Batucada, Looping e multidão
Faço neste ensaio um exercício crítico sobre duas performances apresentadas durante o Festival Panorama da Dança 2016: Batucada, de Marcelo Evelin; e Looping: Bahia Overdub, de Felipe de Assis, Rita Aquino e Leonardo França. O exercício é uma tentativa de conversar com algumas proposições artísticas da dança contemporânea que abrem espaços para uma participação diferenciada do espectador, de modo que esta abertura não se configure como simples figuração, mas como fusão de fato, com e na obra. Este fato estético não está apartado da realidade nem do momento político em que vivemos, no qual alguns direitos que pareciam assegurados têm sido sistematicamente ameaçados por medidas de exceção que atingem as conquistas do passado. A criação artística, neste sentido, parece acender seus sinais de alerta para, de diferentes maneiras, inventar outras formas de vida e de arte que incluem uma percepção social mais aguda.
Inicio pela primeira proposição, fazendo antes um relato que contextualiza o encontro com a obra.
Batucada
Estava restrita a um espaço mínimo no vagão do metrô, desde a estação de Botafogo até a da Uruguaiana, junto à multidão cansada que voltava para casa. Rostos quase sem expressão, corpos pesados, braços enfileirados, minhas mãos coladas no suporte alto junto com muitas outras para não cair. Algumas pessoas entravam nas estações seguintes falando muito, entre adesivos e palavras de ordem, rumo à manifestação que se iniciava dali a poucos minutos em frente à Igreja da Candelária contra a Proposta de Emenda Constitucional que o governo tentava aprovar no Congresso, limitando os investimentos em vários segmentos expressivos para o país, como educação e saúde, pelos próximos vinte anos. Dois grupos diferentes compartilhavam o mesmo espaço, um que já não queria mais conversar sobre nada, outro que precisava falar, agir, antecipar a expressão de sua revolta. No mesmo vagão havia uma espécie de estranhamento entre os que queriam voltar para casa e os que queriam ocupar as ruas. Dois territórios, duas cidades distintas. Entre eles, eu me dirigia a outro lugar: o MAR[1], um museu de arte – território que se move, por entre e além de muitas fronteiras, para nos manter vivos desde sempre.
Saí da estação sentindo o ar quente no rosto, vi mais adiante a manifestação que crescia, os gritos da multidão que se formava e por um segundo pensei em mudar meu rumo, indo em direção a ela. No entanto, atravessei a Avenida Presidente Vargas e segui pela Rua Uruguaiana do outro lado, corri pela Rua do Acre e entrei na Travessa do Liceu até o MAR para ver Batucada,[2] performance de Marcelo Evelin/Demolition Incorporada. Estava cansada, mas o coração batia forte por tudo o que acontecia nesse dia e que os carros de som, e os gritos da multidão ecoavam. Entrei no edifício junto a muitas pessoas que aguardavam ansiosas, conversando ainda sobre a chegada ao museu, o trânsito interditado e os ânimos conturbados. Não sabíamos ainda, mas dali a poucos minutos uma parte da cidade viveria momentos extremamente violentos em frente à Assembleia Legislativa.
As duas grandes salas por onde o público se espalha estão repletas de balões de gás em forma de coração. Os performers se aproximam pouco a pouco com máscaras e se posicionam à frente dos espectadores, olhando-os de frente e por vezes caminhando junto a cada um, acompanhando. As máscaras, na proposta da obra, são uma tentativa de não personalizar a identidade, para deixar-se atravessar pelo outro. Mas é inevitável que o espectador faça a ligação com os blackblocs, pela tática não só da utilização da máscara mas também da atuação anarquista, sem aparentes lideranças, ao se infiltrarem na multidão (agora, dos espectadores) para protestar violentamente com suas panelas já amassadas pela força das batidas constantes. A movimentação vai-se adensando, com deslocamentos do coletivo de performers em várias direções do espaço compreendido pelas duas salas e dois pequenos corredores – e isso se repete em infinitas combinações, ao longo de toda a intervenção, que dura pouco mais de 70 minutos.
