui, o homem branco cisgênero não é um personagem de carne e osso, mas uma figura que está na sua mente, como um dispositivo de crítica internalizada que faz julgamentos severos sobre as suas ações o tempo todo. Na medida em que o processo de cura avança, esse personagem vai perdendo poder e ela consegue negociar, consigo mesma, a despedida dessa voz repressora.
No entanto, assim como em It’s True, It’s True, It’s True, a linguagem da encenação é bem distante do teatro que estou acostumada a ver. Nos momentos em que Bryony dramatiza o passado, o registro de atuação e os recursos cênicos que usa são carregados de uma noção de teatralidade tão histriônica, que tudo se torna excessivamente explicativo. Mas talvez essa seja a energia que ela precisa para dar conta desse imenso desafio.
Em Man on the Moon, Keisha Thompson aborda o problema da saúde mental no contexto da experiência da negritude no Reino Unido, considerando que a população não branca é maioria entre os pacientes, mas minoria entre aqueles que, do ponto de vista institucional, detêm os saberes sobre a questão. A peça é sobre seu pai e a jornada que ela empreendeu para tentar conhecê-lo melhor. Desde a infância, a comunicação entre os dois se dava por livros que ele deixava para ela na caixa de correspondência. Mais tarde, na vida adulta e com ajuda dos seus estudos, ela passou a querer entender melhor a reclusão do seu pai, os diferentes nomes que ele adotou em momentos da vida, seus posicionamentos políticos e a forma como a sua condição era colocada na dinâmica familiar.
Com direção de Benji Reid, a narrativa na primeira pessoa do singular é colocada em cena com o tom de uma conversa íntima. As dimensões do Red Lecture Theatre do Summerhall deram condições para a proximidade necessária, para que nós na plateia pudéssemos olhar a atriz nos olhos e sermos olhados por ela. Tanto a narrativa quanto a elaboração visual dialogam com o afrofuturismo e contam com uma abordagem inventiva para lidar com o que não podemos conhecer: a mente de uma pessoa que não funciona em um determinado padrão de normalidade. No seu processo de investigação, Keisha Thompson olha para trás e tenta reconstituir determinadas situações, mas sempre ciente da sua capacidade inventiva de construir um imaginário propositivo a partir de ruínas e lacunas.
Pesquisando sobre a artista, que além do teatro, da literatura e da música, se dedica à matemática e à educação criativa, encontrei um breve artigo em que ela fala sobre a má interpretação do conceito de binariedade. Ela diz que, originalmente, o binário diz respeito à dualidade, não à mútua exclusão de opostos, e que essa má interpretação é uma espécie de lavagem cerebral que causa desentendimentos sobre uma série de processos de aprendizado na divisão binária de gêneros, como o mito de que meninos levam jeito para matemática e meninas não. Se tentarmos pensar a ideia de saúde mental fora do padrão binário de exclusão mútua, a discussão pode ser mais consequente.
SOBRE OUTRAS HABILIDADES
O debate sobre a ideia de normalidade é levado adiante em dois espetáculos sobre “deficiências”: Purposeless Movements da Birds of Paradise Theatre Company, que se dedica à criação e à formação artística de pessoas com deficiência; e Louder Is Not Always Clearer, solo do artista visual e professor Jonny Cotzen dirigido por Gareth Clark.
A fala na primeira pessoa do singular, com narrativas autobiográficas e posicionamentos críticos é um dispositivo criativo de Purposeless Movements, apresentado no The Studio. Quatro personagens masculinos com paralisia cerebral em diferentes graus dançam e se dirigem à plateia para contar histórias, compartilhando narrativas sobre a vida profissional, pública, familiar, amorosa e sexual de cada um. A trilha sonora é tocada ao vivo para que os músicos possam dialogar com o andamento próprio de cada apresentação, tendo em vista a variação de ritmos e a imprevisibilidade da duração dos deslocamentos por parte de cada ator. Uma tradutora de linguagem de sinais está presente em cena de maneira completamente integrada, dançando e se movimentando com os atores. As legendas em inglês são uma constante, afinal, a fala dos atores pode ser bem difícil de entender. O humor e a franqueza pontuam toda a peça, de modo que não há espaço para vitimização. A direção de Robert Softley Gale, que também tem paralisia cerebral, não é um olhar de fora paternalista. O fato de que o grupo trabalha com atores profissionais é um dado a ser considerado e que faz parte da própria estrutura dramatúrgica da obra. Os relatos biográficos são atravessados por questões acerca da arte e da representação, como, por exemplo, o pacto de fé que está implícito no relato autobiográfico dado de corpo presente, um dispositivo tão comum nos repertórios de teatro contemporâneo de mostras e festivais. Esse é provavelmente o ponto mais sensível da dramaturgia, que pode desestabilizar a experiência da fruição. Para falar mais sobre isso, eu precisaria dar spoilers demais, então deixo aqui apenas a sugestão de reflexão para quem puder assistir.
