Tempo de resistir

Conversa com Silvia Pasello

15 de outubro de 2008 Conversas

Silvia Pasello é atriz da Fondazione Pontedera Teatro desde o início dos anos 80. Um dos nomes importantes na sua formação teatral foi o ator polonês Richard Cieslak, ator do Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski. Silvia trabalhou em parceria com Carmelo Bene, com quem apresentou no Théatre Odéon, em Paris, Macbeth Horror Suite. Trabalha como atriz convidada da companhia italiana Raffaello Sanzio. Silvia esteve no Brasil para dirigir uma montagem de O castelo de Franz Kafka com uma turma de formandos da CAL. Henrique Gusmão, que também participou da conversa, é assistente de direção desta montagem.

SILVIA PASELLO – Kafka faz uma operação muito estranha com a escrita. A língua dele como escrita parece pouco significativa do ponto de vista da literatura porque lendo você tem a impressão de ler sempre a mesma coisa, a mesma palavra. Isto faz com que a língua desapareça e apareça outra coisa, como quando a criança pega uma palavra e repete, repete e essa palavra desaparece. Então, para mim, O castelo tem a ver com tudo isto, com o visível e o invisível, neste sentido do aparente, daquilo que aparece e desaparece, desta reciprocidade de planos. Não sei se está claro, mas é o que surge no meu imaginário. Mas isto é uma premissa. Dentro do processo de trabalho da cena é muito difícil comunicar, provavelmente porque para mim também está sendo um “processo” de pensamento, de relação com este texto. E o trabalho com os atores da CAL é mais ligado à mise-en-scène, é uma direção. Então, talvez estas coisas não apareçam nesta montagem, isto que eu estou falando são os meus motivos de fazer este texto. Mas isto tem a ver com o processo em geral, você tem os motivos, que importam, que puxam você para fazer uma coisa e depois o trabalho toma outros caminhos porque existe esta relação com a materialidade. Como Kafka diz, o corpo é o material, o cadáver, a coisa que bate sempre na realidade, a testa bate na realidade, mas a testa no sentido literal, na medida em que é concreta. Então tem estas coisas e o processo com os alunos, que o Henrique pode falar.

HENRIQUE GUSMÃO – Na verdade é um processo curto. Isto está ligado a muitas coisas. São algumas semanas de trabalho, mas eu acho que é como a Silvia sempre diz: é trabalho de formatura, um primeiro trabalho profissional, que deve ser como uma experiência, um convite para se experimentar algo no contato entre as pessoas, o que é próprio do teatro. E, a partir disto, primeiro tem uma série de propostas para os atores, um trabalho artesanal que vem se desenvolvendo. Existe desde o início uma concepção do espaço com mesas que vão rondando os personagens, conciliando diferentes ambientes. A experiência parte de um chamado aos atores para propor alguma coisa cenicamente, relacionada a uma situação, uma chamada ao ator como propositor.

DINAH CESARE – A partir do que a Silvia disse em relação às premissas, o que passou a existir na cena que conversa com as motivações, com o dissolver da linguagem, com o que aparece e desaparece?

SILVIA PASELLO – Para mim este trabalho não acaba aqui, obviamente eu comecei uma pesquisa que parte deste texto, mas que vai continuar depois. Então a encenação seria para mim como um primeiro degrau, o nível físico da coisa no sentido material. Se eu tenho que montar, dizendo muito simplesmente, O castelo do Kafka, tem coisas muito concretas para se fazer e é isto que eu estou desenvolvendo aqui. É claro que o meu olhar sobre a coisa considera sempre as minhas premissas. Deste modo, tem coisas que aparecem, que, para mim, têm a ver, talvez seja apenas eu que vou ver. Então, existe um olhar que permite ver o que eu proponho. Mas é preciso considerar que é um espetáculo, que vai existir um público que vai ver e que de qualquer maneira tem que entender, e essa é uma coisa sobre a qual eu estou trabalhando, mas que não bate exatamente com o meu desejo de radicalizar algumas coisas. São dezoito atores e o ponto de onde parte o pensamento de cada um é diferente, de modo que eu preciso fazer uma mediação entre as minhas premissas e o que surge deles. O que acabou se realizando nesta relação é que eu sou K e a situação é o Castelo. Eu não esperava por isso, eu me sinto exatamente na condição de K e isso é muito interessante para mim porque me possibilita perceber outros níveis do trabalho.