O coletivo bate panelas, frigideiras e latas em ritmos insistentes, porém diversos: batucada de bloco de carnaval, de samba, de manifestação política, de paneleiros na janela contra o governo, de cidadãos que não buscam mais um apaziguamento. O próprio título já contém essa fusão de som e movimento impressa nos deslocamentos, e as panelas estão amassadas porque o movimento dos corpos e a força das batidas são intensos, como é grande e forte o grito da multidão nas ruas, os cassetetes e balas de borracha que atingem todos aqueles que ainda querem lutar, ainda que violentamente, porque não desistiram.
Batucada foi concebida para o Kunsten Festival des Arts de Bruxelas, e apresenta-se como uma “intervenção político-alegórica”, um convite a corpos de todas as formas e gêneros, segundo a chamada do Festival de Curitiba, onde também aconteceu: “cidadãos, artistas, ativistas, mulheres, homens, gays, lésbicas, travestis, trans, com ou sem experiência em arte contemporânea, de qualquer grupo étnico ou classe social, que tenham de 18 a 90 anos, que queiram batucar panelas e latas, que queiram trazer seus corpos para a luta, que queiram performar uma ficção”.
Batucada é intervenção, e mais que tudo, um acontecimento que provoca de forma contundente o público, subitamente incluído no meio de um bloco de carnaval, de uma manifestação de rua, de um arrastão – uma revolta pelo corpo que se expõe vestido, tirando a roupa, nu, em suas diferenças explícitas, gordo, magro, alto, baixo, masculino, feminino, trans, musculoso, frágil. A força vai crescendo pela exposição dessas diferenças, ainda que do início ao fim permaneçam mascarados. Assumir esse corpo blackbloc é também assumir uma violência que se confunde com o mistério da não-identificação dos indivíduos artistas. A “desidentificação” induzida provoca uma proximidade e uma sensualidade que explode no vigor do coletivo – e é pelo coletivo que se pode perceber a singularidade desta intervenção.
A multidão parece ser o único lugar onde se pode estar nesse momento e é nela que, a partir de certo momento, somos desidentificados de nós mesmos pela estratégia de desidentificação dos artistas – assim podemos perceber vários aspectos de nós mesmos enquanto indivíduos, artistas, participantes de ações, espectadores que somos todos. Participar desta experiência, numa destas alternativas, não é exatamente uma opção, mas algo que acontece quando a presença da obra se impõe coletivamente, fazendo-nos parte dela quando dançamos junto com os performers que rebolam à nossa frente nos momentos “carnavalescos” mais quentes, esfregando-se sensualmente, com o suor pingando em nossa pele, os restos de roupa já grudados às nossas. O fôlego do espectador é solicitado, não apenas para dançar, mas também para se deslocar, especificamente no caso destas apresentações no MAR, em razão da utilização das duas grandes salas. Os deslocamentos são intensos, mas há também uma dinâmica de pausas e silêncios no batuque.
Três momentos de silêncio e pausa são especialmente relevantes. O primeiro, quando todos formam uma montanha de corpos empilhados no chão, um sobre o outro, pernas misturadas aos braços de outros, pés sobre barrigas, costas sobre mãos, como partes desconexas misturadas, de um corpo coletivo liquidificado e sem identificação. Há referências aos massacres, chacinas, e um estado de perplexidade do público diante do que conhecemos tão bem: a apatia frente à violência de certas mortes, extermínios, ao pouco valor que a vida tem. O segundo, quando os performers se enfileiram horizontalmente e, após uma batucada intensa, param. O curioso é que neste momento vários espectadores, durante a apresentação deste dia, se manifestaram com palavras de ordem, como se estivessem de fato lá fora, naquela outra manifestação – talvez pela grande sintonia que estava acontecendo entre aquela intervenção e a realidade, ou pela violência contida em cada um, que está buscando formas de se revelar. O terceiro momento acontece ao final, quando os artistas batucam em cortejo até a porta do museu, que tem vista para o mar (real), e se jogam ao chão, na calçada, todos nus. Essa exposição diante de todos que passam, e podem ver aqueles corpos jogados, ressalta a fragilidade e faz crescer a contundência da ação, que aumenta quando os espectadores percebem que terão de passar por entre eles, para sair do museu. É uma situação difícil para cada um que passa pelo espaço ínfimo entre um corpo e outro, temendo pisar em cada um. É preciso um cuidado e uma delicadeza, uma atenção para não machucar, concretamente, quem está deitado; mas a própria ação de passar por cima já faz parte dessa imagem inevitável, de tudo o que aconteceu na obra e continua acontecendo sistematicamente na vida. Batucada não quer apaziguar, ao contrário, expõe nossa violência e ao mesmo tempo insufla a vida. Mesmo silenciando, com os corpos inertes, a performance continua agindo sobre nós, que percebemos nossa naturalidade diária diante da dor alheia. Ao passar pelos corpos no chão há ainda um batuque na memória, e depois quando saímos dali esse batuque persiste, é um batuque que nos acompanha, uma mistura de festa e espanto com o que somos.
