O enigma do real

Crítica da peça Garras curvas e um canto sedutor de Daniele Avila Small

27 de agosto de 2013 Críticas
Foto: Tomás Ribas.

O espetáculo Garras curvas e um canto sedutor, texto de Daniele Avila Small e direção Felipe Vidal, que esteve em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, trouxe ao tablado a construção de um espetáculo realista, em que o tratamento do real parte de uma compreensão filosófica diversa da comumente associada às obras que se emaranham na problemática do realismo.

Grandes trabalhos artísticos se construíram e se constroem em relação direta com o real, ainda que tenham a consciência de que esse é sempre uma convenção de linguagem, isto é, um modo de operação da mímesis com os códigos ou com as leituras dos mesmos no mundo concreto.

O entendimento de que a realidade social se estrutura a partir de uma lógica de classes pode ser visto em muitas peças denominadas como pertencentes ao realismo social. E obras como Eles não usam black-tie e Botequim de Gianfrancesco Guarnieri se associam a esta vertente, visto que nelas se assiste à lógica social opressiva das classes dentro do cotidiano de personagens desprivilegiados social e politicamente. Logo, há uma matriz teórica de fundo marxista que edifica o modo de representação destes dramas, apresentando a leitura da realidade a partir deste específico prisma econômico-social e político.

Há outro caminho diante do real chamado de psicológico. Nele apreendemos que no mundo do sujeito há uma névoa oculta conhecida como inconsciente. Este ocultamento vai explicar a repressão emocional das personagens. Em cada sujeito existe um enorme desconhecimento de si mesmo e do real. E nesta fenda habita o imaginário que anima a realidade por meio de fantasias, neuroses, psicoses, etc. Deriva dessa compreensão freudiana a nomeação de Sábato Magaldi para Vestido de noiva de Nelson Rodrigues como uma peça psicológica, visto que o crítico observava nesta dramaturgia o esparramar subjetivo de Alaíde nos planos desenhados pelo palco.

Os nomes (realismo social, peça psicológica, etc) sempre são problemáticos. Eles trazem certa redução de sentido. De fato, essas categorias não dão conta das peças como um todo. Contudo, desprezá-las, sem notar o que elas iluminam às obras, é, ao contrário de uma redução de sentido, um equívoco. Há nas categorias o esforço crítico de configurar a realidade de obras artísticas do passado. E este esforço sugere vias de entendimento pertinentes.

Nos dois caminhos sugeridos, as obras se inclinam para direções antagônicas diante do real. No primeiro exemplo, o real passa a ser visível através de uma objetiva percepção do mundo econômico das classes, enquanto, no segundo, ele passa a ser quase inviabilizado, uma vez que se tornou materialidade filtrada pelo sujeito. Os dois movimentos (o da afirmação de um mundo objetivo e o da desconfiança da realidade pelo sujeito) não impossibilitam a existência de um lirismo nos personagens de Eles não usam Black-tie, e tampouco excluem a presença de um rastro factual sensível acerca da realidade social nas obras de Nelson Rodrigues. Mas cabe ressaltar que há, certamente, um modo de construção de sentido acerca do real que se distingue em cada uma das obras, e esses caminhos poéticos formulam uma lógica/um olhar muito peculiar.

O espetáculo Garras curvas e um canto sedutor segue outro caminho diante dessa questão. O real não está sendo visto pela forte lógica marxista e nem pela opção de um ocultamento dentro do sujeito. Ele é uma metáfora dobrada sobre si mesma acerca da opacidade da linguagem.

Baseado no conto Catedral de Raymond Carver, a ação da peça se desenrola a partir da chegada de um homem cego, Robert (Rafael Sieg), na casa de Marina (Angela Câmara) e João (Leandro Daniel Colombo). Robert perdeu recentemente a sua esposa, e o casal aguarda a sua visita. Antes mesmo da chegada de Robert, o esposo de Marina demonstra o seu descontentamento com a vinda do amigo da esposa. Robert e Marina trocaram correspondências de fitas-cassetes há algum tempo. E o público não sabe precisar se o que incomoda João é a visita de um desconhecido ou a de um suposto amor antigo de sua mulher.

Ao chegar, Robert é recebido com gentileza pelo casal. Mas a elegância no trato não encobre a desconfiança de João acerca da cegueira do desconhecido, que se mistura ao seu ciúme contido diante da mulher amada. Marina dança com o amigo, menciona, em tom de brincadeira, a possibilidade deles fazerem ménage à trois, contudo, no espetáculo, a triangulação amorosa é apenas sugerida. Há realmente uma relação íntima entre Marina e Robert? Ou a amizade dos dois ganhou uma tonalidade incomum? Marina escreve uma poesia para Robert, mas rasga. E nem Robert e nem o público toma conhecimento do conteúdo do poema.

Num determinado momento, a luz do apartamento se apaga, e, a partir desta hora, João, amedrontado com a escuridão, busca apoio em Robert, acostumado a caminhar no breu. Nessa hora, João aprende a caminhar no escuro, no desconhecimento, e algo dentro de seu interior se transforma. Essa é a parábola singela de Garras curvas e um canto sedutor.

A transformação se dá no interior da personagem, que, de algum modo, abre mão de seu ceticismo para aceitar o ponto cego do afeto de um desconhecido. Deste modo, a peça se constrói nesse cruzamento entre o amor indecifrável de Marina e Robert, e a transformação interna de João. Mas a mutação do esposo se dá na dinâmica do afeto, visto que o mesmo se abre para a escuridão trazida pelo desconhecido, permitindo-se experimentar esse mistério.

