Mauser de Garagem. Les Commediens Tropicales e o teatro de Heiner Müller

Crítica da peça Mauser de Garagem, da companhia Les Commediens Tropicales

25 de abril de 2016 Críticas

Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF  

Resumo: O artigo discute o espetáculo Mauser de Garagem, apresentado pela Companhia Les Commediens Tropicales no Galpão do Folias, em São Paulo. O texto situa a encenação da peça de Heiner Müller no âmbito da trajetória da companhia e do teatro de grupo de São Paulo, retomando a importância do teatro épico para os grupos de São Paulo, assim como a crítica apresentada por Müller aos pressupostos do teatro brechtiano. Com base nesses elementos, o artigo discute a encenação proposta pelos Commediens Tropicales.

Palavras-chave: Heiner Müller; teatro épico; teatro de grupo de São Paulo.

Abstract: The article discusses Mauser de Garagem, presented by Les Commediens Tropicales at Galpão do Folias in São Paulo. The text situates the staging of Heiner Müller’s play in the realm of the recent history of this and othes theater groups based in São Paulo. It also resumes the importance of the epic theater for groups of São Paulo, as well as Müller’s critical approach to Brechtian theater. The article finally discusses the staging proposed by Les Commediens Tropicales.

Key-words: Heiner Müller; Epic theater; theater groups in São Paulo

 

Uma ousada versão da peça Mauser de Heiner Müller, com direito a quarteto musical, um palco forrado de cacos de vidro e a projeção contínua de cenas de destruição, concluiu em janeiro de 2016, no Galpão do Folias em São Paulo, a retrospectiva de dez anos de atividades da companhia Les Commediens Tropicales. Passar o repertório em vista poderia ser uma mera autocelebração. Não é, porém, o caso desse grupo de teatro e de diversos outros que tiveram condições financeiras e artísticas de propor uma semelhante empreitada. Reencenar peças anteriores, sobretudo num contexto favorável à articulação interna de trabalhos surgidos em ocasiões diversas, é um meio de refletir a respeito da experiência acumulada. A estratégia vai, contudo, muito além da reorganização de elementos do passado e incide diretamente no trabalho presente e futuro dos grupos. Bem distante do clichê de que cada encenação é única e, portanto, sempre traz algo novo, uma retrospectiva como essa oferecida pelos Commediens Tropicales permite testar os espetáculos em novos espaços, repensar escolhas, e, não menos importante, colocar-se à prova diante de um público muitas vezes distinto daquele das encenações anteriores.

Num contexto mais amplo, a retrospectiva confirma o fôlego de diversos grupos que surgiram na cidade nos últimos vinte anos sob condições de produção cultural bastante singulares. O movimento “Arte contra Barbárie”, do final dos anos 1990, que resultou na aprovação da lei municipal de fomento ao teatro em 2002, criou condições para o desenvolvimento e fortalecimento do trabalho teatral de um número impressionante de coletivos. O programa de fomento ao teatro forneceu a inúmeros grupos uma relativa independência das necessidades do mercado cultural para pesquisar o que ainda é possível fazer como teatro. Consequentemente permitiu-se uma ênfase maior nos processos coletivos de investigação e ensaio, o que evidencia que a atividade teatral pode ser algo distinto da oferta de produtos de entretimento noturno a um público pagante ocasional. Ainda que se possa discutir a viabilidade dessa forma de organização cultural pautada por editais, sobretudo com a competição crescente entre os grupos por recursos públicos, cabe assinalar que algo novo ocorreu na vida cultural paulistana, com repercussões ainda notáveis. Nas palavras de um interlocutor do movimento, houve uma conversão de “consciência artística” em “protagonismo político” (ARANTES, 2011, p. 201).