Batucada não deixa claro quem comanda as mudanças nos deslocamentos, certamente há, mas a liderança não é visível. A proposta de deixar-se atravessar pelo público e de abrir espaços para que ele também se deixe atravessar pelo fluxo da performance é constitutiva dela mesma e a ultrapassa, como uma criatura que vai crescendo, artistas mais espectadores mais panelas e frigideiras mais samba mais revolta mais acelerações mais silêncios. O monstro da multidão vai-se tornando visível, com sua peculiar mistura de prazer e risco, pelo que pode ainda acontecer – a liberdade de cada um vai aparecendo, ao dançar e integrar um desfile carnavalesco que inclui surpresas violentas, como quando estamos na rua; e a sensação de que ninguém nos comanda nos liberta subitamente da (e na) obra, em muitos momentos, como se pudéssemos também nela inventar um certo jeito de mover, de descobrir uma potência na maneira de estar no grupo de performers por dentro, tornando-nos participantes e não apenas observadores.
A coragem de assumir certos riscos como espectadores, saindo de uma posição de conforto e indo ao encontro da massa de gente, entrando nela e saindo, encontrando corpos e maneiras diferentes de mover, faz surgir em alguns momentos certos aspectos reveladores da identidade de cada um: o entusiasmo, o medo, o exibicionismo, o deleite, a persistência, a acomodação. É como se Batucada propusesse uma experiência de imersão a cada espectador, deixando-se atravessar pelo outro, assim como o coreógrafo propôs esse atravessamento aos quarenta artistas que integraram os ensaios intensivos da Demolition Incorporada. Somos todos, durante aqueles 70 ou 80 minutos, seres que experimentam uma intensidade ímpar, sustentada pelo calor coletivo que, dali a poucos minutos, irá se dissipar – uma intensidade que nos torna mais vivos, como crianças grandes que brincam com coisas sérias.
A participação no coletivo de Batucada provoca uma espécie de emancipação, cada um é dono de si e ao mesmo tempo é parte do monstro que cresce e se parte, se fragmenta, se desloca, se transfigura em vários outros aglomerados de corpos, que só se revelam enquanto estão, temporariamente, juntos.
Corte seco para a segunda proposição.
Looping: Bahia Overdub
Na grande sala[3] o público vai chegando aos poucos, há muita gente esperando ainda para entrar no corredor externo e lá de dentro ouve-se um som que lembra o de um berimbau, mas é um berimbau sampleado numa atmosfera que, pode-se reconhecer ao adentrar mais a sala, promete uma festa com dois DJs que conduzem o público, mais claramente pela voz de Felipe de Assis. O sotaque é inconfundivelmente baiano, o ambiente eletrônico remete a uma discoteca, mas as lâmpadas penduradas no teto evocam a paisagem das festas de largo, em Salvador. Passado e presente da cultura baiana são mixados na massa sonora-coreográfica. Os sete bailarinos se movem abraçados em várias direções da sala e vão levando pelo caminho alguns espectadores que entram também na dança, formando fileiras. Rapidamente são formadas muitas fileiras com os bailarinos espalhados por elas, ou outras em que não estão – o público logo percebe que pode não apenas aderir, como também inventar novas direções.
