Para além da montagem de formatura

Crítica da peça Yerma, de Federico Garcia Lorca, direção de Renato Carrera

30 de junho de 2014 Críticas

Vol. VII, nº 62, junho de 2014

Resumo: Análise crítica do espetáculo teatral Yerma, de Federico Garcia Lorca e direção de Renato Carrera com os alunos formandos do primeiro semestre de 2014 da Casa de Artes de Laranjeiras (CAL). O artigo procura analisar a montagem com o olhar sobre sua qualidade técnica empenhada pela força conjunta e o diálogo estabelecido entre direção e alunos formandos.

Palavras-chave: formação artística, grotesco, ritualização

Abstract: Critical analysis of the staging of Yerma, by Federico Garcia Lorca, directed by Renato Carrera with senior students graduating on the first semester of 2014 from CAL (Casa das Artes de Laranjeiras). The article intents to analyze the staging by taking a close look at its technical qualities, which are a result of a joint force and of a conversation between the work of the director and the senior students.

Key-words: artistic training, grotesque, ritualization

Para além da montagem de formatura

Foto: Divulgação.

Recentemente pude assistir a uma montagem de formatura no Instituto CAL, que me chamou a atenção pelo acuro técnico e pela apropriação da dramaturgia pelo grupo de alunos formandos. Yerma, de Federico Garcia Lorca e direção de Renato Carrera se configura como uma montagem de formatura que foge do horizonte de expectativa dos recentes trabalhos a que pude assistir nessa tradicional escola de formação de atores da cidade do Rio de Janeiro. O cuidado detalhado com questões técnicas da cena, como cenografia, iluminação, figurinos, a questão da imersão na dramaturgia e no universo do autor pelo coletivo de atores, o sentido de um trabalho conjunto e compartilhado entre os formandos e a vertente musical que se molda como um condutor da narrativa da cena são os ingredientes que fazem dessa montagem um ótimo espetáculo da temporada do primeiro semestre de 2014.

É possível perceber a marca de um trabalho que não se resume a uma simples montagem de um texto teatral. É recorrente nas práticas de montagem dessa escola ver espetáculos em que não está em jogo uma pesquisa no campo das atuações, nem a escolha de dramaturgia a partir das especificidades de determinada turma. Muitas vezes, trata-se mais de uma meta a ser concretizada dentro do quadro curricular da instituição, abarcando os anseios de uma turma de alunos que necessita cumprir uma etapa de sua formação como artista, do que de um degrau na etapa reflexiva, construtiva de futuros artistas dentro de um processo de criação cênica específica – claro que há fatores externos que de alguma maneira dificultam esse tipo de intenção mais reflexiva, que prioriza menos a ideia de uma montagem ser um produto final do que um processo de investigação conjunta entre direção e alunos formandos – fatores como o tempo hábil de montagem ser bastante limitado, além de o diretor desconhecer a priori as habilidades e especificidades de atuação de cada aluno, são indicativos de uma tarefa árdua, mas que muitas vezes é simplificada numa escolha de dramaturgia que apenas dá conta do número de atores para o número de personagens e resulta em mera distribuição de papeis de acordo com talentos e anseios de protagonismo.

O que ocorre nessa montagem de formatura do primeiro semestre de 2014 na CAL é o aparecimento de uma obra cênica projetada por um trabalho de verticalização dos alunos, no sentido de imersão no universo poético da obra escolhida, resultando num trabalho cênico consistente e que projeta uma continuidade. Emerge um espetáculo que tem em sua atmosfera o esforço de um trabalho de sala de aula, com um estudo da dramaturgia e pesquisa da possibilidade de cada ator desenhar em cena o seu personagem, podendo cavar fundo em suas especificidades atoriais a partir das circunstâncias da dramaturgia. Salta aos olhos também uma potência de sentido coletivo entre os atores, num trabalho conjunto e reflexivo sobre as propostas da direção, sobre o texto, sua potencialidade trágica, sobre a execução musical em cena e sobre o coro, sobre o teor ritualístico que abarca um sincretismo religioso na cena, e o trabalho do ator, evidentemente.

O texto escolhido para montagem, do dramaturgo espanhol Federico Garcia Lorca forma com Bodas de sangue (1933) e A casa de Bernarda Alba (1936) uma trilogia rural que tem como cenário os campos da Andaluzia, região da Espanha de grandes propriedades de terra. Uma região de confluência de muitas raças, como os árabes e flamencos, que deixaram marcas profundas na cultura e costumes da região, e é retratado nesse tríptico de Lorca, emergindo uma sensibilidade do autor pela temática social, pela questão do peso da família, e dos costumes religiosos, místicos e pagãos do povo andaluz. A história se passa nesse cenário campal e narra a dor da jovem Yerma por não ser mãe e não conseguir engravidar. em oposição ao seu desejo ardente pela maternidade, há a frieza e indiferença de seu marido João. Mas a queixa de Yerma não termina nessa negação do marido. Para buscar a fertilidade, a personagem procura métodos místicos com uma rezadeira e conselhos com uma velha pagã. E em sua trajetória incessante pela fertilidade, a fala de Yerma associa seu ventre sem filhos à imagem de uma terra seca, vazia, murcha, diferente da terra habitada por ela, um solo que cumpre seu ciclo de fertilidade.

