Terá sido: a voz

O sujeito, a voz, a imagem e o corpo no teatro de Samuel Beckett

23 de dezembro de 2015 Estudos

Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf

Resumo: A partir de questões históricas sobre o drama, este artigo busca traçar alguns apontamentos que concernem ao sujeito, à voz, à imagem e ao corpo no teatro de Samuel Beckett. Para tanto, estabelece-se diálogo com a psicanálise lacaniana, tendo como conceito operador a temporalidade do a posteriori, para propor uma leitura preliminar de Souffle, um intermédio que, sem palavras e sem atores em cena, põe em jogo questões fundamentais da subjetividade.

Palavras-chave: Samuel Beckett, psicanálise, corpo, voz, imagem

Sommaire: À partir des questions historiques sur le drame, cet article cherche à esquisser quelques remarques qui concernent le sujet, la voix, l’image et le corps dans le théâtre de Samuel Bekett. Pour le faire, on établit un dialogue avec la psychanalyse lacanienne, en ayant comme concept opérateur la temporalité de l’après-coup pour proposer une lecture préliminaire de Souffle: un intermède qui, en n’ayant pas de paroles et pas d’acteurs, met en jeu des questions fondamentales de la subjectivité.

Mots-clés: Samuel Beckett, psychanalyse, corps, voix, image

 

Estudar o teatro de Samuel Beckett (1906-1989) é um trabalho de delicada análise das diversas subversões formais encenadas em suas peças. Dentre os aspectos singulares de seu teatro, especialmente em suas últimas peças, a imagem tem sido destacada como um tipo de produção formal que põe em tensão o gênero drama. Pensar a imagem no teatro beckettiano implica compreender a convergência de duas camadas formais: a imagem verbal do texto dramatúrgico e a imagem cênica, concebida pela execução fiel das rubricas do autor, ou por releituras que ressignificam seu teatro a cada nova montagem. Em geral, o teatro final de Beckett se funda em uma dramaturgia que não implica desdobramentos causais no enredo, que resulta na estaticidade dos corpos, delineados por luz e penumbra. Além disso, para pensar a imagem, recorre-se às ideias de Beckett sobre a pintura dos irmãos van Velde, expostas em Peintres de l’empêchement. Nesse texto, Beckett propôs que, na pintura de Bram e Geer van Velde, o “impedimento-olho” e o “impedimento-coisa” eram procedimentos formais que marcavam a “recusa de aceitar como dada a velha relação sujeito-objeto” (BECKETT, 1990, p. 58). No presente artigo, levanto um traçado de procedimentos formais beckettianos que dão forma à imagem para pensar a encenação de Souffle, que se funda em um impedimento-voz: na convergência entre corpo, tempo e linguagem.

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Há um aspecto formal no teatro de Beckett frequentemente destacado: o controle da atuação, que pode ser notado em sua dramaturgia, por meio da análise das rubricas, e em suas experiências enquanto diretor, por meio de depoimentos do elenco. Quanto à dramaturgia, é possível recorrer ao livro de Luiz Fernando Ramos, O parto de Godot e outras encenações imaginárias, para compreender que a escrita teatral de Beckett eleva as rubricas ao patamar das falas, o que marca o desejo de que as encenações de suas peças obedeçam a um “contorno mínimo” (RAMOS, 1999, p. 65). Ramos propõe que o controle dramatúrgico beckettiano estabelece uma “coreografia inevitável” (idem, p. 68), o que o leva a compreender que o teatro, para o autor, não se pautava somente por meio do encadeamento dramático, mas tornou-se, com o tempo, um teatro material, fundado nos aspectos sensíveis da cena. Quanto ao Beckett diretor, é possível recorrer a James Knowlson, que menciona diversos depoimentos de atores que trabalharam em suas montagens, para explicitar a dificuldade em se atingir as expectativas de um diretor tão minucioso[1].

