Simplicidade em tempos de Broadway

Crítica da peça Fragments

15 de julho de 2008 Críticas
Ator: Marcelo Magni. Foto: divulgação.

Por uma série de motivos, a passagem de Fragments pode ter uma boa repercussão no teatro carioca. Esses motivos, para mim, dizem respeito principalmente aos questionamentos que a presença dessa peça pode trazer para o teatro que se faz neste momento no Rio de Janeiro. Penso que é importante pensar como nos relacionamos com os espetáculos que passam por aqui, verificar como eles movimentam nossa visão e nossa prática de teatro.

Fragments é uma montagem do Théâtre des Bouffes du Nord, dirigida por Peter Brook, com a colaboração de Lilo Bauer e Marie Hélène Estienne. A peça reúne quatro textos curtos de Samuel Beckett. Para o público carioca que assistiu Resta pouco a dizer, festival de peças curtas do mesmo autor dirigidas por Adriano e Fernando Guimarães, acredito que Fragments tenha sido uma experiência ainda mais interessante – não porque este espetáculo é melhor que aquele, mas por causa do jogo que se dá na imaginação entre as imagens das duas montagens.

Ato sem palavras II, Balanço e Ir e vir, peças encenadas naquele festival e no espetáculo de Peter Brook, ganharam cores diferentes no imaginário do público carioca que assistiu essas montagens. Em Ir e vir, a grande diferença entre as duas encenações torna cada uma delas bem interessante. O apelo visual e simbólico que os irmãos Guimarães imprimiram na sua versão (como, por exemplo, as agulhas espetadas nas mãos das três personagens de cujos rostos só vemos as bocas) contrasta com a escolha de Peter Brook de investir na comicidade da cena também através das expressões nos rostos dos atores, encontrando a dimensão de realidade de uma cena com indicações tão precisas. Estão aí duas opções radicalmente distintas que não se excluem nem se invalidam – pelo contrário, a convivência das duas versões na nossa memória produz ainda outras leituras dessa cena. Em Balanço, a plasticidade, que na montagem em português ficou mais marcada na cenografia e na iluminação, na versão em inglês ficou a cargo do próprio texto, que tem uma dimensão mais musical, mais poética, na língua original. Ato sem palavras II tem ritmos bem diferentes nas duas montagens.

De qualquer modo, é interessante ver em cartaz na cidade, mais uma vez, um espetáculo de peças curtas, algo que, infelizmente, não está entre os nossos hábitos. Talvez também seja possível dizer que a simplicidade que se vê em cena neste espetáculo seja motivo de atenção, tendo em vista um determinado aspecto atual do teatro carioca: os “grandes diretores” e “grandes atores” vêm sempre acompanhados de cenários prolíficos e espaços hipertrofiados de signos que, via de regra, sublinham os discursos do texto. A economia que se vê ali – um palco nu, com uma cadeira ou com um banco de praça – é um bom exemplo de sofisticação sem ostentação. Em um momento do teatro carioca em que a mídia impressa e o público em geral vivem um verdadeiro deslumbre com a nossa capacidade técnica de imitar espetáculos da Broadway e cobrar caro por isso, a simplicidade de Fragments é uma sinalização na contramão do elogio do dinheiro.

Isso me chamou atenção logo na primeira peça, Rascunho para teatro I. Ao começar o espetáculo, vemos dois atores em figurinos bem simples, sentados em cubos pretos, iluminados por uma geral branca. A simplicidade fica ainda mais evidente em contraste com um elemento mais visível de sofisticação: a iluminação de Philippe Vialatte, que, nas passagens entre uma e outra cena, lança cores e recortes imprevisíveis para as paredes negras do palco nu do CCBB. Me pergunto que diretor ou que companhia carioca – depois de conquistar prêmios e patrocínios diversos, depois de ter sucesso de público, ter vaga garantida nos editais e entrada facilitada nas pautas dos centros culturais – teria a iniciativa de realizar um espetáculo como esse, um pouco nu de seus truques, enfeites e artefatos tecnológicos. Pode-se dizer que o gosto pela simplicidade e pela experimentação está presente em diversos trabalhos de vários diretores e companhias. Mas que visibilidade têm estes trabalhos? Eles têm sessões esgotadas no primeiro dia de venda de ingressos? São conhecidos do público? As pessoas fazem fila de madrugada para não perder a oportunidade de vê-los? Ou esse tipo de teatro só tem valor quando vem de fora? A estética de Fragments não traz nada de “novo”, por assim dizer. O “novo” seria apenas uma abordagem menos carregada de preconceitos quanto aos textos de Beckett. Mas a peça é boa e simples e ela me faz pensar qual é o lugar do bom e simples no teatro carioca.

É problemático, no entanto, que o espetáculo tenha se realizado no Teatro I do CCBB, que é pequeno demais para receber a grande quantidade de pessoas interessadas. Muita gente ficou de fora. Era possível ver dezenas de estudantes e jovens artistas de teatro esperando na fila de desistência até o último minuto (enquanto as celebridades chegavam tranqüilamente para pegar seus convites da noite de sábado). Questiono, portanto, se os espetáculos que passam pelo Rio – sejam eles produções estrangeiras ou de outras partes do país – têm um efeito real sobre a nossa forma de ver e pensar o teatro. A oportunidade de ter outras referências, de entrar em contato com outras poéticas, com outras abordagens da prática do teatro, talvez fique sempre restrita demais. No final das contas, fica a impressão de que o Fragments de Peter Brook apenas passou por aqui, mas sem condições de deixar rastros visíveis. O Rio de Janeiro recebe, todo ano, visitas de espetáculos que podem mexer bastante com as nossas noções de teatro. Mas são apenas visitas. O contato talvez seja sempre efêmero demais para engendrar mudanças no nosso pensamento e na nossa atitude com relação ao teatro. Seria interessante se o Rio sediasse mais residências. E que as visitas fossem mais longas.

Vol. I, nº 5, julho de 2008

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