O gesto poético como libertação. E reaprendizado.
Artigo sobre o processo de criação de PEH QUO DEUX
Início
Ter uma companhia de teatro, com já alguma estrada, implica aprofundar sua pesquisa interna de forma cada vez mais surpreendente – de preferência – e não decepcionar o seu público fiel. Sempre tenho em mente a figura daquele artista de circo que mantém vários pratos girando sem parar sobre uma varinha. E a quantidade de pratos só aumenta… Assim, ao idealizar o projeto que gerou o espetáculo PEH QUO DEUX, tive que levar em consideração alguns anseios internos e externos que, nos últimos anos, vêm nos perseguindo. Eu queria muito retomar a vertente mais forte e característica da PeQuod, o seu trabalho com bonecos, fundamental para que o grupo se destacasse no panorama local e nacional. No entanto, o hibridismo, que nos permitiu mesclar atores e bonecos num mesmo grau de importância na cena e que, desde Peer Gynt, encenado em 2006, tem pautado nossos trabalhos, para mim já tinha se esgotado. Por ora. Essa contaminação da cena foi bastante relevante nesta montagem já citada e em A Chegada de Lampião no Inferno, espetáculo de 2009 que também bebeu nessa fonte híbrida. A questão é que tínhamos saído de um trabalho em que as necessidades de produção e da cena foram retirando os bonecos do palco e nos vimos em um híbrido ao extremo, um híbrido ao contrário ou, resumidamente, um espetáculo sem bonecos. Só com atores. Nada contra. But…
Daí o meu desejo de fazer efetivamente uma retomada, mas que houvesse, claro, desafios fortes no caminho. É preciso dizer ainda que o convívio interno de uma companhia implica, por vezes, integrantes que vieram de diferentes processos, de diferentes etapas, alguns com mais calos na mão, outros menos calejados. Com a manutenção de um repertório sempre ativo, vínhamos tendo, já há algum tempo, a sensação de que precisávamos parar e (re)trabalhar a manipulação dos espetáculos com bonecos mais antigos e que já não contavam com o elenco original. O conjunto atual da PeQuod traz a marca dos hibridismos (aos quais sou muito grato) e profissionais que poderiam ir mais além em relação ao manuseio dos bonecos. Precisávamos de um tempo para trabalhar juntos a manipulação. Profundamente. Tentamos várias vezes marcar umas oficinas internas, mas a urgência dos editais, viagens e compromissos diversos sempre jogavam isso para escanteio. Era preciso um compromisso de uma outra ordem. E com uma dose forte de sedução para convencer os companheiros de que a hora havia chegado.
Ainda durante o processo do espetáculo anterior, comecei a rascunhar o projeto que significaria retomar os bonecos, com horas intermináveis na sala de ensaio e outras tantas confeccionando os atores da montagem. No entanto, como disse, era preciso um desafio real para que pudéssemos ter certeza de que estaríamos avançando no nosso trabalho e não repetindo o que já foi feito. Assim PEH QUO DEUX começou a ser criado. A proposta era sair do Teatro, do drama, e migrar para uma região em que o movimento humano fosse o eixo: a Dança.
Explico o “movimento humano” do parágrafo anterior. A PeQuod acabou se especializando em uma técnica de manipulação conhecida como manipulação direta, em que os bonecos não possuem fios nem varas e são manipulados por duas ou três pessoas simultaneamente. Um líder se responsabiliza pela cabeça e uma das mãos, outro pela outra mão e quadril e uma terceira pelos pés. É uma manipulação compartilhada, em que a harmonia e a sincronia dos movimentos humanos resultam numa proximidade com a movimentação feita por uma pessoa. Ou seja, é uma técnica absolutamente antropomórfica e que se utiliza dessa “reprodução” de padrões de movimentação humana como principal característica. Oriunda do bunraku japonês e adaptada pelos europeus, essa técnica sempre me atraiu por sua organicidade, complexidade e, quando bem realizada, beleza de resultados. Logo, pode-se deduzir que a figura antropomórfica é hegemônica nessa seara e que, portanto, o estudo da movimentação humana sempre esteve por perto em todos os nossos processos. De Muybridge a Laban, nossos estudos foram se aprofundando com o passar dos anos, permitindo uma rapidez de resultados. Porém, como disse acima, nem todos os atuais membros da PeQuod acompanharam essas etapas. PEH QUO DEUX também serviria como esse “momento de equiparação técnica” do elenco. Com direito ao convívio de alguns mestres da Dança contemporânea pelo processo adentro.
