Planos, partitura e dramaturgia: o naturalismo e a confissão da carne

Crítica da peça O abajur lilás, de Plínio Marcos, com direção de Renato Carrera

25 de abril de 2016 Críticas

Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF 

Resumo: O presente ensaio pretende discutir a montagem de O abajur lilás, de Plínio Marcos, construída pela Vil Companhia de Teatro, que teve grande repercussão na cena contemporânea carioca. Para isso, enfrenta-se o naturalismo do texto de Plínio Marcos, a relação metafórica deste com a ditadura brasileira, e a criação de um texto corpóreo enriquecido pela encenação de Renato Carrera.

Palavras-chave: naturalismo, planos narrativos, textocentrismo, dramaturgia do corpo, discurso da carne, crítica

Abstract: This review discusses the staging of Plínio Marcos’ O abajur lilás by Vil Companhia de Teatro, who had great repercussion in the Rio de Janeiro contemporary theatre scene. The staging faces the naturalism of Marcos’ text, the metaphorical link between the play and brazilian dictatorship, and the creation of a corporeal text added by Renato Carrera’s direction.

Keywords: naturalism, narrative plans, text centrism, body’s dramaturgy, flesh’s discourse, criticism

 

A montagem de O abajur lilás dirigida por Renato Carrera marca a comemoração dos 80 anos de nascimento do dramaturgo Plínio Marcos e o surgimento da Vil Companhia de Teatro, idealizada pelo diretor e por Andreza Bittencourt, uma das atrizes do grupo. Para além da comemoração do aniversário do autor e do surgimento de uma nova companhia, algumas questões merecem ser destacadas na montagem: a comunicação da peça de Plínio Marcos hoje e o processo de atualização da obra edificada pelo grupo.

  1. A comunicação do texto de Plínio Marcos: naturalismo e determinismo

Comunicação é uma palavra que preserva certa ambiguidade de valor. Comunicar em si é uma ação neutra: é tornar comum uma reflexão, uma perda, uma dor, um medo, uma informação e até mesmo uma violência. Geralmente, a ideia de comunicação pressupõe que a linguagem tem os seguintes agentes: o produtor e o receptor da mensagem. No caso, o primeiro produz a mensagem enquanto o segundo a recebe e a absorve.

A partir desta crença, muitos mecanismos de comunicação foram estudados e testados a fim de que a mensagem chegasse ao receptor do modo mais “natural”. Alcançar o “natural” seria como atingir um acordo social cognitivo em relação àquilo que se identifica como próprio de uma natureza (não faltarão definições plurais para ela) e, no caso do teatro, a palavra “natural” quase sempre parece se opor ao sentido de artifício. Ser natural é, portanto, uma espécie de antônimo de ser teatral.

Entretanto, há uma ideia de naturalidade que se conecta com o teatral por intensificação. A “natureza” está ali tão intensificada, tão crua e exposta que acaba por fazer espetáculo de si própria. “Natureza” que artificializa a si própria ao afirmar um único sentido acerca de si mesma como pura pulsão, dejetos e excreções. Os indivíduos são apresentados em um ágon de disputas insolúveis. Eles são pulsão e vontade de dominação instintiva. Finda a racionalidade, malvista (ou vista como mentirosa), e inaugura-se um sentido de natureza que entende o homem apenas como um ser biológico, ou seja, mais bicho do que ser racional.

Na medida em que se esvazia qualquer esforço de pensar o duplo razão e animalidade, optando por um único sentido, esgota-se a possibilidade de se pensar em um sentido amplo e histórico que seja, ao mesmo tempo, contingencial e iluminador. Sem essa dialética cai-se no esquematismo matemático da razão, ou na certeza de que se é apenas bicho e ser vivente.

Em O abajur lilás de Plínio Marcos o esquema dramatúrgico comunica uma máxima acerca do homem como um ser contingencial e produto do meio ao qual está circunscrito. É necessário, pois, acompanhar a narrativa da peça para se observar esse processo de construção do autor.

