O terno: Peter Brook e o teatro épico

Crítica da peça O terno, dirigida por Peter Brook

31 de agosto de 2015 Críticas

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: O artigo discute a encenação da O Terno, com texto de Can Themba e direção de Peter Brook, apresentada no Sesc Pinheiros de São Paulo em abril de 2015. Discute-se a retomada por Brook da concepção de teatro épico, proposta por Bertolt Brecht, e suas consequências para a elaboração de um espetáculo não-trágico.

Palavras-chave: Peter Brook; Bertolt Brecht; teatro épico.

Abstract: The article discusses The Suit, a theater play based on a short story by Can Themba and directed by Peter Brook, staged at Sesc Pinheiros in São Paulo in april 2015. It is discussed how Brook resumes Bertolt Brecht’s conception of epic theater and its consequences for an untragic show.

Keywords: Peter Brook; Bertolt Brecht; epic theater.

 

Por volta de 1968, Peter Brook dizia que qualquer espaço vazio poderia ser tomado como um palco. Um homem cruzando esse espaço enquanto outro o observa seria o suficiente para instaurar uma situação teatral. Assim começava “O espaço vazio”, o principal documento teórico do teatro de Brook (BROOK, 1996, p. 7). Em franca polêmica contra o amplo espectro do teatro de sucesso fácil de sua época, chamado por ele de “mortal” ou “mortífero”, ele confrontava o aparato costumeiro que ainda se entendia como uma aparelhagem sofisticada em concorrência com o cinema. Contra o espetáculo composto por cortinas vermelhas, sala escura e grandes refletores, Brook buscava apoio em mestres como Shakespeare e Bertolt Brecht para defender a eliminação de elementos supérfluos, de máquinas e efeitos cenográficos que sobrecarregam a encenação e desviam a atenção dos componentes básicos. O acento na simplicidade, contudo, não decorria de uma petição de princípio nem de purismo minimalista, muito menos de aversão à técnica, mas da convicção de que a função do teatro possa ser simplesmente abrir espaço e assim criar condições para que algo melhor apareça.

Quem assistiu às poucas apresentações de O terno no final de abril de 2015, no Sesc Pinheiros de São Paulo, teve a chance de reconhecer que, apesar dos anos que se passaram desde a concepção do texto teórico, Brook ainda continua pensando em como lidar com o espaço vazio. A produção internacional, que traz as marcas de sua colaboração com artistas do mundo inteiro e lhe confere um teor multicultural e cosmopolita, não servia à acumulação de materiais, mas à seleção de elementos mínimos, a serem explorados com o máximo de complexidade. Um grupo reduzido de atores e músicos trabalhando num espaço ocupado por poucos objetos (mesas, cadeiras, cabideiros): é o que bastou a Brook para apresentar a dimensão pública e histórica de um conflito aparentemente restrito à vida conjugal de dois personagens na África do Sul dos anos 1950. No mesmo passo, ele ainda conseguiu colocar à prova uma das grandes tradições do teatro do século XX, a saber, o teatro épico, de matriz brechtiana. Cabe-nos agora tentar desdobrar alguns desses elementos.

Brook encontrou o material de sua peça no conto homônimo, publicado em 1963, do escritor e jornalista sul-africano Can Themba, o qual já havia sido adaptado duas vezes para o teatro[1]. Primeiro pelo Market Theatre de Joanesbugo, em 1994, e depois pelo próprio Brook e por sua colaboradora Marie-Hélène Estienne, que apresentaram uma versão francesa, Le costume, em 1999, na sede do teatro de Brook em Paris, o Théâtre des Bouffes du Nord. A versão em inglês, motivada pela insatisfação com a anterior em francês, estreou somente em 2012, após um longo período de maturação e com muitas alterações no texto original. O conto de Themba apresentava uma trama relativamente simples, centrada na personagem de Philemon, o secretário zeloso e marido dedicado que flagra a mulher, Matilda, com o amante. Como punição por trai-lo, Philemon ordena a ela que o terno deixado pelo amante ao fugir somente com a roupa de baixo seja tratado dali por diante como um hóspede do casal, com direito inclusive a um lugar à mesa na hora das refeições. A encenação de Brook difere do conto de Themba por dar tanto peso à Matilda quanto a Philemon. Essa modificação, que instaura um certo equilíbrio no tratamento das personagens, permitiu uma série de considerações a respeito do conflito conjugal e de suas relações com a opressão do apartheid.

