O patrão é simples
Crítica do espetáculo O patrão cordial da Companhia do Latão
O recente espetáculo da Companhia do Latão, O patrão cordial, tem como ponto de partida duas fontes literárias: a peça O Senhor Puntila e seu criado Matti, de Bertolt Brecht e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, importante livro que disserta sobre a formação do caráter do homem brasileiro. As duas matrizes dialogam entre si de forma concreta na dramaturgia do espetáculo, escrita por Sérgio de Carvalho, de maneira que é possível verificar como uma obra interferiu na leitura da outra e como ambas estão presentes na dramaturgia final.
A história de O patrão cordial se aproxima muito da fábula de Brecht, tanto em sua estrutura narrativa como na transposição dos personagens centrais. O enredo de O senhor Puntila e seu criado Matti trata da história do proprietário de terras finlandês Puntila, homem que revela qualidades humanas extraordinárias, um elevado sentido de justiça e um desprezo pela hipocrisia quando está bêbado, e, quando sóbrio, mostra-se um patrão tirano e cruel. Sua balança é feita por Matti, fiel criado que o acompanha e possui um senso político, uma dose de cultura e intelectualidade diferenciadas para um servo.
A base teórica, e que está materializada na dramaturgia de forma diluída, mas contundente, abarca um sentido ideológico bastante relevante ao trabalho da companhia. Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda vai às nossas raízes para mostrar como se dá a lógica relacional do homem brasileiro na esfera do trabalho, na esfera pública e com aquele que é o “superior”. É no capítulo intitulado O homem cordial que o autor traz à tona a questão da cordialidade do homem brasileiro, de sua aptidão para estreitar laços de intimidade e fazer deles a base dessas relações. O autor afirma:
“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões do convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.” (p. 146-47).
O estudo do autor alerta para essa vocação cordial da natureza do brasileiro como um complicador, já que ela confunde as relações de trabalho e os direitos do trabalhador com os laços afetivos que se dão entre as individualidades.
Assim, essas duas matrizes podem ser detectadas na dramaturgia de Sérgio de Carvalho, que se serve da estrutura fabular e dos personagens de Brecht como base, transportando a história para um Brasil rural nos anos 70, era de ditadura militar e do dito “milagre econômico”.
Em O patrão cordial, o empregador é um proprietário rural. Ele se relaciona diretamente com seus empregados, mas procura manter a posição hierárquica, autoritária e desconfiada. A sua natureza mais humana e cordial se evidencia quando está bêbado. Em estado alterado pelo abuso de álcool, o personagem Cornélio possibilita laços afetivos entre ele e os subalternos, mostrando como é capaz de ser uma pessoa simples e próxima daqueles a quem emprega e explora. Sua cordialidade é tão extremada que é capaz de oferecer a filha ao motorista. Como patrão, pode mostrar-se simples aos seus empregados e juntar-se a eles para beber uma cachaça e gastar um dedo de prosa. Na dramaturgia e encenação de Sérgio de Carvalho, é criado um tensionamento nessa noção de cordialidade, já que ela aparece de forma dúbia no patrão – evidenciada em suas bebedeiras.
O espetáculo da Companhia do Latão, que tem um forte cunho político em seus trabalhos e uma trajetória com muitas montagens de textos de Brecht, se dá a ver como uma obra que prima por elementos necessários para contar a história de O patrão cordial. A estrutura do espetáculo é bastante simples e possui um despojamento tal que nossa atenção é direcionada para o que é contado, para a carpintaria do texto e o seu teor reflexivo. Os elementos característicos das montagens de textos de Brecht pela Companhia do Latão estão ali presentes, como a narração em cena, o uso do coro, das canções e o distanciamento dos atores com os personagens e diante dos fatos da cena.
A direção de Sérgio de Carvalho permite que o espectador verifique a essência da fábula, pois é dado o essencial em cena para a exposição das contradições e engrenagens que estão em jogo. Essa direção permite um teatro político com um viés ideológico que não é duro naquilo que prega nem se coloca como portador de um engajamento capaz de salvar o mundo. Pelo contrário, o despojamento da encenação e a simplicidade dos recursos são fatores que contribuem para um trabalho apurado nas atuações, que acabam evocando o riso e a diversão que dão concretude às contradições e aos comentários reflexivos da obra. Não há um sentido panfletário nem maniqueísta nesse trabalho, pois há uma leveza no como se diz e no como se mostra a fábula. Essa característica estrutural permite ao espectador recorrer à sua capacidade político-reflexiva sem dar chances a qualquer ranço ideológico.