A análise da dramaturgia e da direção beckettianas indica que seu teatro se constitui segundo o controle formal do corpo do ator, que visava inscrever toda a matéria viva na linguagem. Não à toa, Knowlson remete à produção teórica de Edward Gordon Craig, que, no início do século XX, buscava alternativas para a atuação teatral, chegando a propor que o ator convencional cedesse seu lugar à supermarionete. Para Craig, é da natureza do homem tender à liberdade, e não conseguir submeter suas emoções ao controle da mente. A supermarionete deveria entrar em cena, então, pois o teatro, ao se valer do humano como seu material, submete a arte, domínio do “desígnio” criador, ao acaso[2]. Bem como Knowlson, acredito ser profícuo estabelecer relações entre o teatro beckettiano e as ideias de Gordon Craig. Para o crítico, a “economia de movimento e gesto” (HAYNES; KNOWLSON, 2003, p. 110), marca do teatro de Beckett, estaria alinhada com críticas de Craig à concepção do teatro como imitação da vida. Aproveito, então, alguns apontamentos de Knowlson para buscar compreender que, além do trabalho de Beckett como diretor, o diálogo com Craig me ajuda a compreender aspectos de sua dramaturgia. Ao se frequentar sua obra, pode-se notar que o controle da atuação não visava somente à excelência de execução: é ele um dos aspectos fundantes tanto da forma teatral beckettiana, quanto das diversas relações subjetivas encenadas. Além dos pares clássicos Hamm e Clov, Pozzo e Lucky, que se constituem subjetivamente segundo relações “interpessoais” de controle – algo que pode ser compreendido ainda sob o signo do drama e de sua crise, pensando em Peter Szondi – o controle se imiscui nos dispositivos cênicos, tensionando o corpo do ator e a subjetividade do personagem com a materialidade da cena.

Em Ato sem palavras I, o homem tem a ação conduzida, no deserto, pelo som de um apito que chama a sua atenção para objetos que descem à cena, pendurados por fios. Um jarro de água se oferece ao personagem, suspenso alguns metros sobre sua cabeça, dando-lhe a possibilidade de saciar sua sede. Diversos objetos são oferecidos ao personagem – como caixas ou uma corda – para que ele tente, sempre em vão, alcançar o jarro. A relação entre o homem e os objetos que se lhe apresentam é controlada, então, por uma estrutura cênica: como se o fio que conduz o drama, que em geral compõe uma trama invisível, tecida pela causalidade de ações, encontros e diálogos, fosse aqui um fio que faz a subjetividade entrar em tensão com os dispositivos cênicos. Por essa via, a relação que Knowlson estabelece entre Beckett e Craig, a partir daquilo que este concebia como “teatro total”, pode ser compreendida não somente enquanto um teatro que não submete toda sua prática ao drama, e que traria ao primeiro plano o aspecto material da cena, mas também segundo a constituição de modos de implicação subjetiva entre personagem e dispositivo cênico: como se o próprio trabalho com atores, de Beckett, encontrasse intersecções entre a atuação e a subjetividade posta em cena. Por um lado, o controle dramatúrgico transfigura o corpo do ator em marionete. Por outro, o corpo encena a falência: a impossibilidade de transpor a gravidade, de ser impotente frente a um dispositivo cênico que não permite que se alcance o jarro de água, puxando este um pouco mais acima. Quando o objeto que o sujeito deseja não cessa de se esquivar, mostrando que suas mãos são impotentes, o deserto se torna o espaço da desistência. Mesmo que sombra e água possam aliviar alguém entregue ao calor e à secura, a desistência do sujeito se torna mais forte que sua necessidade corporal, o que o faz recusar o jarro, ao fim da peça, quando ele desce ao alcance de suas mãos: como se a desistência entregasse o corpo à inação, fizesse dele um ruído na harmonia dramática, no teatro concebido como ação. Quando desistir é resistir, entregar o corpo à sede é, também, deixar de entregá-lo a uma estrutura de dominação. Como propõe Conrado Ramos, em A dominação do corpo no mundo administrado, tornar-se vencedor seria um modo de endossar a coisificação do corpo, exaltando o vencedor como aquele que transpõe limites, sem notar que se exalta, assim, a capacidade de subjugar a natureza; o corpo do vencido, por sua vez, permite que se reflita sobre a coisificação, fazendo da falha, resistência subjetiva (RAMOS, 2004, p. 150)[3].