Por outro lado tem também a coisa do espaço que não é propriamente um cenário, mas um espaço móvel onde fica impressa a coisa de aparecer e desaparecer. São mesas de madeira que funcionam como elementos que compõem o espaço. No início do espetáculo existe uma estrutura que vai se transformando, que desaparece e aparece outra. Neste contexto a luz é muito importante, porque tudo surge do escuro, como nas primeiras linhas do romance onde K chega e antes de entrar no vilarejo pára e olha para o vazio, mas esse vazio não é um nada, é um escuro que parece um vazio. Então a luz existe como negação, ela é negada, é sempre noite, sempre escuro, e aí está algo invisível que aparece e desaparece.

DINAH CESARE – A luz é a dramaturgia, não é? E como foi o trabalho para adaptar o romance?

SILVIA PASELLO – Eu cheguei ao Brasil com uma adaptação que eu havia feito, e a Celina [Sodré] ajudou na tradução e também na adaptação. Agora estão aparecendo umas escolhas, porque O castelo tem muitos níveis, é enorme o universo. O que foi surgindo para mim foi a figura de Klan, aquele do qual se fala, mas que nunca é visto, inclusive na turma tem uma pessoa que faz o Klan, mas que não aparece. Ele está lá no escuro e é só dele que se fala.

DANIELE AVILA – Onde vai estrear?

SILVIA PASELLO – No Clube Hebraica, em uma sala de ginásio. Aqui tem uma coisa interessante que é própria do teatro. Você tem uma motivação, um desejo, uma intuição, e você se disponibiliza para mudar sem perder, mas às vezes você insiste que tem que ser de um certo modo e não dá, e você precisa encontrar um equilíbrio. Foi o caso do espaço nesta montagem, porque fomos ensaiar em um lugar para estrear em outro e isto se mostrou impossível. O espaço também é arquitetura, não acredito que a cena possa ser autônoma. A sala da Hebraica, em um certo sentido, passou a ser ideal porque é muito desconfortável, abandonada, tem uma atmosfera muito precisa, mas, tecnicamente, a acústica ruim prejudica. Mas nós trabalhamos sobre estas dificuldades e o palco materializa este pensamento de um jeito que nem se previa como possibilidade. Mas nenhum processo pode ser calmo, ou então, talvez, a sua intuição é que não era correta. Eu acredito que você realiza no teatro uma visão para poder interrogar, para perguntar algo a esta visão. Agora, eu estou diante da visão – cena – e o que eu posso fazer é olhar e interrogar, colocar as questões honestamente.

DINAH CESARE – Henrique, como é que, no sentido da formação do ator, o trabalho te interroga?

HENRIQUE GUSMÃO – Eu fiquei pensando que no final da escola, a partir da formatura, é que realmente começa alguma coisa, porque você passa a fazer suas escolhas e alguns rumos se estabelecem. Para mim, é muito importante este exercício de ver as pessoas criarem, de ver como elas são, como elas se comportam em cena e como, às vezes, têm uma dificuldade de escolher um caminho, uma proposta estética. Quando isso acontece, parece que surge um modelo de teatro que vem à tona e que é muito tradicional. Vendo isso eu me identifico, justamente, com a luta de romper com este modelo.

DINAH CESARE – E este modelo faz parte das nossas referências de formação atorial.

HENRIQUE GUSMÃO – Sim, ao mesmo tempo em que se vê uma busca por uma certa neutralidade na condução da Silvia. Ao se buscar este neutro é que as coisas acabam aparecendo e a busca por um outro modelo se revela, não pelo acúmulo, mas pela retirada de coisas, o que possibilita fazer escolhas. É isto que passa pela minha cabeça quando vejo o trabalho, eu não me coloco distanciado, eu me coloco em questão também. Uma outra coisa que eu acho importante, e que eu vejo neste trabalho, é o espaço do teatro como um lugar de liberdade onde tudo é possível, mas como se conquista essa liberdade é que é a questão.

