O trans e a trans: fábula mundo

Crítica dos espetáculos A geladeira e O homossexual, ou a dificuldade de se expressar, de Copi

31 de agosto de 2015 Críticas

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: Crítica dos espetáculos A geladeira e O homossexual, ou a dificuldade de se expressar, de Raul Damonte Botana, mais conhecido como Copi, à luz do conceito de ator-travesti cunhado pelo próprio artista e retrabalhado nas encenações dirigidas, respectivamente, por Thomas Quillardet e Fabiano de Freitas. Os trabalhos fizeram parte da Ocupação Copi ocorrida no SESC Copacabana e no Museu de Arte do Rio, em julho deste ano.

Palavras-chave: Copi, transgênero, ator-travesti

Abstract: Critical review of the plays A geladeira and O homossexual, ou a dificuldade de se expressar, written by Raul Damonte Botana, known as Copi. Both works – the former directed by Thomas Quillardet and the later by Fabiano de Freitas – shape their own reading of the concept of the “transvestite actor”, a concept created by Copi to define most of his work. The plays were part of the event Ocupação Copi, that took place last July in Rio de Janeiro.

Keywords: Copi, transgender, transvestite actor

 

Observo no google as imagens do argentino Raul Damonte Botana (1939-1987), e tento imaginá-lo em proximidade e concretude. Travestido de drag ou de modelo Tom of Finland, ele incorpora o que normalmente conceberíamos como o “ator-travesti”, conceito cunhado pelo próprio artista para definir estética e ideologicamente boa parte de seus trabalhos. Contudo, acredito que nas imagens do cotidiano podemos também flagrar esse conceito tão central na obra do autor. Vejo no olhar risonho, sardônico mesmo nas poses mais despretensiosas e contidas, uma espécie de humor irreverente que parece denunciar em germe o ator-travesti por trás do corpo franzino e pálido, tão branco que sua avó o chamará “copito de nieve”, originando mais tarde o apelido / nome artístico com que ficaria conhecido: Copi. O olhar do autor de Loretta Strong parece resistir como o próprio enigma do ator-travesti – enredado nos fluxos metamórficos e transitórios, entre as diversas identidades, gêneros e sexualidades –, mas encerrando sempre um inevitável gosto pelo riso debochado e pela crítica ferina dos costumes.

O apelo político da figura do ator-travesti é notável e latente. Na maioria das vezes, esse aspecto toma à dianteira nos comentários acerca da ficção e da dramaturgia de Copi. No entanto, gostaria de elaborar algumas consequências e potências, na cena teatral, desse humor singular que antevejo nas fotografias e, principalmente, no olhar que o autor nos dirige em cada registro. Em outras palavras, desejo enxergar o ator-travesti como fator de criação, repercutindo no campo da dramaturgia e da ficção. Falo do humor implacável (presente, de resto, nos cartuns de Copi), exuberantemente barroco e, ao mesmo tempo, ridículo e galhofeiro, como se viu nas montagens de A geladeira e O homossexual, ou a dificuldade de se expressar, apresentadas no SESC Copacabana no mês de julho.

As peças fizeram parte da Ocupação Copi, evento que agregou às montagens teatrais oficinas, palestras e performances, com o objetivo de celebrar e divulgar a obra de Copi no Brasil. Encabeçado por Fabiano de Freitas (diretor de O homossexual…) e Thomas Quillardet (diretor de A geladeira), o projeto da Ocupação Copi, claro, não nega a atualidade política da obra do escritor argentino, ainda mais em tempos em que a questão trans vira emblema na luta por visibilidade e igualdade de direitos por parte de diversos grupos, em meio a uma animosidade social que, assustadoramente, persiste. Além disso, a Ocupação também cumpre papel importante na divulgação de um artista pouco conhecido na cena brasileira, montando dois textos seus inéditos no país[1].

Não obstante, gostaria de chamar a atenção sobre como o pensamento e o universo de Copi se concretizam nos espetáculos, e como neles se depreende uma espécie de conceito estético que suporta não só a dramaturgia das respectivas montagens, mas também as une num mesmo contínuo. É certo que os textos de A geladeira e O homossexual… certamente se prestam à alegorização política, pois estamos diante de personagens isolados do convívio social ou até mesmo acossados por ele. O ex-manequim que delira com suas próprias fantasias do primeiro texto, e a comunidade de párias transexuais do segundo são ensejos a partir dos quais se fala da marginalização daqueles que não se conformam aos moldes político-sexuais estabelecidos. O confinamento num pequeno apartamento (em A geladeira), assim como a cenografia em formato de jaula (com tubos que cercam a ação do drama, em O homossexual…), são dados da materialidade da cena que sugerem esse aspecto. Mas acredito que os espetáculos dão a ver outras possibilidades além do elemento criticamente político.