Essa liberdade de escolha é determinante na evolução da performance, que precisa de muitas direções. Não há um foco específico para se olhar, assim como não há um lugar específico para ficar – pode-se assistir de pé num canto de parede, mas a ação constante dos que dançam é um convite sedutor, desde o início está claro que todos podem entrar nos grandes cordões que começam a evoluir pelo salão.
É esta percepção (de que se pode entrar na festa) o grande diferencial de Looping, criado e concebido por Felipe de Assis, Rita Aquino e Leonardo França. Não é uma festa para poucos, que os muitos deveriam discretamente assistir. O movimento contínuo, numa estrutura aparentemente simples que vai-se complexificando pela constante formação de novos cordões de pessoas, instala um ambiente de participação, como nas festas de rua em que todos podem formar um coletivo temporário, ainda que não conheçam seus pares. Os grupos não se fecham, separados uns dos outros, porque a estrutura permite entradas, saídas e reentradas – permite a possibilidade de ir ao encontro de outras formações, com o mesmo ritmo inicialmente e depois com algumas diferenças, evoluindo para frente ou para trás, para um lado ou outro, e essas diferenças vão-se dinamizando no espaço.
Looping:Bahia Overdub se quer como pensamento sonoro e pensamento coreográfico simultaneamente. Overdub: adicionar novos sons a uma mesma massa de som já anteriormente realizada. A repetição, a acumulação, a fusão e a supressão, como estudos sonoros utilizados por Mahal Pita e Felipe de Assis, estão também presentes na massa coreográfica, pelas insistências vigorosas sobre um mesmo movimento que vai crescendo pelos próprios desdobramentos e fragmentações, na ação dos intérpretes-criadores Bruno de Jesus, Isaura Tupiniquim, Jaqueline Elesbão, Jorge Oliveira, Leonardo França, Rita Aquino e Talita Gomes. A formação de cordões de pessoas, que se engajam e eventualmente deles saem, é sem dúvida movida por essa massa de som e movimento que se potencializa na sofisticação com que se fragmenta, diferencia, interrompe e retorna, num looping que não quer o seu fim.
Em determinado momento, porém, os bailarinos lideram a mudança abrindo espaço para uma ação sem os espectadores, em rodopios, insistindo até cair, e depois retornam, continuam girando, caem, retornam, numa vertigem que adensa a proposta da festa em seu significado mais radical: exaurir o gozo, explorar os limites do prazer numa ação simples, mas que demanda grande vigor. Os espectadores vão-se posicionando ao redor e na sequência os intérpretes se deitam ao chão, com caixas de som iluminadas sobre o corpo. Esta imagem dos corpos deitados, iluminados pelas caixas e “falando” por elas (que reverberam as manobras dos dois DJs), embora inertes, é uma das mais curiosas desta performance em que, mesmo em momento de aparente pausa, mantém os corpos “ligados” ao ambiente. Depois, quando caminham de quatro, com as caixas sobre as costas, parecem experimentar até onde é possível manter o som, manter o movimento quando o corpo já está cansado, mas ainda engajado no acontecimento.
A pausa precede a ação seguinte, crucial na parceria com os espectadores, quando os intérpretes se aproximam e escolhem algumas pessoas para as quais dançam com exclusividade, numa provocação sensual. Este momento é particularmente interessante ao revelar as reações mais íntimas de cada um: alguns rapidamente aderem, entram na pequena massa que se forma, um grudado ao outro, deslizando ou literalmente colando na pele do outro; alguns resistem mais tempo antes de entrar e outros não entram. Esta ação, que, a exemplo da primeira, também evolui para distintas configurações, expande-se pela sala, de modo que ao final pode-se ver todos dançando, sós ou acompanhados, numa grande festa que parecia ter se instalado desde o início, mas que agora já não era a mesma. É visível o constrangimento de muitos diante da proximidade e da provocação sensual, porém essa intimidade entre os corpos é intrinsecamente carnavalesca, e liberada durante o carnaval, sobretudo no Rio de Janeiro e em Salvador – mas não naturalizada em eventos culturais aos quais o público comparece para assistir, num conhecido centro de eventos da cultura carioca. Esse estranhamento é uma questão trazida por Looping, ao expor a todos uma intimidade coletiva, que deveria estar circunscrita aos lugares “próprios” – a rua, os blocos de carnaval, os inferninhos, as discotecas, os lugares onde os corpos se encontram e estão amolecidos pelo álcool, pelo calor. A festa é turbinada pelo oferecimento de bebidas baianas – o cravinho, a catuaba, numa alusão à libido, à percepção sensorial.
