Em São Cristovão. Foto: Renato Mangolin.

“Daqui vê-se o morro”, disse ela. “É lindo”, disse ela. Os ponteiros do relógio tinham sido esquecidos na vida digital onde os tempos confluem, não era certo ser agora ou um pouco depois, embora fosse tarde, calor, verão e suor. O lugar era uma estação de trem: Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil. O lugar era feito de gente pegando trens e no meio dessa gente a menina que olhou para mim e disse: “Daqui vê-se a morro, é lindo”. Fiquei sem saber o que dizer. Com o olhar na imensa plataforma de concreto e bem por baixo do meu nariz, havia uma interminável favela, terror de pedra quebrada, lagos de mijo, árvores de lixo, correntes de corpos quase invisíveis. Afinal era uma questão de perspectiva. A menina com os olhos postos no horizonte, um pouquinho acima, ali onde pairava a beleza da cidade, o morro e a distância que torna tudo imponente e eu com o olhar um pouquinho abaixo, abaixo da linha do horizonte, ali onde se perturba a vista com desolação. De repente, uma memória distante das esculturas de Giacometti, pois se o Giacometti aqui estivesse, tinha-se apaixonado pelas pessoas pequeninas de silhuetas em forma de alfinete que vasculham no lixo, aquelas pessoas que carregam o lado avesso do Rio de Janeiro. Respondi: “é lindo”. Tão lindo que dói. Era um lugar cheio de lugares dentro.

(17h30, 22 fevereiro de 2014, estação Manguinhos, depois de assistir In-Trânsito)