O modo como pessoas não surdas lidam com a surdez no cotidiano é um dos aspectos centrais de Louder Is Not Always Clearer, peça criada a partir de workshops realizados com várias pessoas surdas. Assim, embora Jonny Cotzen se refira a fatos da sua história pessoal, o relato autobiográfico não é a sua questão principal. A dramaturgia se debruça sobre o trânsito entre o mundo de quem escuta e o mundo das pessoas surdas. Há momentos em que Cotzen se dirige apenas às pessoas surdas na plateia e há partes em que o público é convidado a interagir a partir da linguagem de sinais. A crítica feita à presunção das pessoas que escutam, presente desde o título até um cartaz em que o artista escreve em letras garrafais “DEAF IS NOT STUPID” (ser surdo não é ser burro), funciona como um convite para que nós, que não somos surdos – ou que não somos surdos ainda – façamos o esforço de experimentar outra linguagem, pelo menos por alguns minutos. Afinal, a distância que separa os dois mundos não é feita apenas da relação entre som e silêncio, mas também da ignorância e da indiferença. Fica visível que a presunção da normalidade pode ser a maior das deficiências. Cabe a cada espectador escolher se o seu caso é irreversível ou não.
CORPOS E DISCURSOS
Em Post Popular, outro trabalho que vi no Pleasance Courtyard, Lucy McCormick cria situações bem humoradas para reperformar momentos históricos protagonizados por mulheres que cravaram seu nome nas narrativas oficiais durante séculos de protagonismo masculino. Seu humor agressivo mostra que talvez não tenhamos tantos motivos para rir, mas a insolência não deixa de ser uma alternativa. Jogando coisas na cara da plateia (inclusive literalmente), acompanhada por dois homens que dançam com ela com grande vigor sobre o chão melado de terra, líquidos e restos de comida, não há um momento em que a sua presença não esteja comprometida com a materialidade do seu corpo. Parece redundante, mas é uma questão de ênfase. Suas colocações não são cerebrais. É na lida com o corpo, inclusive na ênfase sobre a materialidade dos seus orifícios, que aparece o seu discurso crítico. Post Popular põe os corpos dos artistas em jogo de maneira radical e contundente. Por contraste, chama atenção para a tendência excessivamente cerebral do teatro e para o hábito da separação entre a elaboração intelectual e o engajamento da carne no pensamento e no discurso. A crença na separação entre o corpo e a mente, bem como na suposta superioridade da mente, fazem parte da lavagem cerebral derivada da má interpretação da ideia de binariedade.
Dentre os trabalhos de dança contemporânea a que assisti no Dance Base, dois deles apresentaram questões relevantes sobre a ideia do feminino e seus estereótipos redutores. Em The Forecast, Amy Bell fala sobre a invisibilidade da mulher queer na dança, trazendo para o debate perguntas sobre os corpos trans e não binários nesse campo artístico. O desejo de abordar muitos desdobramentos ao mesmo tempo prejudica um pouco a primeira parte do espetáculo. Mas, nos momentos finais, quando a reivindicação mais discursiva dá lugar à materialidade da performance, a artista dá conta de mostrar o que aquele corpo tem a oferecer por ele mesmo, para além da defesa de um posicionamento político. Assim, aos poucos, a obra vai ganhando contundência na defesa do argumento, mostrando o que a dança e, em última instância, os espectadores que se interessam pela dança, estão perdendo com a monotonia da padronização.
Em Like Honey, de Becky Namgauds, a noção de feminino está em disputa de outro modo, trabalhada por um corpo que se encaixa em um determinado padrão de beleza. É na energia do corpo e na relação com o movimento que as artistas questionam a leveza como qualidade no corpo da mulher – um ponto que também está no trabalho de Amy Bell. A sensualidade da performance de Amanda Pefkou carrega uma agressividade latente. Como o ciclo menstrual e a ideia do sagrado feminino foram motes de inspiração, seu corpo emana uma intensa energia sexual, pautada pelo contraste da paisagem sonora criada e performada ao vivo por Claire Shahmoon. A sonoridade colabora para a criação de uma atmosfera densa, quase hierática, que emoldura a sexualidade do corpo e do movimento da performer em uma esfera pictórica, ou seja, que faz uma mediação desse corpo pela ideia mesma de arte, pela artificialidade da criação. Essa mediação amplia o olhar, nos faz ver criticamente o padrão formado no acúmulo de imagens que impõem formas idealizadas sobre o feminino. A história da arte, como instrumento eficiente do patriarcado, exerce sobre nossos corpos a sua cota de violência.
Com linguagens diversas e corpos afirmativos, cada uma a seu modo, elas não apenas comentam a artificialidade da construção dos estereótipos femininos e os lugares pré-definidos que a sociedade patriarcal estabelece como aprisionamentos, mas afirmam, celebram e materializam o vigor dos seus avessos.