Uma das marcas da montagem de Brook é o recurso ao tempo passado para encenar os episódios da história do casal. Essa opção já aparece no modo de referir-se ao lugar onde se passam os acontecimentos, os quais são devidamente introduzidos por um narrador com conhecimento prévio do que será apresentado ao público. Tal estratégia retoma a perspectiva de Themba ao escrever em 1963 a respeito de Sophiatown, o subúrbio pobre e superpopuloso de Joanesburgo onde se desenrola a vida de Matilda e Philemon. Quando ele publica O terno, a região ali evocada já era algo do passado. Sophiatown foi até meados dos anos 1950 uma das poucas áreas da cidade que não estavam inteiramente sob controle governamental e também um dos poucos lugares da África do Sul em que os negros tinham direito à propriedade de imóveis. A região não era apenas um subúrbio multirracial, habitado por sul-africanos brancos e negros, além de imigrantes indianos e chineses. Em Sophiatown também se desenvolveu uma vida cultural particularmente rica, a qual se movimentava ao redor dos Shebbens, bares ilegais frequentados até tarde da noite por músicos, jornalistas e gangsters inspirados na cultura norte-americana. Os Shebbens eram lugares propícios tanto ao alcoolismo de trabalhadores mal pagos quanto ao fortalecimento de uma cultura musical influenciada pelo swing e pelo jazz. Política, cultura e criminalidade compartilhavam do mesmo espaço clandestino. Dentre seus frequentadores estavam também os jornalistas da Drum, uma revista popular entre leitores negros para a qual Themba começou a escrever em 1953. Além de ficção e artigos sobre jazz, cinema e esportes, ela publicava investigações sobre abusos perpetrados pelos fazendeiros locais e pela polícia contra a população negra, cobrindo os conflitos sociais com uma atenção inexistente na imprensa branca. O importante trabalho do fotógrafo Jürgen Schadeberg era um exemplo destacado desse perfil investigativo.[2] De modo geral, a Drum reunia os temas que constituiriam o material das narrativas de Themba.

Por volta dessa época, o crescimento populacional da região central de Joanesburgo começou a aproximar a cidade branca das fronteiras de subúrbios como Sophiatown. As tensões geradas pela instituição do apartheid em 1948 culminaram nos processos de remoção da população negra de Sophiatown entre 1955 e 1959. Durante esses quatro anos, mais de 65.000 pessoas foram retiradas de suas casas e transferidas para a região de Soweto. Os Shebees foram fechados, a população negra foi expulsa e a vida cultural e intelectual foi rapidamente dizimada. Ao evocar Sophiatown em O terno, Themba evoca uma região anterior à convulsão provocada pelos expurgos. Em um conto chamado “Requiem para Sophiatown”, ele ainda rememoraria a destruição das casas e a fundação de uma nova cidade para os brancos, chamada de “Triomf”. Somente com o fim do apartheid em 1994 o subúrbio teria de volta seu antigo nome.

Ao encenar O terno, Brook reflete a respeito desses acontecimentos ao situar seus personagens em uma Sophiatown já desaparecida. Esse viés histórico implica necessariamente escolhas de encenação muito específicas. Poderíamos dizer que Brook mimetiza tal perspectiva histórica ao conferir uma dimensão narrativa à peça e, para isso, faz uso de um conjunto de técnicas de distanciamento em diálogo com a concepção de teatro épico desenvolvida por Bertolt Brecht a partir dos anos 1920. Não seria exagero afirmar que o sucesso de suas conexões entre a dimensão privada da vida conjugal e a história de Sophiatown deve muito a tais técnicas. Se começarmos pela cenografia, notamos que os indícios da história coletiva no destino das personagens já se fazem notar na reversibilidade entre espaços públicos e privados. Um conjunto de cadeiras próprio ao espaço doméstico se transforma facilmente em um banco público onde se espera pelo ônibus. O mesmo cabideiro que sustenta o terno do título volta-se para o espaço interior como espelho e para o exterior como porta de saída para a rua ou barra de apoio para os passageiros que viajam em pé no transporte coletivo. A reversibilidade de objetos simples, que facilmente se transformam em outra coisa de acordo com a exigência da cena, também evidencia um outro traço marcante do teatro épico: nele, a função da cenografia não é construir um espaço mágico que seja a representação verossímil de um espaço real; ao contrário, ela é utilizada simplesmente para colaborar no estudo de determinadas situações. Com isso, o artifício mesmo do espetáculo é exposto. Diferentemente do teatro de feitio realista ou naturalista, no teatro épico a cena não está pronta, fundida ao cenário, mas é montada a cada vez a partir de seus elementos materiais básicos.