Nas montagens em questão, deparamo-nos com mundos já dados, plenamente configurados. Em que pese sugerir espaços que reverberam a marginalização social – um apartamento cheio de bichos empalhados, o telefone como única ligação com o mundo exterior, em A geladeira; uma Sibéria infestada de lobos e ameaças de prisão, alegoria ambiental da transfobia, em O homossexual… –, o palco, seja ele dirigido por Thomas Quillardet ou por Fabiano de Freitas, traz ao espectador a visão plena de um universo imaginativo. Nele, testemunha-se o lugar privilegiado de desenvolvimento de seres singulares, proporcionando um empoderamento cênico dos mesmos, ainda que estigmatizados socialmente por diversos motivos.

Tentarei desenvolver melhor essa ideia: em A geladeira, o pequeno apartamento de L., longe de sugerir claustrofobia, é o cenário expandido dos delírios do protagonista, que pula incessante e vertiginosamente de uma ilusão à outra, exigindo do ator Marcio Vitto e da orientação corporal de Marcia Rubin certo virtuosismo físico para abarcar o fluxo de diferentes vozes, imagens e narrativas sucessivas. Ali se observa o lugar por excelência da criatividade do ator-travesti, que dá livre vazão às suas fantasias sem contornos precisos ou linearidade. Em meio a elas, uma geladeira comicamente se projeta como o grande mistério da narrativa. Presenteada pela pérfida mãe do protagonista, o temido eletrodoméstico nunca é aberto e enfrentado em seu conteúdo. Torna-se, então, o umbigo em torno do qual gravitam diversos fragmentos de um universo pessoal, configurando uma espécie de Outro, que é ao mesmo tempo alteridade – passaporte para o inimaginável fora de tudo – e fonte do mais profundo psiquismo.

Em A geladeira, o imaginário de um indivíduo singular jorra através do texto e da encenação, em que se misturam referências da cultura pop, gay e do universo do próprio Copi. O fato de enxertarem, no texto da montagem, fragmentos de outras peças como Loretta Strong, potencializando a comicidade nonsense do monólogo, sugere um emparelhamento com a esfera fabular e pessoal do autor, e tal parece ser a intenção da direção de Thomas Quillardet. Enxergo nesse espetáculo um caráter de panorama poético, uma tentativa de resumo cênico da obra de Copi. Estaríamos, assim, diante de um quase prólogo, como se nos preparasse para o mergulho mais denso e ficcionalmente circunscrito de O homossexual…, peça que podia ser assistida logo em seguida, no mesmo Espaço SESC. Nesse ponto de vista, a suposta inversão cronológica proposta pela Ocupação Copi é o que menos importa: A geladeira, texto de 1983, tornar-se-ia preâmbulo ao universo insano e distópico de O homossexual…, uma das primeiras peças de Copi, de 1967.

Se o monólogo de Marcio Vitto, portanto, desnuda, descortina e até mesmo celebra o universo imaginativo do personagem L. e, de certa forma, de seu próprio autor, encontramos em O homossexual… uma outra medida de empoderamento cênico. O enredo da peça de 67 fala de seres que foram submetidos, por vontade própria ou não, à operação de mudança de sexo. Foram, assim, despachados para as fronteiras gélidas de uma Sibéria cuja aspereza climática remete diretamente ao ambiente de repressão política e social. Contudo, em meio ao som dos ventos cortantes que enregelam a atmosfera da montagem de Fabiano de Freitas, um “microcosmo trans” se estabelece e todo um regime de existencialidade se concretiza.

Em O homossexual…, estamos diante de um espaço distópico em que as transexuais planejam fugas, aliciam parceiros, concebem e expelem filhos, amam e transam entre si, e com vários outros. Na Sibéria marginal de Copi, as hierarquias se desfazem ou até mesmo se invertem, e o que impera é uma concepção de corpo e do desejo alheia aos padrões dominantes. Num nível mais superficial, essa “distopia trans” se desenha bem ao gosto dos melodramas contemporâneos da cultura de massa, em que abundam histórias de futuros ou passados idealizados, das tramas intrincadas e aberrantes de Game of Thrones até os Jogos Vorazes juvenis. Porém, logo se vê que o espetáculo se notabiliza por uma particularização estética, afinada ao universo dos transgêneros, das travestis e das drags.