A ideia central do espetáculo era trazer nomes fortes da Dança contemporânea para dentro da PeQuod e criar coreografias a partir desse convívio. Havia também, claro, necessidades minhas de aprendizagem que vinham desde o entendimento de montagem de uma coreografia, passavam pela compreensão de como cada coreógrafo iria lidar com uma fonte literária (Calvino) e transformá-la em linguagem visual, até – e sobretudo – pelo fato de trabalhar com corpos que possuem características sobre-humanas (os bonecos). Como a compreensão dessa ferramenta seria absorvida por cada um deles?
Foram convidados Regina Miranda, Paula Nestorov, Cristina Moura, Marcia Rubin e Bruno Cezario para criar quadros com bonecos. A ideia era que fossem pas de deux, já que tinha previsto seis atores no elenco (três pessoas para cada boneco). O risco dessa empreitada estava estabelecido desde o início do projeto. Pela primeira vez, não saberíamos que bonecos iríamos fazer e tudo isso seria descoberto ao longo do processo, que durou sete meses. Começamos do zero, sem saber o que aconteceria, o que criaríamos juntos e aonde o olhar de cada coreógrafo miraria. Para amenizar e facilitar as coisas, resgatei um livro que me é muito familiar e muito querido: Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Ítalo Calvino, que caiu como uma luva para cada convidado. Numa leitura prévia com o elenco, e ainda sem a presença dos coreógrafos, percebemos as inúmeras proximidades de cada capítulo com cada um deles. Bem, há uma questão de memória afetiva, absolutamente subjetiva e particular minha, já que vi alguns dos trabalhos memoráveis que Regina Miranda e Paula Nestorov realizaram nos anos 1990 e que jamais esqueci. Quem acompanhou a saga de Dante pelo MAM, na inesquecível tradução cênica de A Divina Comédia, orquestrada por Regina Miranda, sabe do que estou falando. Ou quem viu os cruzamentos bem articulados de Paula Nestorov em Chegança, também nos idos dos 90. Portanto, cada capítulo se apresentava muito claramente à sua destinação. Assim, por exemplo, fazia todo sentido destinar o capítulo da Visibilidade para Regina Miranda, já que este resgata A Divina Comédia para falar na construção do imaginário do inferno, purgatório e paraíso a partir de Dante.
Antes da chegada dos coreógrafos à sala de ensaio, reservamos um tempo para iniciar um trabalho conjunto, que visava a retomar nossos procedimentos de manipulação de bonecos, especificamente a manipulação direta, e iniciar nossa aproximação com a dança. Isso se deu através de uma seleção de vídeos de alguns espetáculos de dança, que buscamos reproduzir com bonecos. Ali mesmo se deu a percepção mais interessante desse processo de trabalho: o desmonte de procedimentos de manipulação que sempre me acompanharam. A mais visível e instigante de todas elas, sobre a qual posso discorrer sem me alongar demasiadamente, foi a observação de uma maior autonomia das partes do corpo dos bonecos, em detrimento da liderança que a cabeça, outrora, exercia. O fato de novos e diferentes vetores de movimento agirem com maior ênfase foi a primeira percepção de que havia verdadeiramente um novo continente a ser explorado, em termos de condutas de manipulação. Nas entrelinhas, isso significava também uma maior concentração do elenco, já que os vetores de comando poderiam circular por todo o objeto manipulado. Outro procedimento adotado nessa fase foi trabalhar com os nossos próprios corpos. Parece óbvio, mas não é. Revisitamos alguns exercícios das nossas oficinas, em que buscamos valorizar e atentar para as questões de equilíbrio, eixo, força, impulso e adequação do peso do corpo que estão envolvidas em cada ato corporal humano. Como caminhar, por exemplo. Nessa aproximação com o ferramental coreográfico, foi de suma importância a presença de Raquel Botafogo no elenco, já que, vinda da Escola Angel Viana, ela nos deu o suporte necessário para que esse acercamento se desse com conhecimento de causa e procedência.