A cenografia prenuncia assim a dinâmica própria à montagem das cenas, que não se sucedem como um fluxo temporal contínuo, calcado no desenvolvimento da ação, mas de maneira intermitente, intervalada, o que confere autonomia aos episódios. Isso naturalmente coloca uma série de desafios aos atores, os quais nunca se identificam inteiramente com seus personagens. A encenação de Brook ecoa muitos dos elementos reunidos por Brecht em textos da década de 1930 como “Uma nova técnica de atuação” e, notadamente, “Cena de rua”, um ensaio que já havia sido retomado por Brook em O espaço aberto.[3] Brecht tomava uma situação cotidiana como ponto de partida – a narrativa de um acidente de trânsito – e propunha indicações para o “ator-demonstrador” em oposição às técnicas de atuação desenvolvidas por Stanislaviski. Referir-se aos acontecimentos no tempo passado e ao personagem na terceira pessoa, por exemplo, incorporando observações a seu respeito, sejam elas formuladas pelo dramaturgo ou elaboradas nos ensaios, eram estratégias que favoreciam a compreensão, primeiro pelo ator e depois, consequentemente, também pelo público, do conjunto de variáveis determinando um evento qualquer. Com isso, ator e público são levados, como disse Walter Benjamin, a se espantar com o que veem e a assumir uma posição.[4] Como o ator não encarna por completo sua personagem, mas a avalia a partir da posição distanciada de um narrador, a identificação afetiva do público com o destino da personagem também é combatida. Sem prejuízo da diversão e das emoções, que devem ser compreendidas, atores e espectadores são tomados como seres pensantes e interessados, que visam ao conhecimento e aprendem com o teatro a discutir as situações apresentadas.

Os momentos iniciais de O terno demonstram grande perícia na execução de técnicas épicas de atuação. A cena apresenta um ritual corriqueiro do dia a dia. Philemon acorda às cinco e meia da manhã, levanta-se, veste-se, prepara o café da manhã para Matilda, contente por servi-la, e sai para mais um dia de trabalho. Essas ações não são propriamente representadas. Reduzidos a breves arranjos esquemáticos, cada tarefa, cada gesto, é primeiro anunciado pelo ator para então ser executado. De modo muito preciso, o ator trabalha com dois pontos de vista: um interno à ação, na qual ele desempenha os movimentos de Philemon, e outro externo, a partir do qual ele ressalta a regularidade daquelas ações e as situa na rotina do casal. Nas cenas seguintes, os atores ora anunciam na terceira pessoa o que deverá ocorrer no instante seguinte, ora apresentam a cena como se ela se referisse a um acontecimento já transcorrido.

Em O terno, a perspectiva distanciada propiciada pelo teatro épico ainda permitiu a Brook o encaixe de episódios que não decorrem necessariamente da ação principal, mas, na sua contiguidade, desempenham a função de comentário. Alguns merecem ser mencionados. Primeiro, a brincadeira da atriz com o terno, um número digno de um clown, que tanto pode ser apreciado independentemente das demais cenas quanto referido ao conflito principal, como uma maneira da personagem de Matilda resistir, pela zombaria, à convivência com o terno. Depois, duas cenas protagonizadas por Philemon e seu amigo Maphikela. Numa delas o amigo narra a Philemon a história do violonista torturado e morto pela polícia, uma espécie de história de jornal que poderia figurar dentre as reportagens da revista Drum de Can Themba. Em outro episódio, ambos encenam, como um número à parte, a tentativa de assistir ao serviço religioso em igrejas frequentadas por brancos. A história de Maphikela tem por base uma reportagem escrita pelo próprio Themba a partir de suas tentativas de visitar as igrejas e estabelece um diálogo com um dado importante da ação principal. Até então as escolas eram dirigidas pelas missões religiosas e financiadas pelo Estado. Após o Ato Educacional de Bantu, de 1953, que consolidou a segregação no sistema educacional, o financiamento ficou condicionado à adoção de um currículo racialmente discriminatório. Transformar-se em um clube cultural foi o modo encontrado pela escola da missão anglicana para escapar ao controle governamental. São as reuniões desse clube que Matilda passa a frequentar em busca de alívio para sua situação doméstica, envolvendo-se em discussões sobre os problemas das mulheres e encontrando um espaço no qual pode exercitar sua vocação de cantora.

