Da vontade de falar de si à confissão inventada

Crítica do espetáculo Um instante que desapareceu, com direção de Carolina Virguez, da Escola de Teatro Martins Pena

25 de outubro de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

Nas peças de conclusão de curso das escolas de teatro, pode-se dizer que os atores têm o principal trabalho para mostrar o que aprenderam ao longo do período de estudo. É comum que as turmas sejam numerosas e os atores estejam envolvidos nesta sensação de início de carreira, final da escola – emoções comuns de peças de formatura. Outra característica constante destas montagens são os textos densos, com personagens envelhecidos, cheios de passado, interpretados por jovens, meninos, que agarram de forma corajosa a tentativa de pôr na boca experiências de uma vida ausente neles. Estes personagens “clássicos”, “históricos”, “que todo ator bom quer fazer” são fantasmas nas costas dos atores recém-formados, que se lançam na busca por uma convincente “construção”.

A história do ator sofreu grandes transformações no século XX. Dentre a multiplicação dos métodos, das técnicas, dos encenadores e suas propostas de trabalho de ator, Brecht é fundamental para a formação da dicotomia que se mantém nos palcos até hoje. Sem fazer um aprofundamento justo ao tema, os atores decidem se no espetáculo serão ou não por um eu-ator visível em cena, ou seja, um ator que se deixa ver como tal, ou um ator desaparecido por detrás dos contornos do personagem. Novos atores. Outras gerações. A interpretação é o recurso formativo que o ator tem para mostrar seu pensamento e crítica sobre seu ofício, dizer a que conjunto/geração de atores pertence.

Tão importante quanto o desdobramento das técnicas de interpretação, o aparecimento na dramaturgia de formas que priorizam o discurso do eu – como a “dramaturgia do eu”, pensada por Peter Szondi a partir de textos de Strindberg, e apontada pelo mesmo como um princípio da autobiografia no teatro – e relatos sobre o real – como no Teatro Documentário, que se apropria de fontes verdadeiras para elaborar o discurso contido no texto – também propõe ao ator um novo olhar sobre a maneira de se pôr em cena. Nestas abordagens textuais, geralmente, o registro interpretativo se motiva na ideia de testemunho, com um eu que fala em primeira pessoa de si mesmo, ou, com uma fala próxima da confissão, numa experiência de “dizer a verdade”. Por isso, se comparados a outros métodos, o público pode pensar que o ator não está “interpretando”.

Retorno às formaturas. O que levaria um ator a optar, depois de dois anos de estudo, por uma peça de final de curso “não-interpretada”? Não apenas um ator, mas uma turma? Aparentemente as peças de formatura servem também para provar que se “aprendeu” a interpretar e, por conta disso, autores e personagens consagrados dominam estas montagens. Claro que esta pergunta não é das melhores, mas ajuda a pensar em novos atores, novas gerações. Este ano, dentre as diversas peças de formatura a que assisti, apenas duas traziam atores atuando “de verdade”, para usar o termo de Óscar Conargo. A primeira foi Só não viu quem não quis, peça de formatura da diretora Isadora Malta, do curso de Direção Teatral da UFRJ. Esta peça, entretanto, além de ser formatura de uma aluna de direção, é feita pelos membros da Realizadora Miúda, um núcleo de pesquisa em artes (como se auto definem) que já têm uma pesquisa estética e de linguagem iniciada em outros trabalhos. A segunda peça, de interesse desta crítica, é Um instante que desapareceu, dos alunos formandos do primeiro semestre de 2013 do curso de atores da Escola de Teatro Martins Pena.

É muito importante dizer que na Martins quem escolhe o diretor (dentro do corpo docente da escola) da última peça são os alunos. E esta escolha diz bastante sobre a turma. Não são alunos em processos individuais, mas um grupo de atores, que juntos, optam pelo diretor que lhes interessa como coletivo. Existe uma autonomia, uma condição para a criação atorial que precede a cena, e se as turmas serão, em pouco tempo, as novas gerações de atores, a Martins permite e incentiva que as especificidades comecem a ser criadas dentro de seus muros. A grande diferença de um ator com formação em escolas de teatro é exatamente esta, o pensamento como iniciador da prática.