O contato com os coreógrafos se deu, inicialmente, através de telefonemas e e-mails, que convergiram para reuniões individuais, onde eu e a companhia éramos apresentados, bem como os propósitos do projeto. Para esses encontros, eu levava comigo um dogma (impresso, mas também enviado por e-mail depois), que foi produzido em conjunto com o elenco e que cabe ser reproduzido aqui, para o entendimento das nossas necessidades e possibilidades na encenação. Precisávamos estar em conjunto, em comunhão com o projeto como um todo e, portanto, tínhamos que demarcar alguns limites para o nosso produto final. Eis o nosso dogma:
1. As coreografias devem ter duração de 8 a 10 minutos;
2. O espaço cênico será único para todas as coreografias;
3. O pas de deux deve ser preservado, mas o par não precisa ser necessariamente formado por figuras antropomórficas – qualquer dupla pode formar um par;
4. A coreografia deve, em alguma instância, ultrapassar os limites anatômicos humanos. A fragmentação e a multiplicação dos corpos são bem vindas;
5. Algumas leis da física podem ser abolidas ou alteradas, como, por exemplo, a gravidade e lei de ação/reação;
6. A música deve ser preexistente, escolhida pelo coreógrafo e, de preferência, instrumental. Sugestões: clássica, jazz, eletrônica, world music, rock, música brasileira;
7. A metalinguagem é muito bem-vinda;
8. O livro Seis Propostas para o Novo Milênio, de Ítalo Calvino, deveria servir de estímulo poético. Nossa sugestão de divisão dos capítulos entre os coreógrafos:
a. LEVEZA – Marcia Rubin
b. RAPIDEZ – Bruno Cezario
c. EXATIDÃO – Cristina Moura
d. VISIBILIDADE – Regina Miranda
e. MULTIPLICIDADE – Paula Nestorov.
Havia, claro, muito receio de nossa parte diante do nosso próprio projeto. Esse cruzamento com a dança poderia nos levar a uma obra insípida? A virtuose de um corpo em movimento, que, por consequência, imprime na plateia certo tipo de emoção, poderia ser reproduzida pelos bonecos? Queríamos mesmo a virtuose? Entendíamos que havia um corpo que apresentava a coreografia e, dentro desse mesmo corpo, um corpo que “sofre” a coreografia, entendendo aí características fisiológicas do corpo humano, que, durante a execução de uma obra de dança, se altera, sua, respira de uma outra forma… Vive, enfim. Isso, de antemão, estava fora de questão. Nosso corpo de baile era de espuma, madeira, tecido e fibra de vidro. No entanto, é impossível não considerar essa parcela viva e expressiva do conjunto do espetáculo. Ou seja, “sofrer” a coreografia é também um componente que está somado àquela expressão artística. Penso eu. Será que estávamos nos encaminhando para um equívoco? Ou para algo que a complexidade do espectador contemporâneo não absorveria bem? Soaria bobo? Pretensioso? Pueril? André Gracindo, outro ator do elenco, trouxe alguma luz a partir de Kleist, que reproduzo abaixo.
“E qual vantagem teria tal boneco diante dos bailarinos vivos?