No conjunto desses episódios, as diversas canções compõem um grupo especial. Como nas peças de Brecht, elas são acompanhadas por músicos no palco que, ocasionalmente, também fazem as vezes de figurantes. Elas não só conectam-se com a biografia de Matilda e sua aspiração à música como também inserem uma perspectiva mais ampla para a evocação dos problemas coletivos evocados pela peça: “Forbidden Games” e “Malaika”, por exemplo, remetem a performances de Miriam Makeba, uma das grandes vozes de oposição ao apartheid, enquanto que “Strange Fruit” se tornou, na voz Billie Holiday, uma das canções centrais a respeito da violência contra os negros norte-americanos, além de também remeter à importância do jazz para a cultura musical de Sophiatown.

Inseridos nos intervalos entre as cenas do entrecho principal tais episódios ampliam a perspectiva perante o conflito entre Matilda e Philemon. Eles se coordenam com a declaração, feita pela atriz de Matilda, de que tais acontecimentos estão estreitamente ligados à história de Sophiatown. Nos termos do teatro épico, eles ajudam a mostrar, nas palavras de Brecht, “os processos por trás dos processos”, ou seja, explicitam as questões sociais que perpassam a relação de Matilda e Philemon. Um dos méritos de Brook foi ter feito um uso extremamente produtivo dos elementos do teatro épico, atingindo um rigoroso controle da atuação, das emoções e do humor de sua encenação. O terno, contudo, não é a mera aplicação de um método prévio. Como Brook já reconhecia em O espaço aberto, os procedimentos mais diversos podem ser empregados para atingir o chamado “efeito de estranhamento” e somente a particularidade de cada produção pode decidir o que funciona ou não. Nesse sentido, O terno apresenta uma configuração peculiar das técnicas de distanciamento e necessariamente coloca a questão de sua atualidade, uma vez que as atuais circunstâncias de encenação são muito diferentes daquelas enfrentadas por Brecht.

No teatro brechtiano, esses elementos serviam à desnaturalização de processos sociais, dos quais o teatro era parte. Contra o teatro de viés naturalista e em consonância com as vanguardas, Brecht ressaltava, como já indicamos, o artifício na construção do espetáculo, de modo a despertar a postura crítica do espectador, que deveria tomar posição perante o espetáculo e as situações sociais ali apresentadas. A desnaturalização tinha como ponto de fuga o caráter histórico e, portanto, transformável da exploração capitalista. Na esteira do marxismo, Brecht não entendia tal transformação, assim como a exploração, como processos individuais, mas decorrentes das classes sociais organizadas. Submetida à desnaturalização, a doutrina burguesa do indivíduo livre, cerne do drama burguês, se mostrava como ideologia, enquanto que o teatro épico e seu público passavam a se compreender como coletivos organizados. A ascensão do fascismo representou um duro golpe nas expectativas emancipatórias vinculadas ao teatro épico. O diagnóstico a respeito do caráter histórico da dominação social, porém, mantém-se como um dado imprescindível à consciência crítica.

Muitas décadas mais tarde, pode ser um tanto redundante dizer que cabe ao teatro mostrar ao espectador que os processos históricos não são naturais. Após anos de luta histórica, quem ainda poderia acreditar que as condições de exploração, como aquelas do apartheid e de suas doutrinas raciais, sejam forças da natureza? Simultaneamente, muitas técnicas de distanciamento foram incorporadas e neutralizadas pela indústria cultural. O palco vazio e a cenografia despojada, por sua vez, são cada vez mais moeda corrente no teatro contemporâneo. Difícil é encontrar um palco ilusionista intacto. Consciente dessas mudanças, o espetáculo de Brook optou por trabalhar com dimensões menos evidentes dessas questões, sustentando assim que o distanciamento ainda se faz necessário.