A escolha da turma em questão foi por Carolina Virguez. No final de 2011 Virguez encenou o monólogo Susuné – contos de mulheres negras, no qual ficção e memória pessoal constroem a dramaturgia que tem como base contos da colombiana Amalialú Posso Figueroa. Passagens da vida da atriz mesclam-se com as das personagens e a interpretação fica num entre “confissão” e “construção”, um híbrido de biografia e ficção (esta que parte da literatura não dramática). Dois fatos interessam nesta escolha: primeiro, o teatro contemporâneo carioca vem produzindo há algum tempo peças de cunho autobiográfico, nas quais atores muito confessam, mas nada dizem. Afinal, a biografia não é m gênero que valha por si só, a vida de todo mundo não dá um livro. O trabalho de Carolina Virguez tem uma apropriação e desenvolvimento da forma dramatúrgica que não se vale de egomania e de modismo para se sustentar. Se esses atores gostariam de falar de si, fizeram uma escolha inteligente; segundo, eles escolheram uma atriz, sim, porque esta foi a primeira direção de Virguez. É bonito quando uma turma de atores escolhe uma atriz para acompanha-los no final de um ciclo de estudos, mas é principalmente evidência de que eles sabem dos caminhos que escolheram.

A dramaturgia de Um instante que desapareceu fala das experiências de vida dos atores costurados a contos de Gabriel Garcia Marquez, ou, de contos do autor colombiano adaptados às experiências de vida dos atores. As fronteiras entre o que é ficção e realidade são questionadas, são invadidas, talvez seja esta uma característica própria da biografia nesse nosso tempo. Isto cria, neste tipo de interpretação confessional, uma fratura. Quando a fala não parte de premissas reais, ficcionaliza-se a confissão, e isto é perceptível ao olhar do espectador. Porém, o espectador pode topar acreditar na verdade da ficção. Só que aqui, em vez de ser uma ficção do começo ao fim, na qual se acredita, é uma ficção com rastros biográficos, e isto causa uma estranheza, um descompasso. Eles não estão mentindo quando dizem coisas sobre si que não ocorreram, mas estão revelando o jogo, esfumaçando os limites dos gêneros, problematizando-os.

Não se trata dos atores interpretarem apenas a si mesmos, mas através dos personagens deixarem-se ver em primeira pessoa. Neste sentido, apesar dos contos escolhidos não condizerem com as vidas dos atores, eles tratam de temas que formam um vocabulário coral, de um eu-coletivo. Nesta biografia de todo mundo, tem pai, mãe, avó, irmão, mas tem também medo de morrer, medo de ficar maluco, encantamento com a beleza, amor romântico. E é disso que tratam os contos. De uma biografia coletiva possível para jovens que na pouca idade não viveram todas aquelas histórias, mas no teatro podem falseá-las e experienciá-las como verdade. A busca por um relato verdadeiro se transforma na busca por uma experiência com a qual se possa identificar. Todos esses temas fazem parte de um imaginário de juventude. Que inclui imaginar como deve ser morrer. A peça tem um tom poético, com músicas cantadas pelos atores com cumplicidade. O conforto que o elenco apresenta ao estar em cena tem a ver com esta ausência de uma história inviável, personagens impossíveis. Este é um bom jeito de deixar a escola, sabendo falar de si, sem cair no vazio. Enfim, artistas falam de si, há um quê de biográfico em qualquer produção.

Por fim, vale mencionar que a peça é encenada num corredor, uma passarela. E uma passarela não é um lugar de confissão, e sim de exibição. É um paradoxo. Não tem uma cadeira, clichê do testemunho. Os atores desfilam suas falas de maneira muito sutil, sem glamour, sem supervalorização, coerente com o material da passarela, aquele assoalho de ônibus, bem banal. Contudo, ainda é uma confissão deslocada. Óscar Cornargo, em seu artigo intitulado Atuar “de verdade” – a confissão como estratégia cênica diz que:

Somente uma coisa fica clara, o caminho é através do outro, a confissão não faz sentido, não pode ter verdade, se não for através da confrontação com quem está em frente, uma necessidade de comunicação explícita […]. (CONARGO: 2009, 107).

A passarela obriga o confronto. Os atores olham bem nos olhos do público. A confissão se dá por comunhão.

Um agradecimento

Gostaria de agradecer a Carolina Virguez, que no final do espetáculo, muito emocionada, disse a mim e a outros colaborados da revista que “fez o melhor que pode”, que era sua primeira direção, mas que outra turma já tinha a convidado para uma nova peça de formatura. Penso que seria o mínimo. Retribuo aqui os “obrigadas” que ouvi sem o menor motivo.

Referência bibliográfica:

CORNAGO, Óscar. Atuar “de verdade”. A confissão como estratégia cênica. In: Urdimento, Setembro: 2009 – N° 13.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO, e graduanda em Ciências Sociais da UFRJ.

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