Peças que desafiam o espectador

Crítica de Autopeças, projeto concebido com o intuito de comemorar os 20 anos da Cia dos Atores

20 de março de 2009 Críticas
Peça: Bate-Man. Ator: Marcelo Olinto. Foto: Diego Pisante.

O Festival de Curitiba recebeu boa parte das Autopeças da Companhia dos Atores, projeto concebido com o intuito de comemorar os 20 anos do grupo. No Teatro Paiol o público assistiu a Esta propriedade está condenada, com direção e atuação de Suzana Ribeiro, Apropriação@, conduzida por Bel Garcia, Bate Man, com Marcelo Olinto, e Talvez, assinado por César Augusto. Ficaram de fora do festival Os vermes, montagem de Marcelo Valle que reunia um maior número de atores, e A ordem do mundo, monólogo com Drica Moraes.

As Auto-Peças não parecem ter sido criadas com o intuito de resumir as principais características da Cia. dos Atores, ainda que o título encontrado por Bel Garcia sintetize, de alguma maneira, o norte do grupo: a apropriação de determinados universos (de William Shakespeare, Oswald de Andrade ou Nelson Rodrigues, para citar os dramaturgos mais visitados) a partir de uma adesão a dadas vertentes do acontecimento teatral. Os atores da companhia, certamente, não são portadores da mesma visão sobre teatro, mas vêm ao longo dos anos mostrando trabalhos que evidenciam um desejo de exprimir uma fala própria a partir dos textos abordados ou de investir numa conexão com outras manifestações artísticas.  

A configuração espacial é um elemento bastante relevante nas Autopeças, conforme conferido nas apresentações realizadas no Sesc Copacabana. Os integrantes da companhia também procuraram aproveitar partes diferentes do Teatro Paiol. Em Esta propriedade está condenada e Bate-man, ambientadas na arena do Paiol, as “ações” se passam, respectivamente, numa espécie de terreno baldio e num lugar indefinido, à deriva, onde um homem desperta e vaga desnorteado (há notado aproveitamento dos mesmos elementos nas duas concepções cenográficas). Em Apropriação@, o bar é um espaço utilizado pelos personagens entre tantos outros possíveis. E em Talvez, o espectador vê-se inserido no apartamento do personagem.

Particularmente nestas duas últimas autopeças é possível perceber um extravasamento das bordas, tanto do espaço como da cena. Em ambas a entrada e a saída do público não delimitam o começo e o encerramento das situações. Em Apropriação@ os personagens já estão no bar quando a plateia chega e não há propriamente um desfecho. Em Talvez, o personagem interpretado por Álamo Facó, que vai perdendo cada vez mais contato com o mundo externo, convida os espectadores a conhecerem espaços que lhes são inacessíveis – no caso, os outros cômodos de seu apartamento. Riscos de giz na parede despontam como sinais de uma ruína psíquica crescente, cuja exata extensão permanece desconhecida do público, mesmo que o personagem informe sobre os desdobramentos dos acontecimentos ao final.

Fiel às diretrizes da dramaturgia de Harold Pinter, sua principal fonte de inspiração, Apropriação@ recusa fornecer ao espectador explicações que contextualizem personagens e circunstâncias. Não há uma história sendo formada diante do público, mas uma ininterrupta sucessão de associações geradas a partir de diálogos nos quais não se percebe exatamente uma interação entre perguntas e respostas. Os atores Leonardo Netto e Thierry Tremouroux realçam em suas interpretações uma espécie de tempo suspenso ao sustentarem apreciável dose de tensão no silêncio, principalmente através de olhares precisos, direcionados. Já Talvez, que conta com texto de Álamo Facó, descortina, no decorrer da apresentação, a situação-limite de um homem encarcerado na própria imaginação, em projeções desvinculadas da realidade, sem perder de vista um certo humor (como na referência às escritoras suicidas Virginia Woolf, Sylvia Plath e Ana Cristina César). O ator projeta com sensibilidade este personagem encastelado por meio de uma voz embargada, que espelha uma instabilidade que vai adquirindo contornos cada vez mais graves.

De maneira bem diferente, Esta propriedade está condenada, realizado a partir do texto de Tennessee Williams, tensiona realidade e imaginação, expondo o descompasso entre as duas instâncias. Não por acaso, a personagem destaca frequentemente o contraste entre a morte e sua representação no cinema, apesar de não dimensionar o peso da ausência enquanto brinca no terreno baldio. O teatro, com seus figurinos espalhafatosos que parecem ter sido tirados de um baú e as gelatinas coloridas colocadas diante do foco de luz, desponta como um recurso que propicia a suspensão do real. Suzana Ribeiro procura realçar a menina através de uma voz que não busca o efeito e Pedro Henrique Monteiro aproveita o silêncio para valorizar a escuta.

Bate-man traz um depoimento bastante contundente do dramaturgo Gerald Thomas (acumulando a função de diretor) que dimensiona a solidão de estar no mundo para além de qualquer registro temporal. “É tanto afastamento, tanto silêncio. As pessoas nos dão os ombros e o silêncio é brutal. Gente escondida nesses gigantescos silêncios”, constata o personagem interpretado por Marcelo Olinto. A sincera expressão do desespero do isolamento, da falta de sintonia com os que estão à volta (talvez o isolamento geográfico do personagem exprima isto), parece estar no centro do texto de Thomas, que mescla tragédia e deboche, sangue e vinho, líderes e oprimidos, ascensão e derrocada do nazismo numa estrutura dramatúrgica constituída por fluxos interrompidos. Como de costume, Gerald Thomas demonstra sensibilidade para a criação de imagens cênicas impactantes e vale destacar a importância do som na produção de uma atmosfera opressiva. Marcelo Olinto dá a impressão de ter seguido estritamente as indicações do encenador, ao ponto de ser possível ver Gerald Thomas através do ator. Nesse sentido, Olinto se revela uma imagem de transparência.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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