Certamente não é apenas a festa que se impõe, mas uma mobilização que se adensa pela festa, e a festa é política no sentido em que se assume como festa do corpo, assume o que é comum a todos – o estar juntos, a alegria que cria espaços de grande vigor coletivo e que, como em Batucada, (e mais radicalmente), não provoca uma relação vertical entre obra e público no sentido de algo que deveria ser apreciado, propondo, ao contrário, uma experiência que insiste nas formações que se agregam coletivamente, numa horizontalidade assumida como estratégia de composição.
Neste sentido, de uma ação que se quer comum, é importante entender o rigor na aparente falta de rigor dessa estrutura, na aparente displiscência ao deixar espaços livres para intervenção, e mesmo fundar sua própria intervenção, em determinados momentos, pela sedução dos espectadores participantes. Esta qualidade é um dos diferenciais da obra: a presença dos intérpretes (integralmente comprometidos com o que fazem) desperta também a dos espectadores, ou melhor, se deixa avolumar pela presença destes que agora também querem provar o gosto disso que pode ser comum: a festa. O comum, no entanto, se constitui de muitas diferenciações. Ao assumir desde o título o local de onde vem – a Bahia, e mais especificamente Salvador, pelas cores nos figurinos, pelos ritmos, pelo sotaque, pelo jeito irreverente que nos transporta por alguns momentos às travessas do Pelourinho –, Looping traz uma identificação com o que é local, mas sobretudo dispõe-se a uma fusão cuidadosa com o que é diferente. Sua identidade como multidão é rigorosamente formada pelas arestas: o mecanismo das caixas de som sobre os corpos é sofisticado, assim como a elaboração do mix da partitura sonora, a montagem das cores no figurino, o pensamento coreográfico – tudo denota um compartilhamento de muitas vozes na concepção do trabalho, e talvez por isso seja tão dinâmico. Looping propõe repetições, intensificações, fusões para se reiniciar constantemente, porque é um coletivo de uma Bahia em movimento, quer se mostrar como é mas também como pode vir a ser, e se refazer, overdub.
Esse retrato de um pedaço do Brasil que quer ser o que é, tornando-se sempre outro, me parece, conversa em certos aspectos com Batucada, sobretudo no que se refere a uma experiência de ação coletiva – no caso de Batucada, uma estratégia em clara sintonia com o vigor das manifestações políticas, incluindo o carnaval que não esconde a própria potência política, a exemplo das manifestações que ocorreram em junho de 2013 no Brasil, numa clara ambivalência entre política e estética; e no caso de Looping, uma estratégia de mobilização através da festa para convocar uma participação coletiva, com todas as suas diferenças.
Para pensar um pouco mais sobre coletivo e multidão, recorro aos filósofos italianos Paolo Virno e Roberto Esposito, que vêm pensando a força da multidão, em contraponto à noção de povo.
Multidão
Paolo Virno, ao se concentrar em estudos sobre o coletivo da multidão, evoca a tese de Gilbert Simondon sobre a existência de um “pré-individual”, anterior à individuação. Para Simondon, contrariamente ao que afirma o senso comum, a vida em grupo é determinante para uma individuação mais complexa: “Longe de regredir, a singularidade refina-se e atinge o seu apogeu na ação concertada, na pluralidade das vozes, em suma, na esfera pública”. (SIMONDON apud VIRNO, 2010, p. 403). Em seu entendimento, “cada um dos muitos personaliza (parcial e provisoriamente) a sua componente impessoal através de vicissitudes típicas da experiência pública”. (idem, p. 404). O coletivo seria, deste modo, fundamental para se pensar a democracia não-representativa, já que é nele que se radicaliza a singularização da experiência, constituindo-se como o “lugar em que pode finalmente explicar-se o que em toda a vida humana é incomensurável e irrepetível”, e “nada nele se presta a ser delegado” (idem, p. 405). Assim a multidão, como rede de indivíduos, indica um conjunto de singularidades contingentes, os “muitos”, que se formam como singularidades num complexo processo de individuação – contrariamente à noção de “povo”, e, acima de tudo, ciosos de sua própria representatividade.