Foto: Johan Persson.
Foto: Johan Persson.

As cenas iniciais, nesse sentido, não são marcadas apenas pelo emprego de técnicas de atuação não naturalistas, mas também pelo estranhamento de um ponto de vista corrente a respeito da vida privada, o qual é sustentado pela personagem Philemon. Como ele confessa à esposa durante o café da manhã, seu prazer em servi-la decorre do caráter voluntário dessa ação, por oposição à obrigação de servir seu empregador. Philemon vê nessa civilidade entre quatro paredes uma proteção contra as condições adversas do mundo do lado de fora, ou uma compensação por elas. Ele destaca a separação entre os domínios público e privado, e não as mediações entre sua gentileza com a esposa e a submissão necessária às condições de trabalho. O tratamento dado por Brook ao adultério de Matilda vai contra o ponto de vista de Philemon, pois a traição também tem suas mediações sociais: em O terno, ela é indissociável da condição submissa das mulheres de Sophiatown. Matilda tem afeição pelo marido, mas a estreiteza da vida doméstica pesa. Tanto o adultério quanto a música e o posterior envolvimento com o clube cultural são válvulas de escape de uma situação opressora, marcada pela impossibilidade mais geral de as mulheres de Sophiatown encontrarem emprego e se emanciparem da vida doméstica. O lar conjugal não é imune a esses problemas, como, de resto, lembra o próprio terno deixado pelo amante. Símbolo do adultério, ele também é o vestuário representativo da vida pública e urbana, que confere respeitabilidade ao funcionário nas horas em que se submete à rotina de trabalho. Ao ordenar à mulher que ele seja tratado como um hóspede, introduzindo um terceiro elemento na vida conjugal, Philemon involuntariamente explicita a fragilidade de sua resistência ao mundo exterior.

Seria fácil ao espetáculo estimular o público a identificar-se com um ou outro ponto de vista. O papel secundário da mulher na ordem doméstica e a humilhação cotidiana pela lembrança do adultério parecem exigir do espectador a reprovação do comportamento de Philemon. A traição de um marido relativamente dedicado e que não reage ao adultério com violência física ou com o fim do casamento poderiam justificar, por outro lado, que a conduta de Matilda seja censurada. Brook, entretanto, mantém distância do juízo moral sobre suas personagens e convida o espectador a fazer o mesmo. O teatro épico já assumiu configurações doutrinárias, como se sustentasse que a função crítica do espetáculo residisse na assimilação pelo público das mensagens progressistas transmitidas pelos atores em cena. O objetivo do teatro épico, porém, não reside em convencer o espectador disso ou daquilo. Uma tarefa mais apropriada à sua dimensão crítica – e também mais difícil de realizar com sucesso – consiste, ao contrário, em criar as condições para que o público avalie por si mesmo os acontecimentos mostrados. Nesse contexto, tomar o partido de um ponto de vista, como se a peça representasse algum deles, significaria optar pela identificação afetiva com um destino individual e abrir mão da dimensão mais ampla propiciada pelo distanciamento. Resistir à empatia e ao juízo moralizante permite a Brook reenviar o conflito conjugal à dinâmica do conflito coletivo. Philemon e Matilda têm suas razões e não se trata de justificar umas ou outras, mas de reconhecer como elas são formadas em um processo social. A mais íntima célula do ambiente doméstico também se mostra, ao contrário do que desejava Philemon, perpassada pela opressão social sob o domínio do apartheid.

No momento de maior alegria da relação entre ambos, durante a festa que Matilda oferece aos amigos do clube cultural, Philemon a lembra da história do terno, humilhando-a publicamente. A cena se desfaz, Philemon sai com Maphikela, e Matilda, sozinha em casa, retira a própria vida. Como interpretar seu suicídio? A superação da traição e a reconfiguração da vida do casal seria impossível? Ou, ao contrário, seria mais razoável esperar pela reconciliação após a reconsideração de Philemon durante a conversa com Maphikela? Por que Brook se decidiu pelo retorno tardio de Philemon, quando o suicídio de Matilda já se encontrava consumado? Se tudo leva a crer que Philemon e Matilda não resistem diante de suas próprias fraquezas e da adversidade geral, a infelicidade seria inevitável e a peça necessariamente terminaria com um desfecho trágico.