A vantagem? Antes de mais nada, uma negativa, meu caro amigo, ou seja, que ele nunca será um bailarino afetado. – Pois a afetação aparece, como o senhor sabe, quando a alma (vis motrix) encontra-se em qualquer outro ponto que não seja o centro de gravidade do movimento. E o operador simplesmente não tem em seu poder nenhum outro ponto, utilizando o arame ou o cordão: assim todos os membros são, como deveriam ser, pesos mortos, meros pêndulos, e seguem simplesmente a lei da gravidade; um dom valioso, que se procura em vão na maior parte dos nossos bailarinos. (…)
Neste sentido, falou, tais bonecos têm a vantagem de ser antigravitacionais. Sobre a inércia da matéria, de todas as propriedades a que mais se opõe à dança, eles não sabem nada: porque a força que os suspende no ar é maior do que aquela que os prende à terra. O que não daria a nossa boa G… para ser sessenta libras mais leve, ou para que um peso desta grandeza viesse ajudá-la em seus entrechats e piruetas? Os bonecos precisam do solo apenas para tocá-lo, como os elfos, e para reavivar os impulsos dos membros por meio de uma interrupção instantânea; nós precisamos dele para descansar, e para nos restabelecer dos cansaços da dança: um momento que evidentemente não é, ele mesmo, de dança, e com o qual não se faz nada além de obrigá-lo a desaparecer o quanto for possível.” (KLEIST, 2005, p.20)
Ajudou. Mas havia coisas que só a sala de ensaio poderia responder.
Os ensaios, os processos
Após esse momento interno, iniciamos, na segunda metade de junho de 2013, os encontros com os coreógrafos na sala de ensaio. Começamos com a Paula, que tinha maior disponibilidade naquele momento. Essa questão foi bastante pontual nesse processo, pois lidamos com cinco profissionais de dança que possuem agendas distintas de trabalho, o que nos obrigou a manter uma intensa negociação das nossas agendas, para que nos adequássemos a uma possibilidade de encontro. Repito, eram cinco coreógrafos, cinco agendas… Ter iniciado o processo com a Paula, se não foi um presente dos Deuses, foi algo bem próximo a isto. Deu-nos vocabulário, tempo para racionalizar de uma outra forma os corpos e, dentro de um aspecto cronológico do processo como um todo, preparo corporal nosso para o que poderia vir adiante. Obviamente, estávamos numa via de mão dupla, Paula e nenhum dos outros coreógrafos convidados nunca tinham estado com aquele grupo de pessoas, nunca tinham coreografado para bonecos e sua proximidade com a linguagem do Teatro de Animação era pouca. E foi bonito ver não somente ela, como também os outros quatro convidados, se acercando dos rudimentos da manipulação de bonecos e, ali mesmo, na sala, abandonando ideias preconcebidas e aceitando a troca proposta por esse trabalho. Paula trabalha atualmente em um projeto coreográfico a partir de desenhos que, sequenciados por um programa de computador agregado a uma música, chegam a um conceito bastante próximo do desenho animado, ou seja, algo muito próximo da nossa “praia”. Paula desejou levar para os bonecos um trabalho já iniciado no computador, mas percebeu que tal transposição exigia adaptações, opções e dinâmicas muito diferentes do que imaginava a priori. Esse momento de alinhamento com a linguagem foi bastante interessante nos cinco convidados. O momento de experimentação do que era possível realizar com os protótipos, até o fato de todos eles terem ficado com alguns bonecos em suas casas, experimentando solitariamente a manipulação, foi um período de extrema fertilidade de ideias, que se traçavam nas discussões teóricas de cada capítulo do Calvino e que abriam para outras leituras. O processo com a Paula foi muito interessante, pois trabalhou nas minúcias de uma ideia e criou partituras corporais, não exatamente presas a uma música. Esta entrou depois e foi composta pela própria coreógrafa ao piano. Assim, o seu processo, que, posso dizer, foi denso no primeiro mês de trabalho, foi pulverizado pelo tempo todo do projeto e encerrado somente nos dias que antecederam a estreia. No entanto, o zelo e o primor pelo trabalho deu segurança para o elenco, mesmo com tardias alterações. Num instante, tudo estava encadeado. Como um ato de subversão ao dogma, Paula decidiu, meses antes da estreia, cindir seu quadro. Não seriam dez minutos blocados, mas teriam três partes que se complementariam numa ideia final. Essa cisão me ajudou muitíssimo a resolver determinadas questões da ordenação das cenas e na montagem final do espetáculo. Falarei mais adiante sobre isso.