Giro é o proprietário de um quarto alugado a Dilma e Célia, duas prostitutas, que lhe pagam o valor percentual dos programas. No quarto, ele discute o tempo todo com ambas sobre o fato de elas estarem dando pouco lucro. Assim, um clima opressor se instaura no ambiente no qual se observa o temperamento mais resignado de Dilma, que tem um filho para criar e sustentar, e mais revoltado de Célia, que enfrenta sempre o proprietário do local.

Em um desses momentos de revolta, Célia propõe a Dilma um plano para matar Giro. Dilma, porém, mansa e mais preocupada com o filho, não aceita a proposta da companheira de quarto. Célia, revoltada e disposta a provocar Giro, que lhe bateu na noite anterior, quebra o abajur lilás do quarto.

Na sequência desses acontecimentos chega Leninha, uma prostituta mais arisca, que negocia de igual para igual com Giro em troca de lençol limpo, entre outras coisas. Enquanto se desenvolve esse diálogo, a moça vê o abajur lilás quebrado. A partir desse momento, o conflito da peça está armado. O fato levará à tortura de ambas, culminando na morte de Célia.

De fato, a peça de Plínio Marcos, apesar de toda a sua atmosfera de naturalismo, expõe a sua artificialidade não apenas pela alta exposição dessa natureza que espetaculariza a si própria, mas também pela própria metáfora que une as personagens ao contexto da ditadura brasileira. A esse respeito, o ensaio “O abajur lilás, de Plínio Marcos: uma escrita da escória contra a ditadura”, dos professores Ricardo Magalhães Bulhões e Wagner Corsino Enedino (2014), nos traz:

Clara metáfora da história do Brasil do “regime”, O abajur Lilás nasce num momento em que se estabeleciam pactos para silenciar os crimes da ditadura e parece equiparar o país a um prostíbulo. Simulacros, as três prostitutas que vivem o drama corresponderiam aos cidadãos, o cafetão e seu “ajudante”, aos militares e torturadores sádicos e insensíveis, numa época em que ao governo cabia divulgar uma imagem de crescimento econômico e de um país que lutava contra as injustiças sociais.

Alguns aspectos da peça justificam a relação direta com a ditadura: o dilema que as personagens têm de caguetar, ou não, a companheira de quarto que quebrou o abajur, o “enclausuramento” de ambas no espaço, e a tensão inconciliável expressa por um regime de poder nas mãos dos mais fortes ao qual as três prostitutas estão submetidas à força de Giro e do seu capanga Oswaldo.

A palavra “simulacro”, escolhida pelos ensaístas, expressa bem o que se verifica no drama de Plínio Marcos. As três personagens são prostitutas pelo linguajar e pelo modo realístico com que o autor as desenha no espaço. Entretanto, a situação de clausura em que elas estão é artificial. A todo tempo faz-se a pergunta sobre o que as prende àquele lugar: uma paixão, como a de Neusa Sueli pelo seu gigolô Vado (de Navalha na carne – outra peça de Plínio Marcos)? Masoquismo? Sem passado, fora o filho de Dilma, as três estão ali apenas como seres explorados pelo proprietário daquele espaço. É bem verdade que Leninha é prostituta por convicção e não por obrigação, diferente das outras. E a existência dela ali cria certo contraste com as outras duas que parecem estar submetidas, somente, a um regime escravo. A personagem de Leninha acaba por dotar o enredo de maior verossimilhança e nubla o esquematismo das prostitutas confinadas presente no texto.

Deve-se então verificar como a peça de Plínio Marcos comunica esse ambiente hostil e abjeto. É por meio do uso de uma linguagem bem específica que o autor informa o nível de rebaixamento dos seres. Um bom exemplo é o uso recorrente de imagens de assepsia, que sugerem lavagem e limpeza do ambiente e dos corpos.