A politização inerente ao movimento não se reduz, assim, à incorporação pelos espetáculos de temas ou questões de teor político, mas numa forma peculiar de produção artística. A apropriação de recursos públicos caminha ao lado da relativização das figuras emblemáticas do dramaturgo ou do encenador, cedendo espaço à auto-organização coletiva dos participantes. Mesmo que se possa duvidar da possibilidade de processos inteiramente desierarquizados, que prescindam de alguém que tome as decisões finais e realize os últimos cortes, não se pode negar que os grupos envolvidos em processos colaborativos estão bem distantes daquela época do teatro paulistano, sobretudo dos anos 1980, protagonizada pelos encenadores. No caso de muitos grupos, a auto-organização política e teatral também caminhou junto com a pesquisa de formas inovadoras de encenação e dramaturgia. Num contexto maior, o que se almejava, além da interrogação das fronteiras do teatro com outras artes, era colocar em pauta a relação do trabalho teatral com a cidade. Criar espaços e ocupar a cidade seriam formas de explicitar a dimensão pública do teatro.

Muitos desses elementos podem ser observados na trajetória da companhia Les Commediens Tropicales. Do teatro de rua e de intervenção pública, em (Ver [ ] Ter), estreada em 2011, a experimentações com vídeo e música em diversos espetáculos, o grupo tem-se pautado pela pesquisa constante e pela experimentação. De modo muito sintomático, a reflexão teatral sobre a produção cultural paulistana deu ensejo a um espetáculo bastante inusitado, o Laboratório Permanente de Plágio, de 2013 e 2014, em que o grupo reencenava peças de outros grupos da cidade (Corra como um coelho, da Cia dos Outros; Petróleo, de Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano; Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer, da Cia. São Jorge de Variedades). Em 2015, o grupo elegeu a obra de Heiner Müller como interlocutora e estreou no Centro Cultural São Paulo o espetáculo Guerra sem batalha, ou agora e por um tempo muito longo não haverá mais vencedores neste mundo apenas vencidos. O título reúne a autobiografia de Müller a uma de suas frases preferidas, retirada do Material Fatzer de Brecht, a qual sempre foi interpretada por ele como uma profecia da história das esquerdas no século XX. Mauser de Garagem, apresentado em janeiro de 2016 no Galpão do Folias, é uma parte destacada do espetáculo maior Guerra sem batalha.

Trabalhar com textos de Müller é uma decisão que também pode ser recolocada no contexto do teatro de grupo paulistano. Um dos capítulos centrais dessa história é o diálogo com o teatro épico de Bertolt Brecht, o qual se tornou, além de emblema da politização artística, um objeto de trabalho e aprendizado para muitos grupos. É digno de nota os grupos não se restringiram ao desafio de encenar peças de Brecht, incorporando-as a seu repertório, o que já é algo considerável, mas também de aprender com o teatro épico formas de encenação capazes de investigar e expor os condicionantes históricos da situação social, política e artística brasileira mais recente. O trabalho da Companhia do Latão talvez seja o mais representativo de uma ortodoxia brechtiana paulistana, desdobrando-se em encenações de peças de Brecht (A Santa Joana dos Matadouros), na incorporação de peças de Brecht em trabalhos próprios (a presença de Senhor Puntila e seu servo Matti em O Patrão Cordial) e na exploração de técnicas épicas de encenação no sentido mais amplo (A Comédia do Trabalho, A Ópera dos Vivos, entre outras). Se Brecht foi um vetor para parte do movimento, diversos grupos também buscaram outras referências para o seu trabalho. O diálogo com Müller, o qual já pressupõe uma relação com Brecht, deu ensejo a trabalhos de peso do teatro de grupo paulistano, como, por exemplo, Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer, da Cia. São Jorge de Variedades .