Ao tornar protagonista o conflito da subjetividade com a cena, Beckett se tornou um dos maiores expoentes de uma prática teatral que não mais se submetia ao drama, ao encadeamento da história às relações entre personagens. Se, em uma peça como Hamlet, a hesitação do príncipe da Dinamarca se desdobra dos solilóquios à ação, segundo fios condutores dramáticos, em Ato sem palavras I, a hesitação do personagem, que só consegue refletir até que o som do apito chame a sua atenção, se desdobra em ações frustradas no conflito com a materialidade teatral. Há, de Hamlet ao homem jogado no deserto, dois momentos da solidão na história do teatro: no teatro dramático de Shakespeare, a solidão se torna o momento de expressão dos conflitos subjetivos; em um teatro como o de Beckett, a solidão pode ser o momento de conflito do corpo com a matéria. É como se, mesmo sem palavras, a pantomima de Beckett se inscrevesse em uma nova configuração do monólogo, que para Sarrazac passa a ser o momento que põe em jogo a relação do sujeito com o mundo ou consigo, para além de qualquer decisão a ser tomada[4]. Se, na solidão, Hamlet hesitava em “pegar em armas contra o mar de angústias”[5], em Ato sem palavras I, o homem não consegue sequer agarrar um mero jarro de água, já que este se oferece por dispositivos de dominação.

Pensando na riqueza do caráter lírico dos solilóquios de Hamlet, Maeterlinck notou, em “Um teatro de androides” (2013), que, para que uma obra-prima como essa pudesse ser encenada, seria necessário que o corpo humano desse lugar a “figuras de cera” ou “sombras”, constituindo seu “drama estático” enquanto drama que traz ao primeiro plano o texto, ali pensado como poema[6]. A passagem pelo dramaturgo belga colabora para que se compreenda um debate histórico que tomou as mais diversas faces no campo teatral: a tensão posta entre corpo e mimesis. Com a ajuda de Mimesis espetacular: a margem de invenção possível (2012), de Luiz Fernando Ramos, pode-se compreender que propostas como a de Maeterlinck se inscrevem em um longo embate da encenação com o drama, o mythos, que, até meados de 1960, continuava a ser o aspecto fundante da mimesis teatral. De forma muito breve, cabe destacar que, se o corpo dos atores pôde ser um aspecto problemático na arte teatral, é porque este teve sempre de se submeter ao encadeamento da trama dramática, o que fez da atuação – esse macaqueamento, nas palavras de Platão – o “bode expiatório” das críticas à arte teatral[7]. Com isso, o percurso histórico do qual me valho, que passa por Maeterlinck e Craig para chegar a Beckett, é marcado por tentativas de apresentar saídas para a presença problemática do corpo sobre o palco. No caso de Maeterlinck, como expõe Lara Biasoli Moler, em Da palavra ao silêncio: o teatro simbolista de Maurice Maeterlinck (2006), o “drama estático” é proposto pelo dramaturgo belga a partir de sua perspectiva metafísica, que faria do homem não mais o sujeito de um teatro concebido enquanto ação, mas um “objeto de sua própria trajetória existencial (…) desprovido de poder diante de sua morte iminente e irrevogável” (MOLER, 2006, p. 129). Segundo Moler, as personagens objetificadas de Maeterlinck, imersas na realidade banal, tomariam “consciência da realidade apenas quando confrontadas com a morte ou com o sentimento de um amor impossível” (idem, p. 129). Voltando a Ramos, é importante destacar que, mesmo sendo possível remeter Beckett aos andróides de Maeterlinck, as alternativas que este buscava para a “sombra do macaquear”, sublimando os “aspectos físicos em bruto”, se davam ainda em favor do texto, e não da construção da cena enquanto materialidade, o que é distinto no caso de Beckett, um dos expoentes da transposição do teatro enquanto mythos ao teatro enquanto opsis.[8]