Dilma – E os três da tarde não conta?

Giro – E tu acha muito?

Dilma – E não é? Oito vezes. Não é mole.

Giro – Isso não é nada.

Dilma – Quem está ardida é que sabe.

Giro – Tu é cheia de luxo.

Dilma – Quem gosta de mim sou eu.

Giro – E se lava com sabão de coco. Pensa que eu não sei?

Dilma – É o melhor.

Giro – O mais barato.

Dilma – Desinfeta. Vale tanto quanto álcool.

Giro – Sei que vale. Por isso que tu anda ardida à toa (MARCOS, 1975, p. 10-11).

 

Como se observa no diálogo acima, a fala expõe o corpo da prostituta como um corpo carente de assepsia. Dilma se lava com sabão de coco após o trabalho. Giro, o seu opressor, diz que a lavagem está fazendo com que a prostituta fique pouco disposta ao ofício. Na passagem, observa-se a justaposição das exigências do proprietário do imóvel, explorador, a essas imagens de limpeza que aparecem em vários momentos da peça, como a recorrência da fala de Giro sobre ter visto catarro com sangue e a necessidade de lençóis limpos reivindicada por Leninha.

Giro – Tá bem, tá bem. O que quero dizer é que uma das duas aqui é porca, sem vergonha, nojenta e tudo. Não sei quem é, não me interessa. Só estou falando, porque o escarro estava cheio de sangue. (Pausa. Dilma fica preocupada.) Entendeu o que eu falei? O escarro tinha sangue. Um monte de sangue. Sangue. Sangue às pampas (MARCOS, 1975, p. 15).

Aí, as imagens das secreções se intensificam, uma vez que surge a ideia de uma enfermidade que compromete o corpo de uma das prostitutas do quarto. Em O abajur lilás, esta questão deve ser avaliada, pois liga a profissional do sexo à imagem de um corpo que está ameaçado pela morte. É como se na ausência de cenas de sexo – apenas uma no meio da peça, sugerida, a entrada de um cliente para Dilma – o dramaturgo necessitasse construir com o excesso dessas imagens de putrefação o simulacro do corpo da prostituta.

No vocabulário da peça, vê-se o uso de adjetivos e metáforas depreciativas ligadas ao órgão genital feminino: “roçadeira”, “greluda”, “panela larga”, entre outros termos. As duas primeiras palavras servem para expressar uma orientação sexual e a última refere-se ao genital da prostituta. Esse linguajar é usado por todos os personagens da peça e com grande naturalidade. Não é somente Giro, o homossexual explorador, que emprega esse vocabulário específico. Há, pois, uma ideologia misógina entranhada na peça que se justifica pela busca de uma técnica de escrita naturalista. Vale, portanto, se perguntar se o naturalismo não acaba confirmando um lugar-comum de tipos que, apesar de verossímeis e humanizados, apenas comunicam a identidade das personagens, não produzindo uma reflexão que os afaste do senso comum.

Como a ação política da peça não age criticamente nesses matizes e caracteres, fica impossível captar qualquer abertura para um corpo mais libertário e político. É como se a metáfora da ditadura ficasse no plano da alusão, uma vez que as pinceladas desses personagens são excessivas e acabam por dominar a cena como um todo.

Na peça, a representação da carne e do desejo surge como algo a ser rebaixado pela linguagem. É, portanto, abjeto. Assim sendo, reproduz-se um imaginário cheio de preconceito, sem que os usos dessas imagens produzam uma crítica ao recurso linguístico que está ali presente. Esses usos funcionam, sim, como um reforço do preconceito, que se baseia na construção de uma ideia de natureza que não se abre a nenhuma dialética. Não se pode confundir o determinismo opressor-oprimido – Giro e Oswaldo versus as prostitutas – com a elaboração de uma dialética. Tal determinismo, repleto de maniqueísmo, acaba confirmando uma lógica naturalista que se sustenta na ideia de que o mais forte sempre vence. É também essa concepção de naturalismo que vence na estrutura de O abajur lilás. Se, por um lado, o domínio da carpintaria (diálogos, caracterização das personagens, conflito, ritmo interno das imagens) executa uma obra bem arranjada do ponto de vista dramatúrgico, por outro lado, é indispensável a interrogação acerca da ideologia que sustenta, mesmo na forma de denúncia, a estrutura dessa dramaturgia.