O tripé cenografia, figurino e iluminação converge como um conjunto de elementos técnicos que emanam uma simplicidade vital para a construção da cena e o valor dado ao que é contado. Há um diálogo muito firme entre as três instâncias que busca valorizar o dar a ver daquela fábula da maneira mais simples e de uma ligeira apreensão do espectador. A cenografia de Cássio Brasil faz uso intenso da teatralidade ao reduzir-se a alguns praticáveis de madeira rústica e uma lona verde exército, que remete aos anos de ditadura militar, cobrindo o chão da cena. Esses praticáveis são usados pelos atores de diversas formas, como biombos, como pontos de fuga na cena, ou como um caminhão. Os objetos – baldes, garrafas, vassoura e copos – também remetem à simplicidade e à essencialidade do campo. O figurino, que também leva a assinatura de Cássio Brasil, aponta para essa mesma simplicidade. Há nele uma referência ao homem da roça nas cores sóbrias e neutras, como o marrom, o branco e o cinza, que são a base da paleta de cores. Acessórios como uma echarpe, um lenço ou avental ultrapassam essa sobriedade e conferem um colorido ao neutro das roupas. A iluminação, de Melissa Guimarães, tem uma simplicidade que dá a ver os objetos e a cenografia, além de produzir um efeito de revelação às ações dos personagens em cena na medida em que é uma aberta, que evidencia o gestus social, como aquele em que o patrão dá sua carteira para o motorista guardá-la, ou escolhe os trabalhadores numa feira. Não tem um caráter ilusionista, no intuito de criar os climas de cada cena, iluminando numa mesma intensidade a cena e a plateia. Com isso, proporciona a sensação de quebra de quarta parede e faz do espaço da plateia um lugar de cumplicidade com a cena. Considero essencial os espectadores se verem uns aos outros durante a encenação, perceberem reações similares ou adversas diante dos acontecimentos. A luz também proporciona ao elenco olhar diretamente no olho de cada indivíduo da plateia, dificultando disfarces ou fugas do olhar – uma escolha que anda em conformidade com os preceitos de Brecht acerca das encenações de um teatro popular e reflexivo e coloca o espectador numa posição de observador atento e cúmplice.
O registro de atuação empregado pelo elenco reitera essa simplicidade do cenário, figurino e iluminação na medida em que evoca um distanciamento do ator sob o objeto, ao mesmo tempo em que promove a oportunidade da construção de corpos com formas mais definidas e definitivas. Através de uma atuação sem exageros e sem um didatismo que subjuga a inteligência do espectador – que é fruto de uma trajetória da companhia em encenar textos do dramaturgo alemão, em dialogar com o pensamento e técnica brechtiana na busca de uma linguagem própria para a companhia e que vemos amadurecida nesse trabalho – vemos um conjunto de atores que dá a devida importância ao discurso recheado de críticas e comentários, mas usando uma chave que tem ironia e sutileza nos gestos, falas, contracenação e na postura dos corpos. Os atores que não estão em cena permanecem sentados em cadeiras ou mesmo no chão, durante o espetáculo. Atitude distanciada, eles observam atentamente – como espectadores – o que se passa em cena. Entram e saem dos personagens sem disfarces e de forma muito orgânica e sutil.
A atuação de Ney Piacentini como o fazendeiro Cornélio e de Helena Albergaria como a filha Vidinha são composições bem delineadas e fixas. Há uma maior rigidez na forma como dão a ver aqueles personagens na medida em que o andar, o falar, os trejeitos evidenciam uma construção minuciosa do personagem, que usa a chave da representação de modo mais reiterativo que os demais atores. Em alguns momentos, a meu ver, Helena Albergaria expõe uma emotividade exagerada que é percebida pela voz repetidamente embargada, os olhos marejados ou as mãos que tremem constantemente. Essas marcas na performance da atriz me parecem ser uma tentativa de mostrar a filha do fazendeiro sempre descompensada, atordoada na situação de um casamento de interesses ou mesmo quando é oferecida pelo pai ao motorista.
A outra parte do elenco se divide em personagens mais periféricos, que atuam também como coro. Carlos Escher, Renan Rovida e Rony Koren desempenham funções coringas com tranquilidade e fazem personagens periféricos com uma versatilidade em que se vê uma composição formal elaborada, sutilmente construída, mas que deixa aberta a possibilidade de vislumbrar-se o sujeito da cena que é o ator por trás da representação. Esses três atores registram mudanças de estados e mudanças de personagens de forma orgânica e sem alarde. Operam mudanças sutis dentro de um registro que vai da representação para um registro de atuação mais neutro, que é possível verificar na postura dos atores como atuantes no coro. Essas passagens não deixam arestas entre um registro e outro, as densidades são dosadas e parecem fruir de forma mais orgânica e sem afobação, mesmo nos momentos mais velozes.
A atuação de Adriana Mendonça opera contornos definidos a seus personagens dentro da dinâmica da fábula, como quando é a cozinheira Alexandrina ou Lena, a moça do bar, e a sua postura nas narrações e no coro desencadeia uma força que apela ao espectador de maneira direta e delicada. Os seus solos nas canções e na interlocução da atriz com o coro são potentes sem serem exagerados na interpretação: a sua técnica vocal preenche o espaço com uma voz suave e doce, abarcando o espaço numa atitude que resulta em não deixar palavra alguma escapar de compreensão daquilo que se comenta pela canção.
O patrão cordial demonstra uma maturidade da companhia ao abordar um tema recorrente, como é a relação entre patrão e empregado, mas com uma visada antropológica que a leitura de Raízes do Brasil proporciona. E trazer Bertold Brecht para a atualidade me parece ser um exercício reflexivo sempre oportuno e atual, pois as relações entre explorador e explorado, pobres e ricos continuam as mesmas, só que seus limites são mais esgarçados e diluídos no caldo do dia-a-dia do brasileiro. O patrão bom, o patrão simples e cordial é uma ilusão. É preciso estar atento e perceber as contradições que aparecem na relação de poder medida pelo dinheiro e pelas posições hierárquicas perpetuadas no tempo, perpetuadas em nossa cultura do bom patrão.
Referências bibliográficas:
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro na Unirio e faz a coordenação geral do Prêmio Yan Michalski para o teatro em Formação.