Um pouco depois do início do processo da Paula, Bruno Cezario iniciou seu processo conosco. Veio muito seguro, com ideias muito bem pensadas e com um desafio gigantesco a todos nós. Desde o início nos pareceu claro que, no quadro que Bruno criaria, o elenco também estaria envolvido com a cena, e assim foi. Cabe lembrar que tanto Bruno quanto Paula, e Marcia também, acharam interessante os bonecos e a técnica da manipulação direta para trabalhar em seus quadros. Paula e Marcia aceitaram o balcão, suporte necessário para a movimentação dos bonecos e que serve com uma ideia de palco, diferentemente de Bruno, que preferiu ganhar a totalidade do espaço cênico e ter o piso do palco dos atores como suporte. No entanto, o grande desafio (o maior, porque havia outros) foi a natureza do material proposto para a dupla do seu quadro. Tendo ficado com o capítulo intitulado RAPIDEZ, Bruno pensou em dois seres feitos de… Gelo. Que se decompunham ao longo da encenação, acentuando uma ideia de volatilidade dos sentimentos, das relações, da vida. Agarramos essa ideia desde a primeira hora e nos dedicamos intensamente para que ela fosse realizada. Saberíamos que a produção seria tensa, já que teríamos que ter extras destes bonecos, um freezer no camarim para a vida toda deste projeto e uma atenção redobrada em termos de infraestrutura como um todo. Seriam dois bonecos por dia! Que, sim, derreteriam em cena a cada apresentação. Durante todo o processo de criação, idealizamos as formas desses bonecos, estudamos modos novos para as articulações dos membros, testamos inúmeros materiais, pensamos em dezenas de saídas. Infelizmente, a poucas semanas da estreia, fomos obrigados a abortar a ideia – pelo menos por enquanto –, pois precisávamos finalizar o quadro, o espetáculo, enfim, tínhamos que estrear. O elenco precisava de uma dupla definitiva para ensaiar. Foi doloroso tomar essa decisão. Mas, não desisti totalmente da ideia. Nem o Bruno.
A terceira coreógrafa a começar o processo foi Regina Miranda, lá por meados de setembro de 2013. Foram momentos prazerosos de muita leitura, muita conversa, muitas ideias e muita costura com a sua própria trajetória artística. Isto se deve, sobretudo, ao fato de Regina partir efetivamente de A Divina Comédia, de Dante, e de sua transcrição coreográfica feita nos anos 1990, para repensar algumas ideias de Calvino sobre o mesmo tema. E com isto criar a impactante cena sobre o tema da VISIBILIDADE, vista em PEH QUO DEUX. Seu processo de trabalho foi bastante interessante, por ter sido totalmente diferente do dos outros quatro convidados. Regina mapeou milimetricamente a música escolhida – aos segundos – e com ela desenhou inúmeras sequências de movimentos a serem executados pelo elenco. Tudo isto feito fora da sala de ensaio – ela chegava com todas as trajetórias arquitetadas.