Müller não é um autor fácil de encenar. Os textos são compactos e herméticos, repletos de citações cifradas, montagens literárias e referências ao contexto histórico do Leste Europeu. Por outro lado, ele também deixou uma quantidade copiosa de registros de conversas e entrevistas em que discorre longamente sobre a situação política e teatral europeia do período entre a Revolução Russa e a queda do Muro de Berlim. Ele não se dispunha a se sentar para escrever teoria, mas o recurso às entrevistas, ele mesmo dizia, prestava-se bem a considerações teóricas. Um traço comum às encenações de companhias como a São Jorge e os Commediens é o recurso a esses textos de reflexão explícita e contextualizada. Essa escolha pode ser interpretada como um sintoma da dificuldade em encenar as peças. Diante do hermetismo das peças, recorre-se às entrevistas e às meditações políticas do autor com o intuito de estabelecer alguma mediação com seu teatro e assim atravessar a distância histórica e geográfica entre o texto dramático e a situação política e artística de quem o encena. Em Gerra sem batalha, os Commediens encenam Mauser recorrendo às entrevistas que formam a autobiografia do autor. É justamente nelas que Müller explicita a importância da profecia de Fatzer diante da derrota da revolução alemã e do autoritarismo crescente do partido comunista soviético. Mauser de Garagem incorpora essas referências de maneira mais reduzida. Elas, contudo, estão lá, seja na contextualização da escrita da peça, seja na citação de suas indicações de encenação.

A essa dificuldade, própria ao texto, soma-se outra, que toca diretamente nas circunstâncias locais de encenação. Ao contrário da confiança de Brecht (pelo menos em alguns períodos de sua produção) nos vínculos estreitos entre o teatro épico e a prática política, o teatro de Müller é um balde de água fria em muitas pretensões do teatro pedagógico.[1] No contexto do teatro de grupo paulistano, em muitos casos marcado pela politização programática orientada pelo teatro épico, Müller pode ser um meio de tornar a reflexão sobre teatro e política ainda mais atenta às dissonâncias e aos desacertos nesses âmbitos. Dizer que a politização do teatro de grupo não está somente sob o signo do teatro épico não significa, porém, necessariamente apontar uma ruptura entre épicos e pós-dramáticos.[2] Encenar Mauser é uma escolha por pensar criticamente o teatro épico a partir da atualidade de seus pressupostos, pois o que Müller faz é justamente apresentar o processo revolucionário revertido em seu contrário. Dito de maneira ainda mais direta, Müller coloca em cena a tragédia da revolução. Como os Commediens buscam conexões com as entrevistas e com as reflexões de Müller, introduzindo materiais externos à peça, seria possível indagar se o conflito entre ele e Brecht não poderia ser colocado explicitamente em pauta. Antes, porém, de discutir os acertos e problemas dessa encenação, cabe apontar como Mauser concretiza a polêmica de Müller com o teatro épico.

Mauser, assim como a parte mais significativa do teatro de Müller, pode ser entendida como um intenso questionamento da aspiração maior do teatro épico brechtiano a um teatro não trágico. O projeto do teatro épico, ou ainda, de uma dramaturgia não-aristotélica, para além da crítica à catarse, desenvolvida por Brecht à luz da empatia entre atores e espectadores, se opunha ao trágico por sustentar que o destino humano não é natural e necessário, nem produto de forças indiscerníveis, mas o resultado de ações e decisões de homens envolvidos no processo social. Com base em seus estudos de Marx, Brecht toma o partido da liquidação moderna do trágico em virtude do conhecimento das causas – sempre históricas, nunca divinas ou naturais – da opressão social. Com esse conhecimento, o conflito moderno entre a autonomia individual e o processo histórico objetivo não poderia ser caracterizado como trágico, pois ele traria consigo o discernimento dos elementos capazes de colocar os homens como sujeitos da própria libertação. Historicizar a tragédia termina por reconhecer seu fim. Como se vê, a oposição ao trágico está na raiz da desnaturalização brechtiana e dos diversos procedimentos de encenação responsáveis pelo efeito de estranhamento.

Durante os 1960, quando as esperanças de uma sociedade emancipada tinham perdido terreno no Leste Europeu para o dito “socialismo real”, Müller retorna aos experimentos brechtianos para um acerto de contas com o teatro pedagógico. Crítico severo das parábolas brechtianas escritas a partir da emigração, em 1933, ele considerava as peças de aprendizagem (Lehrstücke) o aspecto mais avançado da produção de Brecht e as elege como o terreno mais propício ao confronto com a tradição do teatro dialético. O embate produz uma guinada em sua produção e resulta em trabalhos marcados por uma dialética entre a pretensão ao não trágico e sua subversão por elementos de ordem trágica.