Nesse contexto, cabe questionar como fica a aspiração maior do teatro épico a um teatro não trágico. Brecht se opôs ao trágico ao sustentar que destino humano não é natural e necessário, nem produto de forças indiscerníveis, mas o resultado de ações e decisões de homens envolvidos no processo social. Se os destinos são históricos, eles não são inevitáveis. A posição de Brecht remete à caracterização do conflito trágico na tragédia grega, tal como caracterizado, por exemplo, por Peter Szondi em sua interpretação de Édipo Rei, de Sófocles. Trágico ali não é simplesmente a derrocada de Édipo, mas o fato de que é justamente o caminho tomado por ele para escapar da própria ruína que o leva a ela. Segundo Szondi, é a unidade de salvação e aniquilamento que constitui o traço fundamental de todo trágico. Tão importante quanto a interferência da divindade no destino humano seria o fato de essa intervenção ocorrer por solicitação humana; em Édipo, por recurso ao oráculo, que faz do saber divino um saber um humano e assim dirige a ação dos homens.[5] Brecht, inspirado em Marx, toma o partido da liquidação moderna do trágico em virtude do conhecimento das causas – sempre históricas, nunca divinas ou naturais – da ruína e do sofrimento. Com esse conhecimento, o conflito entre a autonomia individual e a dimensão ética e coletiva não poderia mais ser caracterizado como trágico, pois ele traz consigo o discernimento dos elementos capazes de colocar os homens como sujeitos da própria libertação. Historicizar a tragédia termina por coincidir com sua liquidação. Como se vê, a oposição ao trágico está na raiz da desnaturalização brechtiana e dos diversos procedimentos de encenação responsáveis pelo efeito de estranhamento.

Nos debates teatrais recentes, Hans-Thies Lehmann retomou essa definição do trágico pela natureza do conflito, mas não circunscreveu o fenômeno do trágico teatral exclusivamente a ela.[6] Ao lado do “modelo do conflito”, ele caracteriza um “modelo da irrupção”, o qual remete a elementos da tragédia clássica, mas adquire um significado singular em experiências teatrais contemporâneas. São os espetáculos que ele denomina de pós-dramáticos. Nesse modelo, o trágico aparece como uma irrupção violenta, como manifestação da ausência de medida e do excesso, forte o suficiente para ameaçar o sujeito com a perda de si e com o auto-aniquilamento. Lehmann detecta fontes teóricas desse segundo modelo no dionisíaco nietzscheano, na teoria da transgressão de Bataille e na interpretação feita por Lacan da Antígona. Enquanto o modelo do conflito tem afinidades com o drama em sentido estrito, Lehmann sustenta que o modelo da irrupção teria ampla penetração em espetáculos avessos aos elementos constituintes da forma dramática, como a fábula e o conflito intersubjetivo, e próximos de outras artes como a performance, a dança e as artes visuais de modo geral.

Embora não caiba aqui discutir a pertinência do conceito de pós-dramático, é possível dizer que a moldura mais sóbria do espetáculo de Brook situa O terno à margem do espectro de um teatro de irrupções e intensidades, recolocando a discussão a respeito da morte trágica no domínio esquadrinhado pelo teatro épico. Na tragédia, a morte do herói é necessária diante da relação do mundo dos homens com o dos deuses. Na caracterização de Walter Benjamin, “ela é um sacrifício expiatório que segue a letra de um antigo direito, morte sacrificial que inaugura uma nova comunidade, no espírito de uma justiça vindoura” (BENJAMIN, 2011, p. 115). Nos termos do teatro épico, tal necessidade foi eliminada pelo conhecimento histórico, conferindo caráter circunstancial à morte, compreensível – e evitável – no contexto de certas relações.

