Dom Pedro II e as ruínas da História
Crítica da peça 2º D. Pedro 2º, espetáculo da Cia. Les Commediens Tropicales, grupo de São Paulo
No Teatro Municipal Procópio Ferreira, durante o XVIII Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente, o palco é todo coberto por uma lona de caminhão. Ao fundo, uma cortina branca. Nas laterais, formando quase um semicírculo, armários de arquivo de escritório. E ainda dois microfones. Um espaço indeterminado que remete a um escritório, um arquivo público ou um depósito. Este é o ambiente do 2º D. Pedro 2º, espetáculo da Cia. Les Commediens Tropicales, grupo de São Paulo/SP, que funde as linguagens da performance, do teatro e das novas mídias.
Como o próprio título indica este é um espetáculo que apresenta uma versão outra da história do Brasil, mais particularmente do Imperador D. Pedro II. Poder-se-ia dizer ser esta uma história politicamente incorreta. Sob o viés da paródia, o grupo reconta, em narrativa fragmentada e estilhaçada, passagens canônicas da vida do imperador brasileiro: do nascimento até o fim do Império. O caráter peculiar desta abordagem do personagem em questão é a desconstrução que o grupo empreende da história oficial. Eficaz nesse sentido é o recurso às diversas tecnologias multimídias na cena. Em vários momentos, a cortina branca é transformada em tela de projeção em que são exibidas imagens dos atores captadas ao vivo ou gravadas anteriormente; das gavetas dos armários de arquivos surgem televisores reproduzindo gravações dos atores, cenas filmadas em estúdio, que substituem momentaneamente o que acontece ao vivo no palco ou contracenam com os próprios atores em cena; também são usados diversas vezes microfones, e vozes em off substituem as vozes dos atores em certos momentos.
Essa multiplicidade de recursos tecnológicos possibilita uma fragmentação da narrativa e do foco de atenção do espectador. À medida que o espetáculo avança vão se intensificando o uso dessas tecnologias até o ponto em que elas passam a serem utilizadas simultaneamente, provocando um colapso tanto na escritura cênica quanto na percepção do público. O que se apreende é a instauração de discursos múltiplos sobre a história oficial que colocam em cheque a sua validade estática monolítica. Significativa é uma das cenas em que, tratando dos bastidores da promulgação da Lei Áurea, os atores sentam-se ao fundo, do lado direito do palco, e posicionando-se de forma neutra na cena, eles enunciam suas falas, enquanto no telão de fundo é reproduzida uma gravação da mesma cena, só que dessa vez muda e plena de gestualidade, ao contrário do que ocorre no palco. Paralelo a isso, um guitarrista que acompanha musicalmente o espetáculo começa a reger a cena que se passa sobre o tablado, como se em uma orquestra. E três televisores (dispostos nas gavetas dos arquivos) exibem ao mesmo tempo um videoclipe do rapper 50 Cents, um filme de ação com atores negros, e uma série televisiva com o ator Will Smith. Todos são referências da cultura norte-americana. Essas são vozes/imagens tecnológicas e digitais que refutam, contradizem, parodiam ou trazem outros ângulos de visão sobre o que é contado. Ao final do espetáculo, ao som furioso da guitarra, os atores destroem todo o cenário, sobretudo os armários de arquivos, e exigem que uma nova história seja escrita. O que resta então no palco são escombros. Possivelmente, as ruínas da História.
2º D. Pedro 2º parece retomar a imagem benjaminiana da história como um amontoado de ruínas, em contraponto ao discurso oficial que a congela, oferecendo uma falsa visão unívoca dos fatos. Sob o olhar do presente, eles apresentam uma história em escombros, sendo a ação cênica o próprio ato de destruição desta história. No fundo, ela é inapreensível em sua totalidade e só a partir dos seus cacos é possível compreender o presente e lançar novas luzes sobre o passado. E vice-versa.