Por falar em celebração, foi interessante ver uma obra cuja estrutura dramatúrgica eu já conhecia pela versão brasileira. Apresentada no Zoo Southside, Looping Scotland Overdub é a versão do Scottish Dance Theatre para Looping Bahia Overdub, um espetáculo brasileiro de dança contemporânea dirigido por Felipe de Assis, Leonardo França e Rita Aquino, que vi em diferentes ocasiões: em Buenos Aires com um público reduzido (como aconteceu na apresentação em Edimburgo), mas com verdadeiras multidões no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Looping afirma o poder de insurreição da festa, tomando-a como linguagem de protesto, de afirmação da vida, dos corpos, da liberdade. As observações discursivas se dão de maneira integrada à adesão dos corpos ao movimento, com formulações verbais mescladas à música. Na versão escocesa, a dimensão discursiva se sobrepôs à proposição da festa. Os próprios bailarinos se encarregaram de apresentar seu discurso crítico, com falas mais demoradas e literais sobre os problemas sociais que questionam. Ainda assim, o convite feito para que os espectadores participem com os seus corpos, implicando-se diretamente no acontecimento cênico, fez desse espetáculo um ponto fora da curva na minha experiência do festival.
SOBRE O TEMPO NO ESPAÇO
Mesmo num período tão curto, foi fácil perceber o quanto cada espaço apresenta um recorte curatorial específico. Mesmo que haja espaço para alguma variação entre linguagens, é possível ver as coerências internas de cada programação. Em um festival da dimensão do Fringe, que não tem uma curadoria geral, mas que é bastante pautado pelo acesso a privilégios econômicos (cada produção assume os riscos de fazer um investimento próprio para participar do festival), é importante que as produções saibam quais espaços poderiam receber suas propostas. São mais de 300, eu não conheci nem um décimo do total. A programação do Summerhall, por exemplo, e consequentemente o público que o frequenta, me pareceu bastante aberta à experimentação e a uma ideia de teatro que se fundamenta especialmente na relação com os espectadores, no convívio, no tempo que se passa junto. Além de ter diversos espaços que funcionam ao mesmo tempo, algumas salas são ambientes livres das molduras dos palcos convencionais, como salas de ensaio ou teatros anatômicos. A aproximação entre os imaginários do teatro e do laboratório científico pode ser bem instigante.
A experiência de assistir a Extremely Pedestrian Chorales provavelmente não teria sido tão divertida se acontecesse em um teatro convencional e sem a abordagem direta dos criadores. Quando cheguei à sala, o coreógrafo Karl Jay-Lewin veio pessoalmente conversar comigo e outras pessoas à minha volta, contextualizando a proposta, fazendo uma mediação corpo a corpo. A dimensão de experimentação, o jogo entre corpo e matemática, bem como sua sofisticada despretensão me pareceram perfeitamente adequadas à sala Rose Bruford at Upper Church do Summerhall.
No mesmo espaço, vi os trabalhos mais recentes de Bertrand Lesca e Nasi Voutsas. Assim como as demais criações da dupla, One e The End contam com a intimidade com o público para que o seu jogo funcione. Suas peças são fundamentadas nas relações entre opressor e oprimido, um tema clássico do drama e do teatro de modo geral. É nos títulos e nas breves sugestões narrativas da dramaturgia que estão as chaves para as elaborações que cada espectador vai fazer a respeito das dinâmicas que os dois encenam. No contexto do festival, as dinâmicas de opressão que apareceram em outras obras funcionaram como molduras para a minha recepção. É claro que os dispositivos dramatúrgicos e o carisma da dupla criam condições para a disponibilidade criativa do público e para a abertura ao humor. Mas a energia do lugar não deixa de ser um ingrediente determinante.
Também foi no Summerhall, no Main Hall, que assisti a Before The Revolution, de Ahmed El Attar, uma peça forte e delicada sobre a opressão e a violência no Egito antes da revolução. E, no Techcube 0, vi um trabalho escrito e dirigido por Tim Etchells, To Move In Time, solo criado para o excelente Tyrone Huggins, que nos conduz por uma oscilação vertiginosa entre as banalidades da vida cotidiana e os acachapantes processos históricos, entre a chamada de responsabilidade sobre o que estamos fazendo pelo mundo no presente e o reconhecimento da imprevisibilidade das consequências de nossas escolhas individuais.
As perguntas feitas por este espetáculo me pareceram especialmente pertinentes no contexto de um festival. As horas e os dias nos festivais de teatro têm uma duração e uma permanência na memória tão peculiares, que tornam o tempo cronológico uma ficção pouco criativa. E o exercício crítico de relembrar e escrever sobre o que nos move não deixa de ser uma tentativa de viajar no tempo, um modo de mastigar a memória e o pensamento, um gesto que demanda tempo e que geralmente não se adequa muito às estrelas estampadas nos inúmeros cartazes espalhados por toda Edimburgo. As estrelas fazem parte do jogo e têm a sua graça, mas não há ★★★★★ que proporcionem salvação imediata.
Daniele Avila Small (Rio de Janeiro, 1976) é Doutora em Artes Cênicas, crítica e curadora de teatro.
Imagem em destaque: Total Immediate Collective Imminent Terrestrial Salvation. Foto: Eoin Carey.