Na falta de melhor palavra, vejo ali uma espécie de “inconsciente”, manancial de imagens oníricas disformes (próximo até mesmo da acepção freudiana do sonho como produto do inconsciente), em que nos deparamos com realidades hiperbólicas e farsescas. Os corpos facilmente ganham e perdem órgãos sexuais, bebês são concebidos por entranhas masculinas e eliminados pelas fezes, como numa versão alternativa do que Freud chamava de teorias sexuais das crianças[2]. Trata-se, portanto, da encenação caricatural e alucinatória de um universo cultural específico, mas que é revelado na singularidade intrínseca da sua capacidade de fantasiar, exposto como forma de sentir, ver, agir e, principalmente, criar.

Em O homossexual…, o ator-travesti se reveste de elementos de uma contracultura LGBT e projeta um melodrama insano e cômico, que condensa todo um mundo de referências sob a forma de dramaturgia, encenando uma “existencialidade trans”. Nesse sentido, percebo que a montagem de Fabiano de Freitas resvala do questionamento político (sem evidentemente negá-lo) e atinge um nível ideal, não tanto no sentido de perfeito, e sim no de imaginativo e vivencial. A disputa e, em seguida, a aliança entre Senhora Simpson e Madame Garbo para conquistar e cuidar da jovem Irina, planejando uma viagem de fuga tresloucada para a China, torna-se o microcosmo em que, a despeito das trevas da marginalidade, as “rainhas-reis” da Sibéria dão as cartas. As personagens Simpson e Garbo, interpretadas respectivamente por Renato Carrera e Leonardo Corajo, se apresentam em cores e gestos intensificados, apresentando-nos uma quase fábula que, apesar de se passar nas estepes frias da Sibéria, se desenrola com tanto mais ímpeto quanto o desejo se torna mais soberano. É nessa perspectiva que falo de empoderamento cênico, pois acredito que, por entre as grades do enjaulamento político, permanece na encenação da cia. Teatro de Extremos o desejo de integrar o espectador ao drama trans, ao desejo trans, ao amor trans. E consequentemente, no seu limite, ao drama, ao desejo, ao amor.

Enfim, nos diversos tableaux conformados pela luz de Renato Machado, a dramaturgia afirma personagens fortes e, acima de tudo, presenças fortes, que descortinam a máquina-corpo que é o ator-travesti, bem como o seu fantástico universo existencial e criativo. Nesse universo, a metamorfose parece ser o princípio fundamental, encarnado nos corpos masculinos do elenco, travestidos pelos figurinos extravagantes (de Antônio Guedes) e pelo gestual afetado e melodramático. O caráter delirante, de fábula grotesca, de O homossexual… se apoia na capacidade metamórfica do personagem ficcional e do próprio ator em cena, que, amalgamados, amplificam a existência e o imaginário do ator-travesti.

O contínuo das montagens de A geladeira e de O homossexual… parece se dar sob esse princípio da metamorfose. O monólogo de Quillardet o internaliza predominantemente como narrativa (apesar da notável concepção corporal de Marcio Vitto, de roupas casuais masculinas, barba e maquiagem), enquanto a fábula nas estepes geladas de Freitas o faz como melodrama cômico encarnado no corpo dos atores. Entretanto, é importante dizer que o aspecto metamórfico, cerne da visão de mundo do ator-travesti que perpassa os espetáculos, não se resolve como realidade ficcional coesa. Ao contrário, é levando o princípio de transformação ao seu limite que as peças atingem um segundo nível de expressividade para o espectador, fato esse que motiva uma última digressão.

Se a narrativa trans de A geladeira não se resolve, rondando este último portal que ameaça e atrai L. para o limite da encenação – a geladeira presenteada por sua mãe –, em O Homossexual…, é a personagem de Irina que opera uma fratura no tecido ficcional da peça. É inclusive por meio dela que o caráter político da encenação (que até agora vinha relegando a segundo plano) retorna de maneira súbita no espetáculo. Trata-se de uma interpelação urdida pela montagem de Fabiano de Freitas, que fura a teia de ilusão que vinha sendo construída, lançando um dedo em riste ao público e falando da “dificuldade de se expressar”.