O interesse de Müller pela peça de aprendizagem era motivado por sua estrutura clara e argumentativa, que realçava a contradição de uma situação social como base para o aprendizado coletivo. O gênero foi desenvolvido por Brecht no fim dos anos 1920 em experimentos voltados para os participantes da encenação. A peça de aprendizagem não era uma forma voltada, a princípio, para o público, mas para o esclarecimento dos próprios atuantes a respeito das situações em que tomavam parte. Com isso, Brecht pretendia transformar a prática artística, vinculando-a a um movimento social de luta de classes, em que o esclarecimento a respeito das condições sociais seria um caminho para a superação dessas mesmas condições. Sua constituição como meio de produção e transmissão de ensinamentos dependia então da possibilidade real de superação das condições de dominação vigentes na sociedade capitalista, bem como da possibilidade das instituições artísticas serem colocadas a serviço deste movimento. Na década de 1920, a estreita conexão do teatro e dos conjuntos musicais com um público não comercial oriundo dos sindicatos e das escolas em algumas cidades alemãs satisfazia as exigentes condições para o sucesso deste teatro pedagógico. De modo geral, o experimento implicava o aproveitamento das conquistas recentes da técnica para a transformação do aparelho artístico. Nesse sentido, a peça de aprendizagem era uma realização técnica bastante sofisticada, que procurava apropriar-se inclusive de novas formas de produção e recepção colocadas em circulação pelo rádio e pelo cinema. Técnicas de montagem desenvolvidas por esses novos meios, por exemplo, transformavam-se em instrumentos de combate ao ilusionismo teatral. O efetivo esclarecimento dos envolvidos na produção poderia ser então interpretado como sucesso da reorientação do aparelho num sentido socialmente progressivo, indicando a transformação recíproca da produção e da recepção artísticas.[3]

Müller escreveu Mauser como uma variação sobre a principal peça de aprendizagem de Brecht, A Medida, retomando sua estrutura dramática de encenação de um processo judicial revolucionário. Na peça de Brecht, quatro agitadores, incumbidos de realizar militância política na China, ao retornar da missão apresentam ao partido, representado por um coro, os motivos pelos quais decidiram aplicar a medida do assassinato a um jovem companheiro que, segundo eles, por imaturidade política (o compromisso com a revolução fundado na compaixão pelo sofrimento alheio), colocava em risco a existência do coletivo. Com o intuito de decidir se a medida tomada fora correta, realiza-se uma peça dentro da peça: os quatro agitadores encenam perante o coro o processo por meio do qual eles se decidiram pela morte do companheiro. Transformando-se em atores dos próprios papéis e do papel do companheiro assassinado, discutem e analisam o comportamento do grupo e a medida tomada. Com isso, institui-se uma instância coletiva de consciência e juízo, representativa da relação dialética entre indivíduo e coletivo, capaz de distinguir entre certo e errado, entre verdadeiro e falso, diante do imperativo da revolução. Numa estrutura formal – a peça dentro da peça – que supera a distinção essencial entre ator e espectador, criam-se condições para um exercício coletivo em que os participantes têm a oportunidade de investigar os pressupostos de sua integração à coletividade e avaliar a correção da ação realizada.

A crítica de Müller à forma da peça de aprendizagem se funda no questionamento da existência de condições sociais para a realização de um exercício coletivo em que se decide pela verdade ou pelo sentido da ação. Mauser, escrita da sequência de Filoctetes (1964) e O Horácio (1968), faz parte de um ciclo que, em suas palavras, “pressupõe / critica a teoria e a prática da peça de aprendizagem de Brecht” (MÜLLER, 1998, p. 259). Para tanto, ele retoma o tema do tribunal de guerra, extraído do romance O Dom Silencioso, de Scholokov, e situa os acontecimentos durante a guerra civil soviética dos anos 1920. Ao escrever a peça, Müller opõe à ideia do drama histórico a extrema redução do processo teatral. Em uma entrevista, ele ressalta que a representação realista da guerra civil russa dos anos 1920 tornaria a peça obscena; daí a necessidade da abstração do processo, de modo que o problema, e não os fatos particulares, ficassem em evidência. Nesse sentido, ao recusar a representação dramática dos acontecimentos em favor do arranjo mínimo, favorável à avaliação coletiva de uma situação extrema, Mauser mantém-se fiel à intenção das peças de aprendizagem. Daí o caráter exemplar assinalado por Müller em nota à peça: a cidade de Witebsk “localiza-se em todos os lugares onde uma revolução foi é será obrigada a matar seus inimigos” (MÜLLER, 1998, p. 260).