Regina, no entanto, foi hábil em rejeitar algumas condições do dogma e nos lançar numa pesquisa à qual há muito tempo estávamos para nos lançar. Ela necessitava de um boneco por manipulador e, sendo assim, a ideia de permanecermos na manipulação direta tornara-se impossível. Era preciso uma técnica que atendesse às necessidades dramatúrgicas de Regina e que desse, a cada ator, autonomia de manipulação do seu personagem. Foi aí que tirei da manga os fascinantes bonecos japoneses kuruma ningyo, manipulados por uma única pessoa. Trata-se de um boneco de aproximadamente 70 a 80 centímetros, cujos pés são presos aos do manipulador. Este fica sentado em um banquinho baixo com rodinhas, que proporciona o deslocamento do boneco. Com uma mão, o manipulador sustenta o corpo do boneco, na região do tronco, de onde sai o acionamento da cabeça. Com a outra mão, ele aciona as duas mãos do boneco através de controles distintos. Lançar-se em um estudo de uma nova técnica de manipulação no meio de um processo de montagem é uma decisão de altíssimo risco. Mas a gente precisava entender que a hora era aquela. Inúmeros percalços, problemas, tombos nos levaram a chegar à cena idealizada por Regina com o prazer de uma nova descoberta e apresentando uma nova técnica por aqui. Eu, Regina e o elenco estávamos todos em pé de igualdade, aprendendo algo totalmente novo para nós. Creio que devem ter existido algumas experimentações com esta técnica, e eu mesmo já havia experimentado essa técnica em um espetáculo em que trabalhei como consultor, mas posso dizer que a PeQuod talvez tenha sido uma das primeiras companhias brasileiras a se dedicar a ela.
Cristina Moura e Marcia Rubin foram as duas últimas a iniciar o processo com a PeQuod, já em outubro do ano passado. Cristina trouxe contribuições interessantíssimas sobre o seu processo de criação. Mais que isso, ela trouxe uma proposta de trabalharmos com uma escala de boneco com a qual nunca havíamos trabalhado, obrigando-nos a readequar um novo olhar (mais um!) sobre o nosso objeto a ser manipulado. Também Cristina não se afastou do antropomórfico, assim como os outros convidados, e propôs a ideia de um personagem que transitaria pelo espaço utilizando-se de alguns princípios da manipulação direta, mas com um boneco de um metro e meio de altura. Isso significaria novas ideias de compartilhamento da manipulação, bem como – provocação de Cristina – maneiras novas e não usuais de o boneco passar pelas mãos do elenco. Foi um processo bem difícil, pela complexidade inicial proposta, e que, no entanto, escondia um potencial riquíssimo de investigação. Muito interessante ver quatro, cinco, seis pessoas sobre o mesmo boneco e este adquirir uma movimentação que, ao mesmo tempo, se compartimentava ainda mais, ao passo que trazia em si, pela própria natureza do resultado da sua movimentação, uma beleza estranha de movimentos. Um ambiente verdadeiramente novo. Criar um protótipo à altura da cena e deixá-lo leve, apesar do seu tamanho, foram algumas das pedreiras deste quadro, que se pautava pelo tema da EXATIDÃO. E muitas vezes era extremamente frustrante não chegar ao lugar desejado, devido às impossibilidades de confecção existentes no projeto, que dificultaram bastante a execução desse quadro, assim como o da Regina – ambos por estarmos descobrindo novos tipos de técnicas, novas questões que cada uma traz, e por surpresas que sempre o destino espalha pelo meio do caminho. O elemento par daquela figura gordinha que confeccionamos demorou a aparecer. Primeiro, testou-se uma relação com tecidos, que adquiriam formas diversas e se relacionavam com o “gordinho”. Abrimos mão desse caminho por motivos técnicos. Só bem mais tarde apareceu o seu complementar, saído do próprio acervo da PeQuod para ganhar a cena.
Marcia Rubin praticamente fechou o processo de trabalho, escolhendo o campo seguro da manipulação direta para ali colocar suas observações primeiras sobre o trabalho com bonecos. Desde o início, o que mais a encantava era a inércia do boneco, a sua total entrega à gravidade, sua não rejeição à queda. Essa falta de apreço à vida, existente em cada boneco – dado que é um objeto morto –, deu a Marcia as primeiras tintas sobre o que ela poderia falar a respeito da LEVEZA. E ela destrinchou habilmente os variados significados que a palavra encerra.