É certo que os desdobramentos subjetivos que tomam curso em Ato sem palavras I se ancoram em uma concepção do teatro como drama. O sujeito é posto em embate com a materialidade cênica, mas segundo uma estrutura dramática, em que o aspecto cômico se constrói a partir das falências sucessivas do homem. Assim, se, para Szondi, o tempo do drama é o “presente prenhe de futuro”, a subjetividade chega à desistência quando todas as ações devolvem o homem ao mesmo lugar (SZONDI, 2011). Mas, mesmo em experimentos mais radicais do teatro beckettiano, em que os dispositivos cênicos apresentam mais resistência à remissão da materialidade ao drama, há ainda implicações subjetivas postas em jogo. Em Comédie, as três cabeças que saem de vasos têm sua fala “extorquida” pela luz que se projeta sobre seus rostos. Do mesmo modo que o apito e os fios comandavam a ação do homem no deserto, em Comédie a luz controla a fala do homem e de suas duas mulheres. Mas agora, não se trata mais de um fio e um apito que operam misteriosamente no deserto: trata-se de fazer da iluminação, que no teatro pode ter caráter acessório, o operador fundante da cena. Com isso, é possível notar que a remissão a Craig não se limita apenas à super-marionete, mas também ao que ele chamava de “quinta cena”, uma cena que teria “vida própria” por ser composta por estruturas móveis de madeira, que permitiriam o encadeamento dramático sem que se fechassem as cortinas, o que, para Craig, não seria apenas um ganho de cunho prático, mas um modo de adaptar a cena à modernidade, e a seu “espírito de incessante mudança”[9].

Mesmo que ainda a serviço do drama, Craig já vislumbrava a possibilidade de que sua cena se tornasse “ainda mais útil”, algo que se confirma em práticas teatrais contemporâneas, dentre as quais Comédie. Se para Craig, a cena ganharia mobilidade quando suas telas maleáveis fossem orquestradas com a luz, em Comédie, a fala dos personagens está a serviço da luz, é comandada pelo dispositivo teatral: o opsis é levado de seu papel secundário ao lugar de produção da temporalidade da peça, que não é mais conduzida pela ação dramática. E então, é justamente essa configuração formal que pode dar pistas sobre os modos de implicação subjetiva na cena:

Projecteur de F2 à H.

H – Je le sais maintenant, tout cela n’était que … comédie. Et tout ceci, quand est-ce que…

Projecteur de H à F1.

F1 – Serait-ce cela?

Projecteur de F1 à F2.

F2 – Pas vrai?

Projecteur de F2 à H.

H – Tout ceci, quand est-ce que tout ceci n’aura été que… comédie? (BECKETT, 1972, p. 23)

Tendo sua fala extorquida pela luz, o homem e as duas mulheres rememoram a história do triângulo amoroso que compunham, o que faz o tempo presente, da encenação, estar em tensão constante com o passado. O que parece singular, nesse ponto, é que, se o tempo do drama era concebido a partir da causalidade das ações, conduzindo a peça segundo desdobramentos lineares, em Comédie, o presente age retrospectivamente sobre o passado –  modo de compreensão do tempo concebido pela psicanálise de Freud e desenvolvido, posteriormente, por Jacques Lacan: o chamado “efeito a posteriori” ou “só depois” (nachträlich, après-coup). Encontro em Freud e Lacan um modo de concepção da história do sujeito no qual é menos importante o encadeamento da vida como mythos causal e linear, e mais valiosa a reescrita do passado a partir das diversas reestruturações do sujeito. No trabalho de rememoração psicanalítico, ao compor seu mito individual, o sujeito o faz, nas palavras de Lacan, a partir do futuro anterior do que ele terá sido para o que ele está a se tornar:

Je m’identifie dans le langage, mais seulement à m’y perdre comme un objet. Ce qui se réalise dans mon histoire, n’est pas le passé défini de ce qui fut puisqu’il n’est plus, ni même le parfait de ce qui a été dans ce que je suis, mais le futur antérieur de ce que j’aurai été pour ce que je suis en train de devenir (LACAN, 1999, p. 298).

Quando H sabe, no momento da enunciação, que “tudo aquilo era apenas… uma peça”, o que ele parece fazer é conceber a sua história segundo os sucessivos desenlaces que se deram até o momento da enunciação (BECKETT, 1972, p. 23). Mas isso se dá só depois: apenas quando enuncia sua história em uma peça é que a relação com F1 e F2 pode ser, ela mesma, compreendida desse modo: apenas quando H tem sua fala extorquida pela luz, ele pode pensar que, em sua história, F1 e F2 queriam dele extorquir confissões para possuí-lo. Pensar a imagem cênica seria pensar como o aqui-agora da encenação pode ser um modo de ressignificação do passado. Mas, para além dessa trama amorosa, o futuro anterior se apresenta como questão para o teatro por vir: “quando é que tudo isso terá sido apenas… uma peça?” (idem, p. 23). Furtando-me de uma análise mais detida de Comédie, tomo a pergunta de H como uma pergunta de Beckett à história do teatro. Se a produção beckettiana pode ser tomada como uma das pioneiras de uma nova prática teatral, não submetida ao drama, Comédie pode ser um marco do futuro anterior de um teatro a se tornar: uma prática que traz o opsis ao primeiro plano, nos termos de Luiz Fernando Ramos; um teatro “neural”, nos termos de Stanley Gontarski, em artigo publicado recentemente (GONTARSKI, 2015).

Beckett permite pensar a confluência da história do sujeito com a história do teatro: como se a temporalidade do a posteriori pusesse em cena o sujeito de um teatro por vir. Tomo aqui, como inspiração, o trabalho de dois pensadores contemporâneos: Hal Foster (2014), que se vale do a posteriori psicanalítico para uma releitura da relação da vanguarda e da neo-vanguarda[10]; e Jacques Rancière, que propõe um novo recorte temporal, o “regime estético” das artes, por entender que a arte desse regime não se origina em decisões de ruptura, próprias à ideia de modernidade, mas sim, a partir de um novo modo de reler o  passado: “O regime estético das artes é primeiramente um regime novo de relação com o antigo” (RANCIÈRE, 2000, p. 36). Nesse regime, busca-se a “invenção de novas formas de vida baseada em uma ideia do que a arte foi, teria sido” (idem, p. 36). Então, se de acordo com o pensamento de Rancière, Craig, Maeterlinck e Beckett se encontram em um mesmo regime, isso se dá em razão de estabelecerem uma relação a posteriori com o passado. Com isso, é interessante notar que, em L’inconscient esthétique, Rancière percorre diversos textos estéticos de Freud, mostrando como sua teoria do aparelho psíquico estava em constante tensão com o inconsciente concebido no regime estético, na tensão entre logos e pathos (RANCIÈRE, 2001, p. 31). Nesse livro, o filósofo passa por Maerterlinck, e sua leitura de Ibsen, pois identifica na “parole soliloque” simbolista, um modo particular de articulação entre logos e pathos, no qual a linguagem verbal investiga as condições “impessoais, inconscientes da fala” (idem, p. 40). Essa nova fala daria origem a um novo corpo: não mais humano, mas composto por sombras, ou modelado em cera, que pudesse encarnar “essa voz múltipla e anônima” – algo que, para Rancière, se comunica diretamente com o futuro do teatro: a super-marionete de Craig e o teatro da morte de Tadeusz Kantor[11]. A passagem por Rancière põe em jogo, então, que o futuro anterior, em Maeterlinck, Craig e Beckett, pode apontar a um novo corpo por vir, necessário para encenar a tensão constante entre o que pode ser apreendido pela linguagem, pelo logos, e o que leva ao domínio da morte, o pathos[12].