De fato, é uma peça de denúncia. A ideologia dos dominantes e o determinismo estão sendo mostrados com o intuito de produzir uma crítica. Porém, o maniqueísmo em torno da ideia de “natureza” se fixa em um esquematismo que reproduz modos de pensar hegemônicos, que não subvertem a forma e não propõem uma reflexão suficiente sobre o corpo e a relação opressor / oprimido, fixando-se no maniqueísmo. Logo, em termos de pensamento, a dramaturgia não ultrapassa o limite de uma obra de denúncia da violência contra as prostitutas, como metáfora para a ditadura.

Do mesmo modo, a comunicação se dá pela ativação da violência entre as personagens, tocando o público em função da identificação com a dor física e moral. Sendo assim, o público passa a ser naturalizado como um espectador que é acionado por essa violência por meio do reconhecimento, e não através de uma reflexão crítica. Como só há vítima e algoz, ele se identificará com uma das polaridades.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.
  1. Atualização da obra pelo grupo: os planos narrativos e a abertura das imagens

O trabalho da Vil Companhia de Teatro se baseou na construção de partituras que alargam as imagens do texto de Plínio Marcos. Cenas de sexo, que não estão presentes no texto, iniciam o espetáculo e formam aquilo que se convencionou nomear de dramaturgia do corpo, ou seja, a partir de proposições corporais, várias atmosferas e glosas corpóreas são criadas em torno do universo tratado pelo dramaturgo. Logo, há na peça a dramaturgia de palavras (textocêntrica) de Plínio Marcos e uma dramaturgia do corpo, gerada por partituras corporais criadas na sala de ensaio.

Na primeira cena do espetáculo, assiste-se aos atores Andreza Bittencourt e Higor Campagnaro expondo uma série de movimentações ligadas ao encontro de uma prostituta com o seu cliente. Nesse momento da peça, um vocabulário de posições sexuais é mostrado. Nele, observa-se uma amplitude de gestos que desenvolvem imagens próprias ao ambiente de um prostíbulo.

São sete quadros que partem de posições de intimidade desses dois personagens – o cliente e a prostituta: no primeiro quadro, a prostituta fica com a cabeça pendendo para fora da cama e o cliente faz sexo com ela ali caída; no segundo, eles ficam de joelhos na cama imitando cachorro; no terceiro, o cliente está na cama chorando enquanto a prostitua o consola e depois o domina com um gesto, como se ela o estivesse penetrando com sua vagina; no quarto, os dois estão em pé na cama embalando um bebê, até que o gesto de embalar se transforma em um coito anal; no quinto, assiste-se a um sexo oral praticado com violência, no qual a prostituta fica engasgada; no sexto, a prostituta grita pela cena violenta de sexo; no sétimo, simula-se um parto em que a prostituta dá à luz um homem já grande.

Esses quadros partem, certamente, de elementos presentes no próprio texto. As imagens de violência e de dor no sexo e o parto e o bebê embalado fazem menção ao filho da prostituta Dilma e ao cotidiano das prostitutas. Entretanto, as imagens se expandem e, se a prostituta não chega a ser apresentada como um ser que tem prazer, ela se vê empoderada e não apenas como vítima de um sistema. Nesse sentido, o trabalho amplia o entendimento do corpo que se vê presente no texto de Plínio Marcos.