A imagem do ventre feminino e da terra como similares na produção de vida, a imagem do corpo da mulher fecundado e da terra semeada – os campos da Andaluzia – produz sentidos complementares e uma metáfora que orienta o olhar do espectador. A protagonista mergulha verticalmente na sua impossibilidade, tornando comum a todos sua carência. Essa dicotomia ventre/terra é um vetor imagético constante no texto de Lorca, que reverbera na montagem dirigida por Renato Carrera.

A dualidade acima destacada aparece na montagem pelo ambiente cenográfico que não procura dar a ver o espaço rural da Andaluzia, mas, produzir o jogo metafórico entre a imagem da terra e do ventre feminino. André Sanchez, que assina a cenografia, cobre o palco com uma lona de caminhão forrada de pedaços picotados, e depois colados, de papel pardo. As paredes do teatro são de tijolo rústico, que ficam à mostra e fundem-se com harmonia ao pardo do chão que remete à terra seca. Alguns bancos de madeira bruta servem como delimitadores do espaço físico da cena. A arquitetura do teatro é evidenciada pelo desenho de luz, uma claridade esmaecida que invade o espaço da plateia e instaura o clima. Todos os objetos cênicos, como bacias e baldes, são materiais embrutecidos, rústicos, que fazem alusão ao ambiente rural. O espaço é banhado por uma iluminação ocre, amarelada, que remete à luz dos candeeiros usados nas residências do campo. O desenho de luz de Renato Machado cria um ambiente denso e carregado, os focos de luz incidem sobre o chão, destacando o efeito texturizado do papel que cobre a lona. A imagem de rachaduras e fissuras formadas nesse efeito retifica a ideia do ventre seco de Yerma como o solo seco do sertão.

Essa associação visual e metafórica que remete ao sertão brasileiro ganha amplitude na composição musical. Os versos de Lorca são musicados por Isadora Medella, que assina a direção musical e produz uma harmonia musico-coral apoiada numa batida regionalista, instaurando uma mistura de ritmos brasileiros nos cantos e melodias. A escolha dos instrumentos como o acordeão, a rabeca e o triângulo evocam um ritmo nordestino, do forró, da ciranda, das procissões religiosas. Já a percussão com tambor e zabumba traz um ritmo africano, com uma batida candombleica. Esses estilos musicais que compõem a partitura musical são entoados pelo coro, que tem na voz feminina sua potência sonora, sobressaindo vozes mais estridentes e acentuadamente agudas. A direção musical do espetáculo se preocupa em potencializar essas vozes femininas, criando o efeito que remete às ladainhas, procissões religiosas, o canto das cirandas. Esse tônus musical de vibração feminina, agudo e em alto volume, sublinha a metáfora entre terra, ventre de Yerma e o solo do sertão brasileiro já destacado pela composição visual do espetáculo.

Os movimentos musicais do coro vêm sempre carregados de um apelo visual da atuação, que pretende evidenciar a carga ritual existente na dramaturgia. Os espaços que Lorca confere ao misticismo e à religiosidade são, na encenação, pontos focais de uma atuação que privilegia uma liberdade física dos corpos, convergindo em atuações que conferem um status ritualístico à cena. E nesses espaços mais livres da direção, Carrera materializa a aglutinação do misticismo religioso de Lorca com registros da cultura candombleica e afro-brasileira. Em dois momentos do espetáculo, essa associação se dá de forma explícita e bem executada, como a abertura do terceiro ato, em que a personagem Dolores, uma rezadeira que é interpretada por Beta Schneider, se movimenta numa roda fechada, com os cabelos encobrindo o rosto e andando freneticamente pelo espaço, com a voz grave e fechada, numa cadência que remete à presença de uma mãe de santo. Ao seu redor um coro de atrizes evolui, usando instrumentos como o tambor, zabumba e agogô, que dão o tom e ritmo da cena e convocam a brasilidade do candomblé, que aproxima o olhar do espectador – já que o ritual lhe é culturalmente familiar. Na dramaturgia, não há a descrição da ação da reza no cemitério, ou dessa roda mística da rezadeira com oferendas e mulheres em sua volta. Há apenas um diálogo entre Yerma, Dolores e a Velha pagã, que remete à ação passada em que estiveram no local ermo e sombrio do cemitério.

