Ideologias na primeira pessoa

Crítica da peça Rock’n’Roll

10 de maio de 2009 Críticas
Atores: Thiago Fragoso e Otávio Augusto. Foto: Chico Lima.

O espetáculo Rock’n’roll encena o texto de Tom Stoppard, que abarca de forma lírica, ou seja, por meio de diversas subjetividades, a invasão soviética à Tchecoslováquia , cobrindo um período que vai de 1968 a 1990 desde a Primavera de Praga até Revolução de Veludo. O painel humano da história está tensionado por duas personagens emblemáticas, o jovem idealista Jan e o velho professor marxista Max, que, ao longo da peça, têm suas vidas desconstruídas pela força do contexto social assolado pela batalha travada entre questões da razão e da sensibilidade.

O texto de Stoppard é composto por uma gama de referências que não ilustram, mas que se dão como elementos estruturais. Assim é o caso da relação entre os fragmentos de poesia de Safo e a forma dramatúrgica que se dá a ver em quadros, como também, do esfacelamento afetivo da condição de ideia, ou de tipos determinados, que os personagens engendram.

Do modo como eu percebo, o desafio de encenar esse texto está justamente em criar a noção de que somos seres históricos, porém, sem sermos o resultado de uma sucessão causal de fatos. A montagem dos diretores Felipe Vidal e Tato Consorti transita por essa tensão que nos forma, enfrentado justamente as dificuldades que dela advêm.

Um dos acertos é a tradução do texto, que conseguiu criar diálogos claros e palavras que os atores podem manejar, constituindo um universo semântico identificável pela recepção que, em resposta, acompanha a história mais como acontecimento do que como um panorama. Do mesmo modo, a direção privilegiou um trabalho atorial que nos aproxima da relação utópica e revolucionária do rock em sua dimensão cotidiana. De certo modo, sem que isso seja reiterativo, escutamos palavras ditas de uma maneira que sairiam facilmente dos vinis dos Plastics, dos Stones, ou do Velvet Underground, para citar os meus favoritos. Essa dimensão utópica e cotidiana parece estar bem construída por Thiago Fragoso, que nos oferece esses extremos em sua corporalidade, não provocando excessos demonstrativos. A atriz Gisele Fróes captura essa tensão criando figuras que conseguem se constituir por meio do humor e do sofrimento e, desse modo, quase que elabora um percurso de percepção que faz transbordar a cena (matéria visível) para afetos para além do sensível, ou seja, nos remete para outros espaços, para outras imagens que constituem o próprio duplo estatuto do teatro. Luciana Borghi trabalha com uma determinada presença que não se sublinha e, por isso mesmo, é capaz de dar existência ao campo das subjetividades.

A importância da noção cenográfica em um espetáculo como Rock’n’roll se compreende justamente pela dimensão em que vida e arte estão relacionadas, não sendo uma reflexo da outra, porém, sendo a última índice transformador da primeira. Em vista disso, acredito que o espetáculo realmente se dá a ver de melhor maneira em um palco amplo, que deixa as laterais e as entradas das coxias à mostra, que sugere uma impossibilidade de completude, proposital na encenação de Felipe e Tato. Digo proposital, porque os espaços das casas dos personagens estão problematizados pelos praticáveis com suas rodas aparentes, por plantas artificiais, pela  vitrola com som em off e pelo fato de os atores entrarem e saírem dos praticáveis com a maior naturalidade, como se a realidade e a ficção fossem dois lados da mesma moeda. A percepção não encontra quietude nem respostas, assim como na arte.  As projeções inicialmente parecem atuar no mesmo sentido da tensão dita acima (ideologia/cotidiano arte/vida) e compreendem uma atmosfera de cinema que toma o raio de ação do olhar, porém, sua repetição parece apontar para uma funcionalização a serviço da troca dos quadros.

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