O “povo” seria “a interface ou o revérbero do Estado”, porque está intrinsecamente associado à noção de representação, da relação vertical com um soberano constituído para representá-lo – e este pacto representativo amarra um ao outro, na promessa de que a liberdade e os direitos para todos sejam, a partir do Estado, universais. Já a multidão parte de uma premissa universal (todos têm direitos), é plural, “escapa à unidade política, não estipula pactos nem transfere direitos para o soberano, recusa a obediência, tende para as formas de democracia não representativa”. (idem, p. 393). Virno acrescenta que a existência da “política dos muitos enquanto muitos” foi suprimida na modernidade, não só pelos teóricos do Estado absoluto, mas também por Rousseau, pela tradição liberal, pelo movimento socialista; e que hoje “a multidão emerge na sua desforra”. (idem, p. 393). A noção de “povo”, deste modo, implicaria a fusão de um Uno (enquanto coletivo de cidadãos) com o Estado e sua consequente dependência deste; enquanto o processo de individuação que vem da convivência dos muitos aponta para uma permanência destes em suas diferenças, o que propicia a fundação de uma “noção ético-política de multidão” (idem, p. 395). Para o coletivo da multidão não há o imperativo de instituir pactos nem de transferir direitos para o soberano, “porque é um coletivo de singularidade individual”, e por isso, “o universal é uma premissa, já não uma promessa” (idem, p. 405).
Sobre a noção de soberania outro italiano, Roberto Esposito, desenvolveu uma tese sobre a imunização, transpondo o conceito da esfera biomédica para a política-jurídica, comparando a imunidade – enquanto reação natural ou induzida de um organismo vivo face a determinada doença – com a isenção dos sujeitos de certas responsabilidades que em circunstâncias normais deveriam comprometer uns com os outros. A imunidade na esfera política-jurídica seria, neste sentido, um poder para preservar, ou salvar a vida. Assim, “nenhum poder existe fora da vida, assim como a vida nunca existe fora das relações de poder” – e a política não seria nada mais que “a possibilidade ou o instrumento para manter viva a vida” (ESPOSITO, 2008, p. 46). No entanto, o problema desta relação estaria, para além da subordinação violenta que o poder impõe à vida, no modo pelo qual “a vida se preserva através do poder”, assim a imunização seria “a forma negativa de proteção da vida”, porque ao proteger e assegurar o organismo, individual ou coletivo, também o submete a uma perda da própria potência.
Como na prática médica da vacinação, a imunização do corpo político funcionaria de forma similar, “introduzindo nele um fragmento do mesmo patógeno do qual ele quer se proteger, bloqueando e contradizendo seu desenvolvimento natural” (idem, p. 46). Esta prática coloca em perigo a própria vida, sua intensidade física, pois quanto mais a vida quer se auto-preservar, mais meios defensivos e ofensivos são mobilizados e todos são capazes de matar-se uns aos outros. Neste ponto o mecanismo imunitário começa a operar: abandonada à sua dinâmica natural, a vida humana é destinada à auto-destruição porque carrega em si algo que a coloca em contradição consigo mesma, e para salvar-se precisa caminhar para fora de si, constituindo um ponto que lhe é externo, de onde recebe ordens e abrigo. Este ponto é o fim da auto-preservação como natureza – é quando a vida, para atualizar-se, arranca-se da própria natureza, a favor (porque quer a própria segurança) e ao mesmo tempo em oposição a si mesma (porque perde sua potência de expansão).