Note-se que Irina (interpretada pelo ator Mauricio Lima), objeto de desejo para o qual converge o mundo passional da peça, é o ator-trans por excelência, agente cujos motivos insondáveis desafiam as convenções e as tentativas de domínio de suas duas amantes-mães, bem como sua própria integridade física. Elaboração mais extrema do ator-travesti, a jovem trans Irina cai e se machuca sem motivo, entrega-se à vida sexual com toda sorte de pessoas, apresentando-se ao longo da história de forma mais e mais cômico-grotesca (defecando, despindo-se, cortando-se, inserindo coisas em si mesma). Como se testasse o amor que lhe dedicam Senhora Simpson e Madame Garbo, ela vai revelando aos poucos a precariedade de sua condição metamórfica. Questionada sobre a causa que motivou sua operação de mudança de sexo, a jovem apenas diz “Porque sim!”, como se blindasse uma tentativa de solução para o princípio condutor do ator-travesti. Nessa perspectiva, ser travesti, ou melhor, estar no espectro insondável do trans, num eterno estágio de transição entre os extremos identitários e de gênero, não é algo cuja causa possa ser inquirida, é algo que se é.

No ápice de sua trajetória corporal, Irina se encontra coberta de sangue, e as suas guardiãs suspeitam que tenha mordido a própria língua, ou inserido um rato no próprio ânus, atos totalmente concebíveis dentro do ethos anárquico da peça. Contudo, a essa altura, vemos que na cena o corpo de Irina é dissolvido ao corpo nu de Mauricio Lima, mostrando que o nível de atrocidade da peça aumenta e quase desfaz a fábula de cores fortes que vinha sendo narrada até então. Nesse momento, um dos mais notáveis do espetáculo, um procedimento análogo de desconstrução da ilusão faz com que Senhora Simpson ceda lugar a Renato Carrera, ou ainda ao ator-travesti, que vocifera para o público três vezes, em direções opostas da arena do SESC: “Não é a língua, é o cu!”. A contundência dessa estratégia demole de um só fôlego a estrutura melodramática da fábula, e aponta que o problema de Irina não é a fala, não é ter mordido a língua. O problema, como sempre, é mais embaixo: ser ator-travesti é mais do que poder falar, é expressar o cu, é dizer sempre mais e mais fundo.

Nessa perspectiva, o grito desse complexo Renato Carrera/Senhora Simpson/ator-travesti assume um inaudito teor político, que se imiscui à estética e à mitologia próprias ao texto de Copi. Dessa forma, vejo ao fim que quanto mais plenamente representado no palco o ser-trans – um mundo em que o corpo e o cu ganham dimensão fabular e cênica, em toda a sua potência performática, ficcional e teatral –, tanto mais forte será o desafio político que os espetáculos da Ocupação Copi dirigirão a nós. Apesar de ter tentado ao longo de todo este texto separar a fábula trans do aspecto imediatamente político, constato então que a afirmação dessa mesma fábula é em última instância um grito para o hoje. É a mensagem numa garrafa jogada por Copi em nossa direção, conforme afirma Fabiano de Freitas no programa da peça. A partir de uma fantasia exuberante e em direção à história, Copi nos ensina: não é a língua, é o cu[3].

 

Recomendações de leitura:

COPI [Raul Damonte Botana]. Eva Perón / Loretta Strong / A geladeira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

_____. O uruguaio. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

FREUD, Sigmund. “Associações de uma criança de quatro anos de idade”; “Duas mentiras contadas por crianças”; “Lembranças de infância e lembranças encobridoras [4º capítulo de “Psicopatologia da vida cotidiana”]”; “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”; “Romances familiares”. In: _____. Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

 

Renan Ji: Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Colaborador regular da Revista Questão de Crítica e membro das comissões julgadoras dos Prêmios Questão de Crítica e Yan Michalski.

 

Notas:

[1] Além das montagens cariocas, o Coletivo Angu de Teatro, de Pernambuco, mantém projeto de encenar O homossexual…, com consultoria de dramaturgia e texto traduzido de Renata Pimentel, pesquisadora pioneira da obra de Copi no Brasil. No campo da ficção, a editora Rocco lançou recentemente O uruguaio, volume que reúne duas novelas de Copi – “O uruguaio” e “Um estrangeiro argentino” – com tradução de Carlito Azevedo. Já na dramaturgia, a editora 7Letras publicou em 2007 três textos teatrais de Copi, Eva Perón, Loretta Strong e A geladeira, traduzidos respectivamente por Giovanna Soar, Ângela Leite Lopes e Maria Clara Ferrer.

[2] As colocações de Sigmund Freud acerca desse conceito são tão esparsas em sua obra quanto os momentos em que tece colocações acerca da sexualidade infantil. Dentre vários os textos que tratam da questão, destaco alguns nas recomendações de leitura.

[3] Nessa mesma edição da Questão de crítica, o texto de Caio Riscado sobre O homossexual, ou a dificuldade de se expressar parece prolongar a minha conclusão, levando a leitura política do espetáculo a outras e interessantes direções.

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