Ao discutir a necessidade de matar, Mauser retoma A Medida, mas distancia-se de seu modelo, ao abrir mão do artifício da peça dentro da peça, do qual dependia a função pedagógica da peça de Brecht. Mais enxuta, Mauser restringe-se à instância do tribunal, desempenhada por um coro, e a dois carrascos, A e B, que se sucedem na missão de eliminar os inimigos da revolução. O tema da identidade entre função e funcionário, privilegiado por Müller em textos posteriores como A Estrada de Wolokolamsk para acentuar a conversão do socialismo em burocracia, aparece em Mauser por meio do imperativo de matar com a mão da revolução. A figura do carrasco certamente antecipa aquela do funcionário do Partido, mas também poderia ser vista como uma derradeira aparição do Keuner de Brecht, daquele militante transformado em agente de um processo que se distancia de sua base popular. Desse modo, Mauser se ocupa das consequências de um movimento fundado exclusivamente na disciplina, o qual é observado da perspectiva do esgarçamento do vínculo entre função e funcionário. No momento em que o segundo carrasco (A) fracassa na missão de matar pela revolução e começa a matar por prazer, a peça traz à tona a cisão entre a sua mão e a mão da revolução. Sem a justificativa da ação coletiva e reduzido à sua dimensão individual, o ato de matar se torna um delírio sanguinário. Como um resquício de individualidade não mediada pela revolução, o carrasco passa a ocupar a posição de inimigo e, por esse motivo, deve concordar com a própria morte em nome da continuidade da revolução.

Pela alternância de vozes entre o coro e os carrascos, Mauser conjuga diversas temporalidades de modo a expor a insustentabilidade da incumbência revolucionária. O núcleo do texto ocupa-se da trajetória de A, desde seu início como aprendiz da revolução até a conversão em inimigo. Ao contrário do que poderia sugerir, a escolha pela exposição de uma biografia individual não confere densidade ao personagem perante o processo coletivo. Ela exerce a função de realçar o paradoxo da condição de indivíduo: ele só é destacado para que se explicite a impossibilidade de um posicionamento autônomo face ao processo histórico automatizado. Ao contrário do que ocorria em Brecht, o coro de Mauser não é capaz de legitimar a ação realizada em nome da revolução. Transparece aí uma diferença essencial em relação à Medida: a ausência de uma instância de consciência e juízo, capaz de decidir pelo sentido da ação praticada. O partido não liberta o carrasco de sua missão, mas também não é capaz de lhe responder a pergunta pelo sentido histórico do sacrifício humano pela revolução. Em vista disso, o fracasso do carrasco não se explica pelo sentimento de compaixão pela vítima, como em A Medida, mas pela perda de sentido do processo revolucionário. Numa situação em que se questiona a verdade da ação revolucionária, o sujeito se cinde em instrumento mecânico (a pistola Mauser do título) de uma ordenação superior e lugar da diferença da consciência subjetiva que reclama a humanidade que o coletivo lhe nega. Neste contexto, Mauser contesta outro ponto de sustentação da peça de aprendizagem: o acordo da vítima com a própria morte exigida pelo partido.

A: Eu não aceito a minha morte. Minha vida pertence a mim.