Ao se proteger, a vida abandona o desejo pelo que a coloca no caminho do risco e do perigo. Todo organismo vivo tem em si mesmo um sistema imunitário natural que o defende do ataque de agentes externos, mas uma vez que as deficiências deste sistema são constatadas ele é substituído por uma imunidade induzida, que ao mesmo tempo o percebe e o nega. “Isto ocorre não apenas porque essa imunidade artificial está fora do corpo individual, mas também porque ela agora deve conter à força sua intensidade primordial” (ESPOSITO, 2008, p. 59). E este segundo dispositivo imunitário seria a soberania[4]. A soberania seria a própria relação constitutiva que a amarra aos sujeitos a quem ela é dirigida. Eles são sujeitos à soberania porque a instituíram através de um livre contrato, mas “são sujeitos da soberania porque, uma vez instituída, não podem a ela resistir precisamente pela mesma razão: de outro modo teriam que resistir a si mesmos – porque são sujeitos da soberania, estão sujeitos a ela” (idem, p. 59-60). O contrato coloca seu próprio objeto fora de controle daqueles que o produziram, e é esta estrutura contraditória que, designa o conceito de representação, diz Esposito via Hobbes: “aquele que representa, que é o soberano, é simultaneamente idêntico e diferente em relação àqueles que representa. É idêntico porque toma seu lugar, mas diferente deles porque este lugar permanece fora do campo dos representados” (idem, p. 60).
A consequência deste contrato seria o individualismo, como componente central do aparato imunitário através do qual a soberania protege a vida. As relações dos homens entre si de acordo com seus princípios individuais podem conduzi-los a um conflito generalizado, mas este conflito é ainda uma relação horizontal que os une a uma dimensão comum; porém é exatamente o que é comum – o perigo que afeta a cada um – que é abolido através da individualização artificial, constituída pelo dispositivo da soberania. A soberania seria, então, o “não ser” em comum dos indivíduos, a forma política de sua dessocialização (idem, p. 61). Ao fazer-se privada, a vida implicitamente se priva de sua marca comum, optando por uma relação vertical com o soberano/Estado que a protege e abrindo mão das possíveis relações de invenção e manifestação de um ser comum, esvaziando a esfera pública. O medo, desta forma, concentra-se nesta relação vertical e individualizada. A grande questão deste contrato é que a preservação da vida está intrinsecamente ligada à sua própria eliminação, já que os poderes outorgados ao soberano podem ser extrapolados eventualmente, transformando-se num direito de vida e morte. Trata-se neste caso da “eliminação da vida por aquele que também é encarregado de assegurá-la” – uma “prerrogativa soberana que não pode ser contestada precisamente porque foi autorizada pelo mesmo sujeito que a suporta” (idem, 62). A contradição da imunização soberana seria deste modo seu próprio caráter normal de exceção.
Essas considerações acerca da representatividade, e da crise de representatividade que vivemos já há algum tempo, são curiosas quando olhamos para Batucada e sua imersão na experiência com os muitos que querem continuar sendo muitos, inflando qual monstro que se transfigura em várias formações distintas, incluindo a todos os que queiram ser incluídos, sem abdicar de suas diferenças. A ação de Batucada não transfere o posicionamento de cada um aos performers, não se quer como representação de um hipotético coletivo de espectadores que, separadamente, poderia sentir ou pensar – ela já é, junto a todos, artistas e espectadores/participantes, uma experiência única, que não pode ser delegada a alguém que estaria num palco, assim como a multidão que se manifestava na rua não poderia transferir a ninguém o que cada um escreveu em seus cartazes, que juntos negavam a violência do Estado, que não mais os representava. O Estado não podia mais ser soberano, como os performers de Batucada não seriam também os únicos soberanos de uma “cena” representativa de um coletivo de espectadores, e por isso se autonomeava “intervenção político-alegórica”, porque precisava dos corpos de todos os que estavam no MAR naquele fim de tarde – todos os que queriam experimentar a própria soberania.