Sem o uso da narração em primeira pessoa como no conto de Raymond Carver, sendo construída por diálogos, ainda assim, a estrutura da peça faz menção a atributos do conto, entendido como ficção curta. Em seu livro Formas breves, nas teses sobre o conto, Ricardo Piglia diz que o mesmo sempre narra duas histórias, e que uma delas traz um enigma. Neste sentido, Garras curvas e um canto sedutor se insere na proposta de se abrir nessa dinâmica de parábola, na qual se nota um plano simples dos acontecimentos, intermediado por outro, metafórico. Não se trata do modelo da peça barroca, em que duas ações se seguem por espelhamentos, e sim da apresentação de uma dualidade, na qual a realidade da ficção se vê espelhada como código, enigma e metáfora – instabilizando a visão geral dos acontecimentos.

No plano dos acontecimentos, assistimos a uma peça que se movimenta por meio de uma unidade de espaço, ação e tempo, pois o único fato que se dá é a visita de um amigo cego. No plano da metáfora, o simples acontecimento dramático confirma o aprendizado de João, trazido pela parábola. Assim sendo, o acontecimento é reflexivo, pois ele está preso à unidade de ação, porque é no reagir de João à visita de Robert que a metáfora se aciona.

A estruturação da peça é proposital. Ela cita a unidade de tempo, ação e espaço de Édipo Rei de Sófocles. E a obra refaz (ao inverso) a ontologia do herói tirano, visto que esse descobre a si mesmo ao buscar o assassino do pai. Remetendo ao enigma do mito grego, Garras curvas… alude diretamente à pretensão edipiana de desvendar o enigma esfíngico. Por isso, na peça, João resolve abrir mão de seu ceticismo e aceitar a opacidade do enigma. Trata-se, portanto, de uma ontologia invertida. Não se busca a iluminação sobre si mesmo e sobre o outro, mas se aceita a sombra dos acontecimentos. E essa aceitação produz em João uma enorme alegria.

Nota-se em Garras curvas e um canto sedutor uma crise interna das unidades (espaço, tempo, ação) na medida que expõe, no final, o quanto o realismo e a matriz dialógica da peça serviu de pré-texto discursivo para a metáfora. Logo, o realismo é como uma costura interna de uma roupa, que, ao ser virada ao avesso, se apresenta como pacto simbólico. E a peça é um pouco isso: o jogo de mostrar um organismo coeso até o momento de sua costura metafórica, cabendo ao espectador operar a desconstrução.

Foto: Tomas Ribas.

A encenação de Felipe Vidal é discreta. E de certo modo a timidez assumida segue o leitmotiv do conto, sua refinada e displicente aparência de narrativa menor. O diretor consegue um feito raro nos teatros de hoje: os três atores respiram o mesmo ar, isto é, constroem, na quarta-parede do espetáculo, um jogo de contracenação instigante, seguindo um ritmo nada óbvio, em que alguns momentos se estendem (como a demorada leitura do conto de Edgar Allan Poe) e outros surgem no palco mais picotados, assim como as cena da dança de Robert e Marina e as idas e vindas do casal para o interior da casa.

A atuação e a trilha sonora apresentam estes blocos de tempo, que, por serem assimétricos, potencializam a pesquisa acerca do real como convenção. O mundo cotidiano está repleto de tempos e de variações sobre o mesmo. Neste mundo histórico (e das histórias), outro sentido de tempo, diverso do da física, surge, como nos mostra Paul Ricoeur. Há, infelizmente, no meio teatral, a crença de que o ritmo do espetáculo de teatro deve ser o mesmo do início ao fim, seguindo uma mesma batida. Ou seja, repete-se a estrutura de um ritmo fixo de estilos musicais pouco trabalhados. Parece que ainda não se pensou na variedade rítmica do samba e do Jazz, como exigência sensível ao teatro.

O ator Leandro Daniel Colombo (João) construiu o seu personagem como um homem comum imerso no tédio do cotidiano e no medo de ser invadido em seu lar. Ângela Câmara (Marina) apresenta uma personagem de vida interior rica, mostrando o quanto uma mulher pacata e comum pode guardar mistérios insondáveis, não sendo privilégio de tipos excêntricos. E Rafael Sieg (Robert) faz uma composição ambígua, pois seu personagem é, ao mesmo tempo, um cego sedutor, com bastante capacidade motora de deslocamento no espaço, e a projeção do medo de João.

Caso o nome ‘peça bem feita’ não fosse compreendido hoje como um chavão de espetáculos que, sem qualquer reflexão, pesquisa e trabalho no detalhamento da estrutura, reproduzem o ritmo das massas de modo acrítico, seria possível dizer que Garras curvas e um canto sedutor se trata de uma peça bem feita. Isto porque todos os elementos estão, na medida do possível, conscientes de sua proposta de sentido. Eles foram estudados e trabalhados, sendo aprimorados constantemente. Mas apesar de ser um mecanismo orgânico e bem costurado, Garras curvas e um canto sedutor nos mostraria, como mostra, a sua condição simbólica e discursiva. Há, infelizmente, outras obras em que a desculpa do malfeito e do inacabamento se tornou marketing inconsciente, em busca de valor crítico. Felizmente, esse não é o caminho de Garras curvas e um canto sedutor.

João Cícero Bezerra é crítico teatral, dramaturgo e teórico de arte, formado em Teoria do Teatro, mestre em Artes Cênicas e doutorando em História Social da Cultura.

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