No meio da peça, as três atrizes vão à frente do palco e iniciam, nuas, uma cena de banho. Aos poucos, o banho vai se transformando em uma masturbação. Este é um bom exemplo de tentativas de intensificação e de desvio das imagens sugeridas pelo texto. Intensificação porque não há banho das prostitutas como ação no texto de Plínio Marcos, e sim imagens de assepsia e limpeza a todo tempo sendo ditas e sugeridas como necessárias ao ambiente; e de desvio porque na peça não há prazer nesses corpos, e sim dor e sofrimento, e esta cena propõe a criação de um momento de gozo corporal das prostitutas.

Andreza Bittencourt, que interpreta Dilma, a prostituta sofrida, masturba-se de modo doloroso; Laura Nielsen, a Leninha, faz o gesto com bastante realismo, como se realmente estivesse ali se masturbando; e Lara Cunha artificializa o prazer em sua máscara facial, talvez por imaginar que sua personagem, a rebelde Célia, fosse dissimulada com os clientes. Não consigo imaginar, fora este motivo, uma justificativa para a artificialidade da atriz na cena.

No momento do banho, a direção musical de Alexandre Elias escolheu para a cena uma música com um tom religioso, o que de algum modo passa a ideia de que o banho está ali cumprindo a função de purificar aqueles corpos. Do mesmo modo, a iluminação pictórica de Renato Machado e a escolha do quadro pela direção nos remetem aos banhos femininos das pinturas de Rembrandt, em que a carne está sendo apresentada de modo vigoroso a partir da técnica de tinta a óleo.

Quando se inicia a masturbação, a música desaparece e a luz se abre quase numa geral do palco. Nesse momento, as três atrizes estão presas à lógica interna das personagens. Esse procedimento acaba por revelar que a masturbação não está ali para ser um desvio crítico ao texto de Plínio Marcos, mas uma acentuação do imaginário da peça. Enquanto o banho é embalado por um tema musical religioso, a masturbação assume um tom confessatório que ratifica o quanto aqueles corpos, tirando o de Leninha (a prostituta por vocação, aquela que acaba entregando a amiga), estão submetidos a uma enorme opressão. A masturbação acaba tornando-se, portanto, menos prazer, e mais confissão de uma realidade psíquica.

Como se vê, os planos narrativos do espetáculo se transformam, internamente, em um reforço à ideia central do texto, que vê a carne de modo abjeto, apoiando, mesmo que por denúncia, a lógica cristã da confissão da carne (como lugar do pecado). O uso do discurso pornográfico também confirma a ideia central, já que ele geralmente trabalha com a noção de que a perversão não é a suplantação da culpa, e sim a afirmação da marginalidade do corpo. O corpo, o prazer, os genitais, os fluidos são delitos que são confessados como rebeldia discursiva e não como superação de uma lógica que entende a carne como abjeta em relação ao espírito.

De fato, a criação do plano-partitura está em perfeita consonância com as imagens trazidas pelo texto de Plínio Marcos. Porém, a força da primeira cena está em apresentar o corpo de uma prostituta como capaz de ir além de um sistema que se liga apenas à ideia de opressor-oprimido, ativo-passivo. Aqui, contudo, o plano do banho e da masturbação segue a direção do texto, sem promover um descolamento crítico do universo retratado pelo dramaturgo.

Nesse sentido, o espetáculo O abajur lilás nos põe diante de uma questão importante do debate teatral contemporâneo no que toca à presença da construção de uma dramaturgia do corpo e de uma dramaturgia textocêntrica. Geralmente, esse debate costuma ser raso e opor um uso ao outro. Por opção, O abajur lilás, da Vil Companhia de Teatro, escolheu trabalhar com uma escritura corporal que avigora a proposta do texto. Mas é necessário perceber que o corpo é, ao mesmo tempo, um território político-discursivo e ideológico. E que talvez a naturalização dos planos narrativos pelo espetáculo, como a preservação da caracterização das prostitutas como personagens da peça, retire a possibilidade de desvio e de descolamento do texto da peça, e, principalmente, de transgressão e de crítica de um texto mais vigoroso que o de Plínio Marcos, próprio ao lugar-comum que amarra a carne à noção pecado, imputando ao corpo da prostituta (ou de qualquer mulher conectada com sua genitália) uma função abjeta.

