Fragments no Bouffes du Nord: um Beckett longe dos clichês

Tradução de Felipe Vidal da crítica de Jean-Pierre Thibaudat sobre o espetáculo Fragments

15 de julho de 2008 Traduções

A crítica de Jean-Pierre Thibaudat foi publicada originalmente no blog Balagan, no site Rue 89, em março de 2008.

Brook monta quatro pequenos sopros de Beckett e faz uma boa ação para a humanidade. Eles estão lá como dois amigos que se reencontram, bebendo alguma coisa, falando de tudo e de nada, da vida que passa, rindo de tudo e de nada e, em primeiro lugar, da condição humana. Oferecendo aos espectadores a passagem de um pouco de alegria por seus caminhos durante uma hora.  É também simples, é também belo, porque é o reencontro do velho Peter e do velho Sam, dois moleques que constroem sua cabaninha, que se divertem e cochicham um segredo.

Um teatro que se dedilha com as pontas dos dedos, cheio de evidências. Longe de suas grandes peças atulhadas de história literária e repletas de exegeses. Longe dos “rótulos” que costumam colar em sua obra (“desesperada, negativa, pessimista” enumerados por Peter no  programa). Sob o título de “Fragments”, Brook aborda Beckett através dos textos curtos, das bouts de pièces (fragmentos, foirades), das pepitas ínfimas  (“Rockaby” – Balanço) lançadas aqui e ali dentro dos estreitos livretos publicados ao longo dos anos.

Partindo destas pedras preciosas, Brook constrói um caminho para Jos Houben, Kathryn Hunter, Marcello Magni*, três atores que se conhecem bem, posto que atuam frequentemente juntos nos espetáculos da companhia inglesa « Théâtre de la complicité», onde da qual dois deles são membros fundadores. Três atores de uma excelente precisão: sem nenhum gesto sobrando e, no entanto, com cumplicidade em todos os instantes, sob um olhar repleto de contentamento de Peter, cercado por suas duas colaboradoras, a fiel Marie-Hélène Destienne e Lilo Baur.  

Tanto em inglês como em francês, a risada de Beckett é um presente

O espetáculo é realizado em inglês com legendas em francês assinadas por Samuel Beckett, que não casam sempre com o texto em inglês pois, ao se traduzir, o autor operava alguns delizamentos rítmicos e sonoros. Beckett escreveu  “Actes sans paroles II” (Atos sem Palavras II) e “Fragment de théâtre” (Fragmentos de Teatro) em francês, “Rockaby” (Balanço), “Neither” e “Come and go” (Ir e vir) em inglês e traduziu os textos para o francês dando-lhes outra direção.

É uma noite onde se ri muito e que proporciona alegria até o momento em que você sai na chuva pela calçada do Bouffes du Nord.

É a lingua inglesa que desvia  estes textos para o riso? Não é verdade para “Rockaby” (Balanço), que não faz rir, mais aflige com esta voz de uma grande e melancólica intensidade, peça para uma mulher só, espécie de eco de “A Última Gravação de Krapp” (peça para um homem só), texto magnificamente conduzido pela atriz em um comovente momento de teatro imemorial.

Também não é verdade para  “Actes sans parole II” (Atos sem Palavras II), sem palavras como o título indica, no qual Brook e seus atores, seguindo o texto de Beckett, fazem o público do Bouffes du Nord se escangalhar de rir. Não, esta risada é a de Beckett e é um presente. As pessoas esquecem do Beckett apreciador do music hall, dos atores dos cabarés, dos bistrôs à noite; referências das quais suas peças não se esquecem. E é provável que quando estes mesmos atores interpretarem “Fragments” em língua francesa, o riso estará lá, mas de outra maneira.

Em seu breve ensaio sobre Beckett (“L’ increvable désir”, O desejo incansável, Hachette littératures) Alain Badiou tem razão em falar de “tradição carnavalesca” e escrever:

“É necessário interpretar Beckett com a mais intensa comicidade, dentro da variedade constante dos tipos teatrais herdados, e só então veremos surgir o que é o verdadeiro objetivo do cômico: não um símbolo, não uma metafísica disfarçada, menos ainda um deboche, mas um amor poderoso pela obstinação humana, pelo desejo incansável, pela humanidade reduzida à sua perversidade e à sua teimosia.”

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