Dramaturgias
Usar um livro teórico sobre literatura, elemento não propriamente dramático, como base de uma encenação que também não se propunha a ser narrativa foi um caminho interessante para levantamento das cenas que compunham PEH QUO DEUX. Se os eixos não eram propriamente herméticos, os meandros da criação de cada coreógrafo nos ensinaram procedimentos outros, de novos ângulos, sobretudo ao meu trabalho de direção dentro de uma companhia. Não digo que meu olhar esteja viciado, mas observar de perto cinco processos radicalmente diferentes foi-me absolutamente enriquecedor, ao entender sob que diversos aspectos um conceito se transforma em linguagem corporal. Marcia Rubin pegou a questão da LEVEZA como um aspecto refinado do peso. Como uma virtude do peso. Nesse ponto, Marcia trouxe um quadro em que dois homens bebem num bar, em algum lugar dos anos 1970, sendo que um deles está afogando suas mágoas, enquanto o outro tenta consolá-lo. Uma jukebox serve de pretexto para eles dançarem e se deixarem levar pelas sensações que a música lhes traz. Entre quedas, desmaios e flutuações, Marcia faz do seu quadro o momento de maior quantidade de risos de PEH QUO DEUX e, sábia, conecta o riso como um elemento intrínseco do ser humano. A graça e a leveza estão desde sempre de mãos dadas, sabe-se. Nessa noitada, ao som de Elvis Costello, dois homens riem, dançam e entendem que é preciso ter leveza em tudo que se faz. Mesmo quando se sofre.
Meu trabalho em PEH QUO DEUX, entre tantos, foi de organizar o macro e servir de suporte às questões próprias do Teatro de Animação, sobre as quais os coreógrafos não teriam conhecimento ou segurança para decidir. No mais, deixei-os livres para criar as situações e os personagens dos pas de deux, com total autonomia. Depois, eu tangenciava as margens. Portanto, eu estava ali para dar uma ordem final às cenas, pensando em um eixo dramático claro que – temor dos temores – me afastasse de um espetáculo de quadros estanques. Em casa, longe de todos, eu segurava minha ansiedade por estar dentro de um projeto cuja junção final eu não tinha nenhuma ideia se daria certo. Era o risco dos riscos. Estou me jogando, tirem a rede de proteção.
Coube à sorte ou ao destino ou a Paula Nestorov ou a todos juntos o fato de ela tripartir o seu tempo e me dar um início, um meio – a cena em si – e um encerramento para o espetáculo. Explico: Paula veio com uma ideia de pensar o espaço teatral povoado pelas pessoas que frequentam o palco não exatamente no momento do espetáculo, mas sim no depois. Trouxe a ideia das pessoas que cuidam dos teatros, dos palcos, que limpam o espaço cênico e que, num momento de solidão, de total ausência de público, iniciariam o seu “show” particular. Algo só delas. E algo absolutamente incrível. A MULTIPLICIDADE de Paula estaria nessa dupla de serventes absolutamente iguais, não gêmeas, mas uma dupla da outra. E estaria também na diversidade de vozes colocadas na trilha sonora do quadro, que dialoga não somente com o que está em cena, como também com alguns dos outros quadros. É a própria Paula quem recita os versos de Rilke em alemão e que ilustra literalmente o que está acontecendo no palco:
“Estamos bem no começo, veja você.
Como antes de tudo. Com
mil e um sonhos atrás de nós e
sem nos mover (…)”
Paralelamente à sua declamação do poema, Paula enxertou uma gravação feita para a BBC do poema de John Milton, O Paraíso Perdido, que aqui abria um diálogo com a cena de Regina Miranda, assim como prenunciava elementos existentes no quadro desta. Mantê-los no original, e assim criar uma massa sonora “confusa”, era um caminho que mirava a MULTIPLICIDADE pretendida. Munidas de baldes e vassouras, a dupla trafegava num espaço em que o nonsense das situações expostas reafirmava a natureza primeira dos corpos ali à disposição. Sem abandonar seu traço minimalista – um dos aspectos mais marcantes de seus trabalhos coreográficos, Paula imprimiu uma história que percorreria a totalidade do espetáculo. De um espetáculo que também era múltiplo.