No momento da masturbação, Laura Nielsen, talvez por conta da lógica interna de sua personagem, faz o gesto com mais força, já que não parece simular uma masturbação e sim fazê-la ali. Andreza Bittencourt, que interpreta com doçura a prostituta Dilma, ao fazer uma masturbação chorosa, imprime ao seu gesto um tom confessional. Há nestes dois modos de proceder duas possibilidades; como leitura para cena, prevalece o tom confessional e culpado escolhido por Andreza. Caso as três atrizes estivessem ali num gesto performático, desligado da lógica da personagem, a cena teria a força de dizer: deixa o corpo da prostituta existir e ter prazer. Na falta desse empoderamento, o conteúdo pornográfico se mistura a um entendimento naturalista e problemático sobre o corpo da mulher. Este, na peça, acaba sendo exposto em demasia e fragilizado apenas como denúncia de uma lógica pouco complexa do opressor e do oprimido, do forte e do frágil, do ativo e do passivo.

Certamente, a personagem de Célia é um dos papéis mais difíceis de construção nessa peça de Plínio Marcos. É nela que se nota a estrutura simulacral da prostituta ao mesmo tempo como prostituta e revolucionária. Ela não tem prazer com o ofício como Leninha, e nem um motivo afetivo-familiar para se submeter ao trabalho, como é o caso do filho para Dilma. Logo, Célia acaba sendo um personagem de verniz naturalista e de fundo alegórico e político. Há nela, portanto, um ajuste difícil de se resolver: ela é o cume da metáfora que liga a peça com a opressão da ditadura e, simultaneamente, o corpo que é morto de forma violenta no final pelo capanga Oswaldo (Higor Campagnaro) de seu opressor Giro (interpretado por Eber Inácio).

Por fim, o uso da metáfora da ditadura presente na peça deve ser discutido. A comunicação não contextualizada da ditadura, mas fundamentada pelo naturalismo universalista do drama de carpintaria bem feita, acaba por construir um conceito de ditadura a-histórico, apesar de seu teor existencialista. No caso específico desta peça, o existencialismo se deve à pretensão de afirmar que todos ali estão presos a uma existência cuja lógica se encerra na estrutura dicotômica da relação opressor-oprimido. A ditadura acaba sendo uma máxima das relações humanas, e não é pensada em cada contexto histórico-social específico. Sabe-se que o disfarce presente nos textos da época tinha como objetivo escapar da censura, embora esta peça de Plínio Marcos não tenha se livrado dela. Hoje, assistindo à peça, a citação à ditadura parece camuflada e o que a peça mais comunica é essa condição de violência contra essas três mulheres. Certamente, isso se dá devido ao encontro entre o naturalismo do texto e o explorado pela montagem vigorosa do espetáculo.

 

Referências bibliográficas:

BULHÕES, Ricardo Magalhães e ENEDINO, Wagner Corsino. “O abajur lilás, de Plínio Marcos: uma escrita da escória contra a ditadura. Revista Nonada, 2014. Disponível em: http://seer.uniritter.edu.br/index.php/nonada/article/view/885. Acesso em: 07/02/2016.

MARCOS, Plínio. O abajur lilás. São Paulo: Editora Global, 1975.

 

João Cícero Bezerra é crítico e teórico de arte e teatro, dramaturgo e escritor. Formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO, é Mestre em Artes Cênicas pela mesma instituição e Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio. De 2008 a 2015, lecionou Estética e História da Arte no bacharelado de Artes Visuais do Senai-Cetiqt. Leciona no Bacharelado de Teatro da CAL.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores