Entre atores

Crítica da peça Realidade virtual

10 de agosto de 2008 Críticas

A montagem de Realidade virtual tem no elenco Claudio Mendes e Marianna Mac Niven, que optaram por dirigir a si mesmos, tendo Josué Soares como diretor de corpo, gesto e movimento. O texto do norte-americano Alan Arkin, traduzido pela própria Marianna, parece bastante despretensioso. Trata-se, certamente, de um texto cômico, mas tanto a dramaturgia como o tratamento dado a ela pela encenação se desviam dos caminhos mais comuns da comédia – digo isso levando em consideração o que é mais visível como comédia no teatro carioca, ou seja, o que mais se vê nos espetáculos que são grandes sucessos de público, como os que fazem apresentações em casas de show ou têm chamadas na televisão. Realidade virtual não tem bordões nem estereótipos, muito menos piadas. Há diversos momentos engraçados, mas não há aquelas pausas para a platéia rir que transformam as peças cômicas em algo parecido com um show de calouros. Não se trata de algo feito exclusivamente para fazer graça; o riso não é obrigatório. No entanto, mesmo dentro dessa perspectiva de comédia, há um pequeno desequilíbrio entre as atuações. A atuação de Claudio Mendes está mais próxima dessa visão de comédia em que o ator não precisa mostrar que está fazendo algo engraçado. Por outro lado, algumas opções de Marianna Mac Niven fazem com que ela deslize para um tipo de atuação mais demonstrativa. Talvez seja possível dizer que ela se empenha mais em fazer um personagem, enquanto ele simplesmente faz a peça; ela aposta em trejeitos e expressões faciais que enfatizam as idéias e as reações do personagem, quando estas são coerentes com o decorrer da ação e não precisariam ser sublinhadas.

Em cena, dois personagens, Canhoto e Derecha, se encontram numa sala vazia para esperar um carregamento. Ao que tudo indica, Canhoto foi contratado pela firma em que Derecha trabalha para conferir o material recebido. Enquanto esperam, Derecha sugere que eles simulem a chegada do tal material. Canhoto resiste num primeiro momento, não apenas porque a proposta é ridícula, mas também porque nenhum deles sabe o que contém o esperado carregamento. Ele aceita a proposta, o que resulta num jogo de poder e manipulação entre os dois. No desenvolvimento da simulação, estabelece-se uma outra ficção dentro da peça.

O espaço cênico de Carlos Alberto Nunes faz uma intervenção no teatro do Centro Cultural Justiça Federal. Mas não se trata de uma intervenção grandiloqüente – pelo contrário, parece que não há cenografia alguma. Quem já viu outras peças nesse teatro percebe a diferença. (Até porque ele tem uma aparência de auditório que muitas vezes contrasta com os cenários ali montados). A cenografia aproveita os elementos da arquitetura do teatro: uma escada num canto do palco que dá acesso a um andar inferior e duas grandes portas de metal ao fundo, que dão acesso à rua. Deixar o palco literalmente nu poderia ser apenas uma saída óbvia e econômica para uma peça que não demanda elementos de cenário. A solução proposta escapa dessa armadilha. A iluminação de Renato Machado também contribui para a ambientação da cena na medida em que não aplica efeitos de luz onde eles não são necessários. Numa peça que poderia ser feita sem cenário e com uma luz geral branca, a cenografia e a iluminação têm o desafio de não “aparecer”.

Se levarmos em consideração o fato de que Alan Arkin é ator, podemos nos questionar o que pode haver no texto que sinalize isso. Talvez esse não seja um questionamento válido, se colocado em termos generalizantes como “texto escrito por ator”, “texto de autor de gabinete”, “criação coletiva”. Mas a experiência do ator pode, de algum modo, ter sido uma questão para a escrita. Percebo, nessa peça, que as idéias se expressam na materialidade da cena, não num discurso acoplado a ela. O jogo que acontece entre os dois personagens não se esgota no discurso. O envolvimento com a ficção, as regras que se estabelecem para fixar uma convenção, a disponibilidade para entrar no jogo do outro, essas são questões pertinentes ao trabalho do ator e que norteiam a própria ação da peça. O fato de que o próprio autor fez a peça como ator e assinou a direção na montagem de 1998 em Nova York talvez seja um indicativo de que essa seja uma peça para ser resolvida entre atores. A opção de Claudio e Marianna por não ter um diretor não é prejudicial para a montagem. Contudo, penso que o olhar de um diretor contribuiria para que os atores alcançassem um melhor equilíbrio entre seus registros de atuação.

Com a realização dessa montagem, pode-se ver a diferença entre um projeto que se quer bem-sucedido e um projeto que quer fazer sucesso. A peça está em cartaz às terças e quartas no Centro Cultural Justiça Federal. A escolha do horário alternativo – que provavelmente está relacionada ao fato do ator Claudio Mendes estar em cartaz em São Paulo nos finais de semana – oferece ao espetáculo a oportunidade de alcançar um público que talvez não fosse assistir a montagem se ela estivesse em cartaz nos finais de semana ou em um teatro da zona sul. É sabido que, no Rio de Janeiro, um espetáculo que faz temporada em horário alternativo dificilmente será “um sucesso”. A mídia dá pouca atenção e estar em cartaz durante a semana no centro da cidade não tem grande status. Realidade virtual não tem o perfil de peça que vai receber quatro críticas do jornal O Globo, nem parece pretender lançar estrelas no show business carioca. No entanto, essa peça tem possibilidades de ser bem-sucedida de acordo com os seus próprios parâmetros.

A estréia foi em meados de junho e a peça vai ficar em cartaz até o início de setembro, o que logo a distingue das produções superfaturadas que fazem curtíssimas temporadas. Com isso, é possível que o espetáculo consiga conquistar a sua platéia, dando tempo para acontecer a divulgação boca-a-boca, que faz com que as pessoas se interessem especificamente por aquela peça, que o público vá ao teatro porque quer ver aquele espetáculo. Isso é importante para que o projeto seja bem-sucedido: encontrar o seu público; enquanto uma grande quantidade de peças em cartaz na cidade está disputando a mesma fatia de mercado, utilizando as mesmas estratégias de divulgação, querendo ocupar os mesmos espaços. Nesse sentido, a montagem pode ter um caráter formador de platéia, pois está se colocando em outro lugar, oferecendo uma possibilidade diversa. Para quem trabalha no centro da cidade até 18h, é viável assistir, às 19h, uma peça descontraída e inteligente que propõe, com leveza, algumas questões para se pensar. Por outro lado, com a temporada longa, os atores ganham familiaridade com o texto; o espetáculo adquire maturidade com a constância das apresentações e pode proporcionar uma experiência sólida para os atores, algo que pode fazer diferença no desenvolvimento dos seus trabalhos.

Vol. I, nº 6, agosto de 2008

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