Coube ao Bruno ficar com o final do espetáculo. E não foi, a princípio, por nenhuma predileção especial. Por motivos absolutamente técnicos, não teríamos como conviver em um palco todo empoçado de água. Lembram-se que os bonecos de gelo derreteriam ao longo da sua execução? Obrigatoriamente, o quadro da RAPIDEZ foi jogado para o final do espetáculo, me obrigando mais uma vez a agradecer aos Deuses e a entender as razões para que ele estivesse ali. Daí veio naturalmente o encerramento do espetáculo, quando repentinamente reaparecem as serventes do quadro da Paula, que, depois de analisar bem o estado do palco ao final do quadro do Bruno, olham-se mudas pensando no trabalho que terão para enxugá-lo.
“Estamos bem no começo, veja você.
Como antes de tudo.”
A VISIBILIDADE proposta por Regina Miranda saiu das páginas de A Divina Comédia e caiu nas telas dos jogos de computador. Em ambos a sede pelo que não se vê, a sede pelo que se deseja ver, a sede pelo que não está visível. Ou pelo excesso de. Assim Regina compôs uma pequena fábula sobre o embrutecimento do olhar. Lúcifer vira um mestre de cerimônias de um jogo que se revela aos poucos. Num quadro todo falado em inglês, já que estamos dentro de um game e usando imagens de jogos existentes que ela própria editou juntamente com a música, Regina nos dá as chaves de ignição da grande linha ascendente que é este espetáculo, que se propõe a sair da vulgaridade e da brutalidade das imagens já vistas até a leveza e fluidez existente nos últimos quadros do espetáculo. Uma linha crescente que passa ainda pelo estranhamento (Cristina) e pelo improvável (Paula) e atinge as esferas elevadas do humor (Marcia) e da paixão (Bruno). Pode ser uma leitura boba, rasa, redutora. Concordo que nem tudo pode ser explicado. Mas, para a minha saúde mental, costurei as coisas nesse sentido.
Sabe-se que a sexta conferência que Calvino faria no ciclo de palestras que gerou o livro Seis Propostas para o Próximo Milênio seria sobre o conceito da CONSISTÊNCIA. Fico me perguntando sobre que bases de discussão ele desfibrilaria esse tema. Pergunto-me também se a junção dos outros cinco temas não tenha nos trazido para perto desse capítulo não escrito. Vendo agora o espetáculo pronto, percebo mais claramente o ponto em que estamos. Nesse “lance de dados”, sendo os outros cinco lados já vistos por nós, impressiona-me a margem a que chegamos. Trazer as questões atuais da dança contemporânea para a nossa discussão e nosso oficio não apenas nos deu novos horizontes, como também nos abriu um flanco de novas indagações…
Referências bibliográficas:
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
KLEIST, Heinrich Von. Sobre o teatro e marionetes. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
Programa do espetáculo PEH QUO DEUX, Rio de Janeiro, 2014.
Recomendações de leitura:
MACHADO, Renato. A luz montagem. Móin-Móin (UDESC), v. 05, 2008.
VELLINHO, Miguel. Ação! Aproximações entre a linguagem cinematográfica e o teatro de animação. Móin-Móin (UDESC), v. 01, 2005.
_________ Como el cine entró en mi teatro. Fantoche – Arte de los títeres (UNIMA Espanha), v. 1, 2007.
_________ Encenando Peer Gynt – apontamentos sobre a montagem da Cia PeQuod. In: Henrik Ibsen no Brasil. Karl Erik Schollhammer. (Org.). Rio de Janeiro: Editora PUC Rio e Sete Letras, 2008.
Informações sobre a Cia PeQuod: http://www.pequod.com.br/
Miguel Vellinho é autor e diretor teatral. Fundou a Cia PeQuod – Teatro de Animação em 1999 e desde então tem dirigido todas as suas montagens. Leciona Teatro de Formas Animadas e Teatro Infanto-juvenil no Curso de Licenciatura em Teatro na UNIRIO.
Vol. VII, nº 61, março de 2014