Coro: a revolução precisa do seu sim à sua morte (…) o pão de cada dia da revolução é a morte de seus inimigos.  (MÜLLER, 1998, p. 257-8)

A ausência de acordo com a própria morte pode ser entendida como a ruptura entre o sujeito isolado da ação histórica e o processo histórico automatizado. Com isso, Müller esvazia a peça de aprendizagem de sua função de esclarecimento a respeito do sentido da ação correta. Ela é antes a exposição de uma aporia, a qual reflete a impossibilidade do conhecimento seguro a respeito da revolução. Surge então em Mauser uma figura inexistente em A Medida: a dúvida, que aparece como impossibilidade de constituição e transmissão da verdade a respeito da ação revolucionária, como transformação da revolução em exercício de violência como sustentáculo de uma utopia abstrata, e, por fim, como decreto de morte para o sujeito que duvida: “Contra a dúvida a respeito da revolução / não há outro meio que não a morte daquele que duvida” (MÜLLER, 1998, p. 249).

Se, na peça de aprendizagem brechtiana, a revolução fornecia o lastro histórico à apresentação não trágica do curso da história, Mauser encenaria justamente o trágico da revolução, ou seja, a reversão da emancipação social em seu contrário, em uma máquina de morte. Antes, contudo, de concluir pela tragédia da revolução, cabe considerar que Müller não trabalha com a integração consumada do indivíduo à máquina de matar, mas com os diversos graus de integração e cisão que regulam a relação entre coro e indivíduo. Tamanho questionamento da relação entre indivíduo e coletividade é possível apenas da perspectiva da cisão entre ambos. É justamente dessa cisão que resulta o potencial crítico da peça perante o processo revolucionário, pois é a partir dela que se expõe a fraqueza, e não a força, do coro. Uma vez que ele só integra o indivíduo por meio de sua supressão, seja física ou intelectual, a legitimidade da missão cobrada em nome da revolução se perde. O único ponto de coesão das diversas vozes é a suspeita conjunta em relação à possibilidade de ensinamento coletivo no bojo do processo revolucionário. Com isso, Müller questiona a peça de aprendizagem em seu esclarecimento a respeito do sentido da ação correta.

O fato de Mauser realizar uma crítica imanente da peça de aprendizagem por meio da reversão da revolução em seu contrário, conferindo ao destino individual um feitio trágico no bojo do mesmo processo histórico que o libertaria, é um argumento a favor do caráter trágico do teatro de Müller. O que, porém, impede que Mauser possa ser considerada como uma tragédia nesse sentido é a maneira pela qual a peça se configura enquanto dispositivo teatral. As indicações de cena, as quais devem ser entendidas como parte do texto, submetem a tendência do conflito à tragédia a uma instância de controle coletivo por meio da encenação. Se a instabilidade do uso das palavras e da posição do indivíduo perante a coletividade, bem como a ameaça de liquidação que paira sobre ele, podem remontar ao conflito trágico, a forma de apresentação remete à peça de aprendizagem, ao prever o controle social do processo. Em outras palavras, os aspectos trágicos da confrontação entre “A” e o Coro e da visão do processo histórico como destino automatizado são justapostos a uma organização do espetáculo teatral de natureza não-trágica, a qual se encontra submetido ao controle social.

A apresentação para o público é possível caso se possibilite ao público controlar a encenação pelo texto e o texto pela encenação (…); caso as reações do público sejam controladas pela assincronia entre texto e encenação, pela não-identidade de quem fala e de quem representa. Essa distribuição do texto é um esquema variável, forma e grau das variantes de uma decisão política que deve ser acertada de caso a caso (MÜLLER, 1998, p. 259).

Segundo essa indicação, Mauser não foi escrita para o teatro convencional, o teatro de repertório, mas, como uma peça de aprendizagem, para o exercício coletivo a respeito da organização, também coletiva, da morte.

Não é uma peça de repertório: o caso extremo, não objeto, mas exemplo em que se demostra o continuum da normalidade a ser rompido: a morte, cuja transfiguração na tragédia ou recalque na comédia constitui a base do teatro dos indivíduos, uma função da vida considerada como produção, um trabalho entre outros, organizado pelo coletivo e organizando o coletivo (MÜLLER, 1998, p. 259).