Em Looping, a multidão que se forma em torno e dentro da festa pode experimentar o gosto dela, pelos movimentos, pelo som, pela bebida oferecida, pela ambiência sensual acentuada pela iluminação. Nesta proposta não caberia a representação da festa porque ela precisa ser fruída, e a estrutura de repetições, acumulações e fusões de sequências simples de movimento reforça a ideia de que todos podem participar, ainda que momentaneamente, daquela mobilização. A atitude dos espectadores que se recusam a dançar é absorvida pela obra e é tão legítima quanto a dos que entram nos cordões, observando-se que Looping cresce pelas arestas e brechas, pelas contingências de cada lugar em que se apresenta. Sua convocação chega pela sensorialidade, pela brincadeira que vai-se revelando séria mas nunca perde o caráter inicial, pela própria estrutura que se desdobra, retorna, se repete e reaparece distinta, e poderia se refazer indefinidamente. É pela brincadeira, pelo gozo que o espectador/participante pode se perceber subitamente sem resistências e ser o próprio agente de suas decisões – entrar ou não entrar, participar ou se recusar – sem delegá-las ao contrato subentendido que instituiria os artistas como seus representantes, e estas decisões têm consequências imediatas no próprio corpo.
A performance, não podemos esquecer, fez parte da programação de um festival de dança, no centro cultural que é uma das instituições mais reconhecidas da cidade e por isso tem suas restrições implícitas; então a liberdade de aderir, se deixar contaminar, pode encontrar mais resistências que numa festa de rua. Sua ação artística, porém, provoca uma ambiência que ultrapassa as especificidades dos espaços, pela sensação de emancipação que produz em todos os que escolham estar nela plenamente. Assumir o próprio desejo e não se proteger dele, abraçar os que vêm ao nosso encontro, não desqualificar esse momento, são atitudes tão potentes quanto as mobilizações de rua frente às medidas de exceção do poder representativo, porque criam vínculos entre as pessoas – e é isto que está em jogo em Looping: promover este grande encontro.
As duas proposições são estéticas, estão no campo da arte, ainda que convoquem uma mobilização do espectador/participante e tenham uma potência social e política inequívoca. No caso de Batucada, a potência de luta presente no batuque e acima de tudo, na movimentação que arrasta a todos durante mais de 70 minutos sem trégua até a caminhada por entre os corpos deitados na calçada do museu, se impõe como subversão do próprio espaço ao qual deveria estar confinada, “saindo” do espaço do museu para reencontrar o da rua, de onde parecia ter vindo desde o início. Há uma tentativa corajosa da obra de se fundir com a vida, de assumir sua potência e essa força parece movê-la do início ao fim. Marcelo Evelin diz em seu site que a ideia de demolição no nome do coletivo Demolition Incorporada veio desse processo “complexo e absolutamente coreográfico usado na demolição de edifícios. Demolição aqui nada tem a ver com destruição. Demolir é remover um volume de forma específica, para ali naquele contexto, fazer surgir um outro”. É esse outro que vemos surgir de forma perturbadora durante a performance: um outro corpo que vai-se avolumando pela força dos muitos que querem permanecer muitos, tornando-se grande, incontrolável.
Notas:
[1] Museu de Arte do Rio.
[2] Performance apresentada no Festival Panorama 2016, no MAR, com dez bailarinos e quarenta integrantes locais.
[3] Sala A do Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro, durante a apesentação no Festival Panorama da Dança 2016.
[4] Soberania, neste caso, entendida como exercício da autoridade que reside num povo e que se exerce por meio de seus órgãos representativos.
Referências bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O que é um povo?. In: DIAS, Bruno P.; NEVES, José (coord.). A política dos muitos: povo, classes e multidão. Lisboa: Tinta-da-China, 2010.
ASSIS, Felipe de; AQUINO, Rita; FRANÇA, Leonardo. Looping: Bahia Overdub. http://www.loopingbahiaoverdub.com/
ESPOSITO, Roberto. The paradigm of immunization. In ________________. Bios: biopolitics and philosophy. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.
EVELIN, Marcelo. Demolition Incorporada. http://www.demolitionincorporada.com/
VIRNO, Paolo. Multidão e princípio de individuação. In: DIAS, Bruno P.; NEVES, José (coord.). A política dos muitos: povo, classes e multidão. Lisboa: Tinta-da-China, 2010.
Ivana Menna Barreto é criadora carioca e pesquisadora em dança, apresentando seus espetáculos e performances em diversas cidades do Brasil. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professora substituta de Dança no Departamento de Ensino do Teatro da Unirio.
MENNA BARRETO, Ivana. “Batucada, Looping e multidão” In Questão de Crítica. Vol. IX nº 68 outubro a dezembro de 2016.