SILVIA PASELLO – Para mim não é tanto a questão do teatro como espaço de liberdade, mas a condição do ator, antes de tudo o ator é uma condição, e o modelo surge porque essa condição é insuportável. E tem a ver com a liberdade, na medida em que a condição de ficar exposto, de ser visto, só isso, e não se tem nada para fazer porque a condição do ator é estar à beira do vazio. É uma condição ontológica, existencial, primária, e isso é o que não parece existir na formação dos atores em geral. É dessa condição fundamental que se parte para construir o trabalho, e, como não se tem, começa-se a fazer qualquer coisa para não ficar neste vazio insuportável. O ator é alguém que tem a necessidade de pesquisar e se confrontar com esse vazio. Se você lembrar dos Irmãos Karamazov, tem o Grande Inquisidor que coloca o problema da volta de Cristo para libertar os homens e eles não querem. Então, a condição do ator que se forma é paradoxal, porque é ele que tem que se confrontar e que não pode delegar para outro a sua própria condição, que é o lugar de onde partem os processos de criação. Por isso a cena é insuportável, porque ela é um espaço de liberdade.

DINAH CESARE – Eu faço uma relação com o lugar da crítica. Parece que toda a minha formação teórica foi se articulando de modo a criar condições de possibilidade de ficar neste vazio ao ver uma obra.

DANIELE AVILA – Uma vez uma pessoa me perguntou como é ser crítico, ela se referia ao acúmulo de experiência. E eu falei: não, a gente vai perdendo experiência, a gente vê que a cada vez que vamos abordar um objeto é preciso partir do zero, tem que começar tudo de novo, não adianta vir com seus pressupostos para se confrontar com o vazio que é aquele objeto naquele primeiro momento.

DINAH CESARE – E na fricção dos conceitos e das coisas é que se dá o que não se vê.

SILVIA PASELLO – O invisível. Ele não é um nada, só não está à vista completamente. Talvez seja preciso criar os órgãos certos para vê-lo, que não são os da percepção sensível ordinária. Esses órgãos vão se formando, o ser humano faz isso. A realidade material impede a percepção desta outra realidade, é o que o K está buscando, que a gente pode nomear como desejo e que está ao lado é obsceno. Deleuze tem um livro sobre o Kafka pornógrafo, onde ele fala deste obsceno – não como saiu no Jornal do Brasil, dizendo que ele colecionava gravuras pornográficas que, na verdade, eram outra coisa e diziam respeito a um imaginário muito particular – mas obsceno no sentido de que o desejo está fora da cena, está no âmbito do invisível. O que Kafka faz é nomear o material para poder se comunicar, ele utiliza as coisas materiais aparentemente objetivas, ao mesmo tempo em que essa realidade material é o imaterial, o invisível não está além, ele está ao mesmo tempo com o visível, com o agora. Assim como o trabalho no teatro. Você atua e tem que lidar com coisas materiais, com o corpo, com a voz, com a cena, com os objetos, com o outro, mas ao mesmo tempo o que acontece não é material.

DINAH CESARE – E o teatro na Europa?

SILVIA PASELLO – Na Europa existe uma crise muito forte no sentido da linguagem. E isso produziu muitas coisas no sentido de romper com a representação. Mas isto virou também uma fórmula que se utiliza de tudo que excede a linguagem teatral. Tudo bem. Nos festivais todo mundo pede uma tela, porque tem um vídeo. São os clichês do fora da representação. É claro que tem coisas interessantes e para mim é significativo, porque é um momento de transição que ainda vai durar mais um pouco. É um momento de pesquisa para se encontrar coisas que não são para se levar para a cena. O tempo agora deve ser o de se retirar de cena. Então, existe uma oferta de coisas, mas não tem público.

DINAH CESARE – O perigo é fixar este momento de crise como uma categoria.

SILVIA PASELLO – Lá o dinheiro é público e o trabalho tem a ver com a vida das pessoas. Na França, na Bélgica, você pode trabalhar sem levar para a cena. Mas existem pequenas coisas boas, e grandes também, como Raffaello Sanzio [Societàs]. É um trabalho excelente e uma pesquisa verdadeira. Mas tem pessoas que escolhem ficar à margem e fazer coisas muito interessantes também. Eu acho que o tempo agora é o de resistir à tentação de subir no palco.

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