De acordo com a nota, a apresentação do esvaziamento do aprendizado coletivo é submetido ao exame coletivo, caracterizando a peça como uma contraposição singular de gêneros: ela investiga a atualidade de uma forma – a peça de aprendizagem por meio de traços de uma outra – a tragédia – negada por essa mesma forma. Notar tais tensões é necessário, antes de tudo, para evitar que a articulação entre coro e indivíduo seja vista apenas como a representação do automatismo da revolução, negligenciando o controle coletivo oferecido pela encenação. Mauser não dá um passo atrás em relação à crítica de Brecht à tragédia, mas busca evidenciar que os pressupostos de um teatro não-trágico podem ser questionados, sem que isso resulte necessariamente ao retorno a uma compreensão trágica da história.

Diante dessas considerações, a escolha da distribuição de papeis torna-se um elemento central para confrontar a tragédia da revolução com o controle social implicado na ideia da peça de aprendizagem. É também o que permitiria desenvolver as questões propostas por Müller em seu texto. Os Commmediens Tropicales não encenam Mauser como uma peça de aprendizagem, de modo a possibilitar “ao público controlar a encenação pelo texto e o texto pela encenação”, como sugeria Müller. Como os próprios textos do Brecht indicavam, essa seria uma estratégia mais condizente com a dinâmica dos ensaios do que com a apresentação de um espetáculo. É razoável, contudo, concluir que Mauser de Garagem traz ao público uma reflexão cênica interna ao grupo a respeito das questões suscitadas pelos textos de Müller. O caráter processual do aprendizado, conquistado ao longo do trabalho, é mantido e explicitado graças à decisão acertada dos Commediens de evitar a identificação entre atores e personagens. Não há um único ator designado para o papel de carrasco, mas um trânsito constante dos atores e das atrizes pelas figuras do carrasco e dos membros do coro. Cada um dos participantes é levado em algum momento a experimentar as falas do carrasco e do coro. É uma estratégia que não deixa de remeter à peça de aprendizagem brechtiana, em particular A Medida, peça em que cada um dos agitadores desempenha para o coro de controle o papel do jovem camarada.

Se essa se mostra uma escolha de encenação adequada à relação entre indivíduo e coletividade proposta por Mauser, o elenco não demostra o mesmo sucesso ao lidar com o texto seco e permeado de bordões de Müller, o qual é encenado em uma boa tradução de Eduardo Socha. As atrizes e os atores ora tentam, como no início da apresentação, uma postura fria e de pouco compromisso, de cigarro aceso e gestos displicentes, ora recorrem a formas mais dramáticas e expressivas, lançando o olhar aterrozido ou patético para si mesmos e para os demais enquanto o carrasco clama por sua humanidade. A crueza do texto, sempre rente à mecanização do homem, se perde ou se dilui em formas convencionais de atuação de um elenco que tem dificuldade em encontrar o tom adequado. Os momentos em que dançam com ares de revolta ao som do rock pesado ou então se expõem nus diante do tribunal também não ajudam. Esses problemas da atuação terminam por refletir um dos sentidos da “garagem” do título. Como artistas que ainda moram com os pais, o elenco, ansioso por chegar ao público, chocar ou simplesmente apresentar uma atuação forte e marcante, não escapa de uma certa impaciência adolescente. A mecanização do homem e da história colocada em cena por Müller passa longe dali.

Talvez pelo mesmo motivo, o grupo tenha mais sucesso nos aspectos que se distanciam dessa expressividade corriqueira e reforçam a materialidade dos meios de encenação. A fala mais bem colocada da peça é o bordão final repetido inúmeras vezes por uma engenhosa instalação de caixas de som e microfone. Submetido ao movimento pendular do microfone em constante desaceleração, a despersonalização do homem pela automatização do processo histórico é explicitada como uma construção mecânica que marca, com seu repouso, o ponto final da peça. A projeção constante ao fundo de vídeos com cenas da destruição de lavadoras, carros e até de um piano por máquinas pesadas também é bem sucedida em evidenciar a relação entre técnica e destruição que percorre a obra de Müller. O mesmo se pode dizer do palco forrado de cacos de vidro, que ameaça os atores com um ferimento físico a cada movimento em cena.