Finalmente, Souffle, de Beckett, pode ser um dos modos de dar voz e corpo a essa potência sem nome em torno da qual se desdobra a linguagem. Ao dar ao palco uma forma humana, um androide, como queria Maeterlinck, fazendo dele um espaço-corpo, Beckett leva à cena a voz enquanto elemento articulador de logos e pathos, realizando, talvez, a ambição de uma forma que pudesse admitir o caos, como disse Beckett em entrevista a Tom Driver (BECKETT apud ANDRADE, 2001, p. 193). Nesse intermédio, a iluminação se coordena com o som ambiente de um corpo que respira, dando à cena uma vida própria, como queria Craig. E ainda, as críticas de Craig ao ator, que tem sua voz submetida à emoção (“Emotion cracks the voice of the actor”, supra), encontram, no grito de Souffle, um modo formal de subjetivar a voz: se a emoção pode rachá-la, ameaçando o controle racional da cena de Craig, Beckett, por sua vez, em uma peça sem texto, reproduz um grito em off, possibilitando à voz, manchada de emoção, ser repetida tal qual se repete uma palavra, levando o grito ao domínio do logos. Nesse ponto, os estudos da psicanálise lacaniana permitem traçar alguns desdobramentos para esse grito primevo, do recém-nascido, o “vagissement”, como denominado na rubrica de Souffle.

É preciso, aqui, remeter a um trocadilho que Lacan empregava com frequência para desenvolver sua teoria da voz, que funda o sujeito na transposição de um “grito puro” a um “grito para” (cri pur, cri pour). Antes que haja fala, o grito de choro do recém-nascido é interpretado pela mãe como expressão de suas necessidades fisiológicas, o que transforma a pura expressão de insatisfação em endereçamento. Assim, o grito puro pode ser compreendido como aquele que levou o sujeito à sua primeira experiência de satisfação, e que se torna um objeto perdido: uma voz que se perde quando tornada voz pura, um grito puro que, a posteriori, torna-se apelo[13]. Segundo essa perspectiva, a voz é aquilo que deve ser sacrificado para que o sujeito seja inscrito na linguagem: a castração simbólica faz a voz ser ao mesmo tempo o suporte da linguagem e o objeto que se perde[14]. O sacrifício faz da voz um intermédio: a voz é o que se perde para que o corpo possa se tornar corpo simbólico.

Enquanto intermédio, a voz é compreendida pela psicanálise não simplesmente como uma emissão sonora corporal, mas como o fundamento que liga o corpo humano à linguagem, e que não pertence a nenhum dos dois polos. A voz, psicanaliticamente, é um objeto pensado para além da emissão vocal: enquanto intermédio, a voz é o que se torna “transparente” para que haja linguagem[15]. Nessa leitura, a perda do objeto voz se efetua quando o sujeito se funda na castração simbólica, podendo, assim, ser representado de um significante para outro significante, segundo a clássica formulação lacaniana. Nessa operação, a linguagem só tem lugar quando se faz da voz um resto, “um excremento do significante”[16]. Assim, essa operação é o que funda, a posteriori, o sujeito que só é concebido segundo sua causa: o efeito de linguagem, a inscrição no simbólico[17].