Brook encena a morte de Matilda com técnicas do teatro épico. A atriz, sentada à meia luz, retira os brincos e a pulseira usados na festa e pende o pescoço para baixo, sugerindo o suicídio por enforcamento. Essa cena é justaposta a uma outra, em que Philemon, durante conversa com Maphikela, reconsidera a punição imposta à mulher e se prepara para a reconciliação, mas já é tarde demais. A opção de Brook por concluir com o ato extremo de Matilda pode ser interpretada de várias maneiras: o suicídio seria uma maneira de enfatizar a opressão vivida por Matilda em seu ambiente doméstico, as quais iam além do sofrimento suportável. A peça convergiria então no destino de Matilda como vítima da punição de seu marido. Isso exigiria uma inflexão no que foi colocado acima a respeito do teatro épico, como se Brook terminasse por questionar sua viabilidade. Se, por outro lado, a ênfase recair no atraso do marido em rever sua posição, a casualidade da morte de Matilda é realçada, indicando que uma mudança oportuna das circunstâncias – a mudança da posição de Philemon – evitaria a tragédia a tempo. Com isso, o espetáculo vai ao encontro dos princípios do teatro épico. Ambas as leituras, dentre outras, são possíveis, mas talvez nenhuma delas seja inteiramente satisfatória.

Diante disso, a própria noção de um desfecho convincente, que arremate a trama e satisfaça o público, parece ter sido questionada por Brook. É aqui, supomos, que se encontra o grande mérito de sua encenação. O espetáculo não forma uma unidade com o desfecho da ação, mas submete esse desfecho a um distanciamento, de modo a estimular o público a questionar se a peça teria mesmo que terminar assim ou se o destino das personagens não poderia ter sido outro. Ao fazer do suicídio de Matilda uma questão em aberto, sujeita à discussão, Brook sugere ao público que refaça as conexões que ele procurou estabelecer entre o destino particular do casal e as condições de opressão da população negra vivendo sob o apartheid. Se a opressão inscreve o destino individual na vida coletiva, a resistência a ela também depende dessas conexões mais gerais. Não é por outra razão que os momentos de maior fragilidade – o adultério, a punição, o suicídio – são aqueles em que os personagens se descobrem sós. Transmitir ao público a responsabilidade de percorrer mais uma vez os vínculos entre o individual e o universal, sem dizer a ele o que concluir a respeito, foi a maneira encontrada por Brook de reatar com o teatro épico e reintroduzir o espectador no processo de encenação.

 

Referências bibliográficas:

A.C.T. – American Conservatory Theater. Words on Plays. Http:// www.act-sf.org/content/dam/act/education_department/words_on_plays/the_suit_wop.pdf

BENJAMIN, Walter. “O que é o teatro épico?”. In Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1995.

________.  Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte, Autêntica, 2011.

BROOK, Peter. The empty space. New York, Touchstone, 1996.

LEHMANN, Hans-Thies. Tragödie und postdramatisches Theater”, in Bettine Menke e Christoph Menke (orgs.). Tragödie – Trauerspiel – Spektakel. Berlim, Theater der Zeit, 2007.

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro, Zahar, 2004.

 

Luciano Gatti é doutor em filosofia pela UNICAMP e professor do departamento de filosofia da UNIFESP. É autor de Constelações: Crítica e Verdade em Benjamin e Adorno (Loyola, 2009) e A Peça de Aprendizagem. Heiner Müller e o Modelo Brechtiano (Edusp, 2015).

 

Notas:

[1] Um conjunto de informações valiosas a respeito da encenação de Brook se encontra na série Words on Plays, editada pelo A.C.T. – American Conservatory Theater. Muitas das informações do presente texto foram retiradas desse dossiê, acessado no seguinte endereço:

http://www.act-sf.org/content/dam/act/education_department/words_on_plays/the_suit_wop.pdf

[2] Uma pequena amostra do trabalho de Jürgen Schadeberg para a Drum, incluindo fotografias da própria redação da revista e dos arredores de Sophiatown, pode ser encontrado no dossiê da série Words on plays citado na nota anterior.

[3] Cf. Peter Brook, The empty space, p. 94.

[4] Cf. Walter Benjamin. “O que é o teatro épico?”. In Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1995, p. 81.

[5] Cf. Peter Szondi. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro, Zahar, 2004. p. 89.

[6] Cf. Hans-Thies Lehmann. Tragödie und postdramatisches Theater”, in Bettine Menke e Christoph Menke (orgs.).

Tragödie – Trauerspiel – Spektakel. Berlim, Theater der Zeit, 2007. p. 214-225.

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