Já no outro momento, também no terceiro ato, há uma cena ritual de caráter pagão descrita por Lorca, com teor místico, em que o autor coloca a presença alegórica de um Demônio, representado por Gustavo Henrique, um coro de raparigas e mascarados com as alegorias Macho e Fêmea. A descrição didascálica do texto dá indícios de um ritual telúrico, alegórico, místico:

Há na cena como um crescendo de vozes e de ruídos de guizos e colares de campainhas. Num plano superior, aparecem as sete Raparigas que agitam as fitas para a esquerda. Cresce o ruído e entram dois mascarados populares, um como Macho e outro como Fêmea. Levam grandes máscaras. O Macho empunha um chifre de touro. Não são de modo nenhum grotescos, mas antes de grande beleza e com um sentido de pura terra. A Fêmea agita um colar de grandes campainhas. O fundo enche-se de gente que grita e comenta a dança. (LORCA, 1963, p. 113)

E o que vemos é a representação desse ritual, de forma exacerbada tanto pela nudez como pelo movimento corporal do ator, quanto pela atuação eufórica do coro de mulheres ao seu redor. E é bastante interessante perceber que há um extravasamento na atuação de Gustavo Henrique, numa erupção energética desse corpo, estabelecendo um diálogo com a imagem proposta por Lorca, mas extravasando-a porque, contrariamente ao que sugere o autor na rubrica, é grotesca. Os movimentos corporais que o ator propõe (ele está nu com o corpo todo pintado de tinta vermelha), são extremados: estica o corpo como que com espasmos; as extremidades, mãos e pés, ficam esticadas; a sua língua fica para fora da boca; o ator produz um som forte com a sua respiração ofegante. Instaura uma orgia de gritos com forte pulsão feminina no corpo, mas resultando numa imagem grotesca. É grotesco na medida em que possui um caráter alegre e festivo, ligado à ideia de abundância, de fertilidade. O Demônio de Gustavo Henrique exibe um rebaixamento, uma transferência ao plano material e corporal de tudo o que é elevado, espiritual e belo nessa cena de Yerma. Nesse momento do espetáculo, a carga ritualística, descrita por Lorca e uma das chaves de leitura da encenação, cria um corpo rabelaisiano, que é um corpo ao avesso, que sai para fora de seus limites, que extravasa, que se liga à terra, ao baixo ventre, às extremidades dele próprio. É grotesco nessa medida, e nessa medida a cena é de uma beleza ímpar, como o próprio autor exige em sua rubrica.

O trabalho da direção sobre as atuações revela um árduo estudo do texto, conferido pelo registro de atuação que prioriza a composição dos personagens. A direção optou por dividir a personagem título por cinco atrizes, Thuany Andrade, Luisa Alves, Isabella Moss, Gabriela Miranda e Luciana Paes. O que se sobressai é um esmero com a palavra poética da dramaturgia, a contundência nas falas, especialmente aquelas dirigidas ao público. O trabalho de composição da personagem pelas atrizes revela um esforço, uma construção que só pode acontecer com a disponibilidade de cada atuante para o erro e os fracassos que um trabalho de imersão revela. É sintomático que todas as composições vêm carregadas de carga trágica bastante acentuada. Há uma rigidez nos corpos de todas as atrizes que dividem o protagonismo e me parece que essa fixidez é uma escolha, já que investe um olhar menos na doçura de menina em Yerma que na carga dramática de sua dor e lamento.

Olho para esse trabalho e vejo um esforço e uma imersão de toda a equipe e, principalmente, desses alunos formandos que projetam suas carreiras profissionais através do trabalho desenvolvido no espetáculo. Para além da montagem de formatura de uma escola de teatro, há a inscrição artística de cada um. Acho que o fato de Renato Carreara ter levado a sua equipe artística para desenvolver a montagem contribuiu na feitura coletiva de um trabalho cênico consistente, pungente e que exibe a necessidade de uma continuidade nas apresentações, sempre olhando para o processo que o formatou. É um trabalho de grupo, de um coletivo, de uma construção em que cada um colabora com suas potencialidades em prol de um trabalho que também quer atingir o resultado final, mas distingue-se de outras montagens por manter ali um projeto de encenação, a semente de um trabalho que não morrerá nos dias de apresentação da temporada inicial. Estão em cena futuros atores, envolvidos singularmente na construção da encenação. Um espetáculo que procura vida após a formatura, pois está carregado de desejo pela cena, de sensações emanadas nas atuações e apropriação do tema e da tragédia do texto do dramaturgo espanhol.

Referências bibliográficas:

LORCA, Federico Garcia. Yerma. Poema trágico em três atos e seis quadros. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1963.

Dâmaris Grün é bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO e atriz formada pelo curso de Formação de Atores do Centro Universitário da Cidade.

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