A colaboração com o Quarteto à Deriva é um ponto alto que merece um comentário à parte. Responsável pelo rock de garagem que recebe os espectadores, o quarteto realiza na parte final da encenação um longo improviso jazzístico. Em uma peça de estrutura circular e bordões repetitivos, um improviso musical que retarda ao máximo a conclusão se mostra altamente significativo. Enquanto o quarteto realiza a sua última performance, o espectador sem conhecimento prévio do texto de Müller poderia muito bem concluir que a peça propriamente dita já havia terminado. Não é, porém, o que ocorre. O improviso tem ali a função muito precisa de dilatar ao máximo o tempo dramático e assim construir um enquadramento singular à ultima cena, justamente aquela que oferece ao público a última fala mecanicamente reproduzida. Conta-se que Müller gostava muito de uma encenação de Hamletmaschine feita nos anos 1980 por Robert Wilson. O encenador só havia introduzido o texto quando os ensaios já estavam num estado bastante adiantado. Com isso, o texto, que já era uma montagem literária, se tornava ainda mais fragmentado e avesso ao desenvolvimento de uma ação dramática. Wilson o introduzia como blocos de material, e não como suportes de significação. Os rearranjos de falas e bordões repetitivos em Mauser antecipam esse teatro em fragmentos que Müller desenvolverá nas peças seguintes. O improviso do Quarteto à Deriva o torna cenicamente concreto e, ao retardar a ação, aponta para a crítica de Müller à teleologia implicada no drama e na concepção europeia de revolução. Lidar com fragmentos, montagens e repetições seria uma maneira de se colocar criticamente diante de um desenvolvimento histórico que se reverteu em seu contrário. Esse posicionamento poderia apontar para um concepção de teatro marcada pelo tratamento de seus materiais tradicionais como meros materiais brutos, sem significação prévia ou ressonâncias conceituais. Seria um teatro de imagens e instalações sonoras, não-dramático ou pós-dramático, destinado, antes de tudo, a estimular os sentidos do espectador. Não é o que ocorre no teatro de Müller, carregado de textos e ideias. A ênfase na materialidade da cena serve aqui a estranhamentos que buscam abrir caminho para uma experiência resistente à determinação prévia. A pergunta do carrasco por sua humanidade é uma busca por uma outra equação entre homem e máquina. No palco, ela se ressalta no confronto entre a materialidade cênica e o ator às voltas com um texto. A encenação dos Commediens evidencia que o sucesso em explorar essa materialidade não os exime da tarefa de encontrar uma forma de atuação adequada a ela.

Referências bibliográficas:

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SCHWARZ, Roberto. “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Sequências Brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

 

Luciano Gatti é doutor em filosofia pela UNICAMP e professor do departamento de filosofia da UNIFESP. É autor de Constelações: Crítica e Verdade em Benjamin e Adorno (Loyola, 2009) e A Peça de Aprendizagem. Heiner Müller e o Modelo Brechtiano (Edusp, 2015).

 

Notas:

[1] Uma boa discussão da atualidade dos pressupostos do teatro épico, feita à luz da retomada de Brecht pelo teatro paulistano dos anos 1990, pode ser encontrada no ensaio de Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Sequências Brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

[2] Essa questão foi bem apresentada pela dissertação de mestrado de Artur Kon, Da teatrocracia. Estética e política do teatro paulistano contemporâneo. FFLCH-USP, 2015. O autor sustenta a tese de que a concorrência pelo fomento entre os diversos grupos teria levado a uma crise da unidade alcançada durante o movimento que levou à lei de fomento. A divisão posterior entre engajados e pós-dramáticos não seria, contudo, uma caracterização correta da situação, mas apenas um resultado do esforço dos alinhados ao teatro épico em demarcar um campo oposto ocupado por “formalistas”, “esteticistas” ou “pós-dramáticos”. O mesmo trabalho ainda traz analises detalhadas e generosas de espetáculos dos Commediens Tropicales.

[3] Esses desenvolvimentos foram bem ressaltados por Walter Benjamin no ensaio “O autor como produtor”, in Obras Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1995.

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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