Era vidro e se quebrou ou um comentário sobre a peça

Crítica da peça O Abajur Lilás ou uma Medeia perdida na Augusta?

23 de fevereiro de 2013 Críticas
Elenco: Cácia Goulart, Inês Aranha, Edmilson Cordeiro, Joaquim Goulart e Bia Toledo. Foto: Divulgação.

Joaquim Goulart poderia ter escolhido mais um Plínio Marcos para levar à cena. Ele e seu Núcleo Caixa Preta também poderiam ter recapitulado a Medeia de Riaza, anos depois do fechamento do Teatro Augusta*. Ou, numa terceira via, poderiam ter empreendido levar ambas as peças, nalgum lugar entre a Boca do Lixo paulista e a Espanha pós-Revolução de Luis Riaza.

Mas, com a escrita de seu dramaturgo, Vadim Nikitin, O Abajur Lilás ou uma Medeia perdida na Augusta? recorre ao cruzamento dessas obras sobre o asfalto gasto de uma Rua Augusta (Rua Angústia?, como pergunta a certa altura o Ator ao seu Analista), para gerar uma quarta obra. São três as tramas a trafegar pelo fluxo intenso da rua paulistana: as duas obras citadas e cenas de uma sessão psicanalítica, que – segundo o diretor e ator Joaquim Goulart – têm carácter biográfico, e trazem para a cena questões inquietantes, latejantes a esse artista, também ex-proprietário do Teatro Augusta, casa que abrigou realizações teatrais frutos da parceria com sua irmã, a atriz Cácia Goulart. Essas escolhas fazem do espetáculo um exercício de espelhamento entre as duas peças atravessado por cenas da sessão psicanalítica.

De um lado, Giro, cafetão que se gaba do brilho de um passado imaginário; seu avesso, duplo, o espectro de uma Medeia derrotada pelo amor-desamor de Creonte. Ambos, duas faces de uma mesma moeda.

Assim como Creonte, uma espécie de sombra de Celinha, a puta transgressora do Mocó pútrido da Rua Augusta. As traições de ambos os personagens costuradas pelo dramaturgo, que alinhavou seus contornos, cerziu retalhos para criar a criatura dupla , a personagem sem tempo, resignada à traição de sua casa. A articulação dos duplos, Riazza e Marcos entrelaçados pela coleira trágica de seus cães-personagens, pode assombrar num primeiro momento ao espectador desavisado. Um espetáculo para iniciados, ou avisados.

Sofisticados esquadrinhamentos, planos ambiciosos de um dramaturgo (Vadim Nikitin) fazem brotar da lama-palavra dos personagens de um bordel barato, dos diálogos cortantes entre cafetão, putas e leão de chácara, uma horda maior de condenados a mútua execração; e também seu avesso de frontes coroadas, mas não menos miseráveis: Medeia, Creonte, Ama e Princesa.

A transição de um personagem para seu duplo é feita por cada ator do elenco sem uso de artifícios ou excessivo apoio em objetos e adereços de cena. Apenas a mudança de registro é explorada como indicativo da mudança, que se dá em cena aberta, e sem deixar margens para a confusão do espectador. Os atores desfilam seus personagens que ora resvalam para a sarjeta de Plínio Marcos, ora se avolumam de soberba para a tragédia de Medeia com a mesma e ajustada desenvoltura.

Os diálogos ultrajantes entre essa pequena população deixa entrever a obra de um autor que não poupou tintas e destruiu molduras para mostrar um Brasil intestino, esgoto das relações humanas e de trabalho, cujos veneno e antídoto são os pequenos poderes e as tentativas frustradas de micro revoluções. O Brasil desarticulado de Plínio Marcos, onde puta e patrão, carrasco e vítima se confundem porque chafurdam juntos, apesar de separados por um balcão de negócios ilícitos, se retroalimentam, dia a dia num comércio de ódios. O olhar absorto de suas personagens diante da miséria física, política, espiritual. A impotência diante da própria e da miséria alheia, concebida em relações que gastam, deterioram cada esforço individual por emancipação. Para Plínio Marcos, e ouso dizer ser esse um dos autores mais vigorosos de nosso Teatro Político, o esforço individual é a sabotagem do herói trágico. Em seu “Abajur Lilás”, base e chão de toda essa montagem do Núcleo Caixa Preta, a heroína Célia sucumbe e morre em sua rebelião natimorta desde a raiz, porque solitária.

Nos meandros entre a tragédia ática (apesar de aqui, ser inspirado na versão do espanhol Luis Riaza, Medeia es um bom rapaz) e a brasileira, o Teatro – citado por vezes na aparição de uma cortina vermelha de veludo gasta, objeto de cena que passa de personagem em personagem ao longo das quase duas horas de espetáculo.

Teatro como o lugar escolhido para o cruzamento da Augusta com toda a ficção de Nikitin, cuja ribalta repousa “no fundo do Mar” – no que me pareceu uma menção ao Teatro como sedimentoe vestígio submerso de toda Civilização.

Na terceira trama, a sessão de psicanálise, a pergunta do Ator ao Analista: “quer dizer que o Teatro é um grande Bordel?”. Penso que para Plínio Marcos a resposta seria: “o Brasil é um grande Bordel”. Ao que, o Analista responde: ‘o mundo é um grande Bordel”.

Como os estilhaços do abajur quebrado pela heroína, última e única fonte de luz às noites das três prostitutas, a dramaturgia cortante e despedaçada desse espetáculo.

Para o público, a visão de uma Rua Augusta como palco para o acontecimento litúrgico de um teatro contemporâneo, abrangente o bastante para abarcar em si as perguntas todas dessas grandes obras do século XX, e ser, por si, uma obra desse XXI.

* Em 17 de junho de 1999 Joaquim Goulart inaugura o Teatro Augusta com o espetáculo Medéia é um bom rapaz do autor espanhol Luiz Riaza, dirigido por Marco Antonio Braz. Em 2001/02/03 dirigiu e produziu Quando as máquinas param e Navalha na carne,de Plínio Marcos.

Natália Nolli Sasso é jornalista e técnica de Artes Cênicas do Sesc São Paulo.

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