Voltando a Rancière, pode-se dizer que, ao encenar a voz, Beckett põe em jogo a voz enquanto suporte do logos e enquanto resto resistente à operação significante, pathos: como se a cada enunciado, os significantes girassem em torno de um grito puro perdido; como se a busca pela singularidade expressiva do sujeito fosse a busca por essa voz irremediavelmente perdida; como se houvesse um resto do primeiro grito de dor que ameaça despontar a cada vez que se toma a palavra. E aqui, volto à leitura que Beckett faz dos irmãos van Velde para sugerir que Souffle pode instaurar um “impedimento-voz”, um modo de colocar em cena um grito que não se configura como expressão, mas sim como seu impedimento: ao ser sempre a posteriori, a voz só se constitui com o que a impede, a linguagem[18]. Talvez, então, a crítica de Beckett à velha relação sujeito-objeto encontre na voz um modo de transformar a encenação como experiência de impedimento, fazendo a relação de sujeito e objeto fundar-se na perda. Pensar a imagem verbal seria pensar como a linguagem pode circundar, e ser movida, por uma voz perdida. Não à toa, a imagem na prosa de Beckett muitas vezes toma corpo a posteriori, por meio de uma sintaxe que faz frases parecerem molduras de imagens evanescentes, perdidas ao cabo de cada frase: “tangente ao horizonte o sol suspende sua queda no tempo desta imagem” (BECKETT, 1981, p. 61).

Pensar o grito, em Souffle, é pensar a voz segundo a temporalidade do a posteriori psicanalítico, aliando-se ao a posteriori do sujeito e da arte. Desse modo, quando o “vagissement” é emitido, o espectador é chamado a escutar e olhar a cena. Em Souffle, o espectador opera a perda da voz: ao ser chamado, inscreve a posteriori o grito de dor em um grito que chama. E esse grito chama a escutar a respiração de um espaço que será sutilmente iluminado, dando a ver os detritos espalhados sobre o palco. O tempo, então, é o ponto de intersecção entre a voz e os detritos sobre o palco: pensá-los como restos é o mesmo que pensá-los como produtos de operações temporais. Se, num primeiro momento, a leve penumbra deixa entrever coisas sobre o palco, a iluminação as ressignifica, a posteriori, e sugere que a formação da imagem se dá a partir da perda de uma primeira impressão: como se o grito de Souffle chamasse o espectador do teatro de imagens a se tornar espectador da perda. Quando o espaço-corpo expira, e a luz se reduz, levando a cena à penumbra inicial, o grito é repetido, exatamente como da primeira vez. A repetição do grito faz o público ser chamado mais uma vez a ver e escutar a cena, que assim se encerra. E ao ser Souffle um intermédio, o segundo grito chama para uma outra cena beckettiana: o chamado é o que terá sido a voz de Souffle para a encenação que virá.

 

Referências bibliográficas:

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Mario Sagayama é graduado em Letras na Universidade de São Paulo. Faz sua pesquisa de mestrado sobre a obra final de Samuel Beckett, com orientação de Fábio de Souza Andrade (DTLLC/FFLCH-USP). Paralelamente, faz formação em psicanálise no Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo (FLC-SP).

[1] “Beckett’s (privately stated) attitudes towards the actor also have much in common with Craig’s related views on the über-marionette. Craig explained in the preface to the 1925 edition of On the Art of the Theatre that ‘the über-marionette is the actor plus fire, minus egoism; the fire of the gods and demons, without the smoke and steam of mortality’. Craig also wrote that ‘the actor must cease to express himself and begin to express something else; he must no longer imitate, he must indicate…’. Then his acting will become impersonal, he will lose his “egoism” and use his body and voice as though they were materials rather than parts of himself. To this end a symbolical style of acting must be devised, based on the power of the creative imagination. Many actors and directors who worked with Beckett spoke of his personal dislike of what is so often thought of as acting and of his tendency to dehumanise the actors in his plays. Brenda Bruce, who played Winnie in the British première of Happy Days, told me how he tried to get her to speak her lines according to a very strict rhythm and in a very flat tone. To her horror, one day, he even brought a metronome into the theatre and set it down on the floor; ‘this is the rhythm I want you to follow’, he said, leaving it to tick inexorably away. Siân Phillips also spoke about Beckett’s insistence on rhythm and tonelessness when she was rehearsing her recording of the voice for his television play, Eh Joe, with him. ‘We worked like machines’, she said, ‘beating time with our fingers’, until eventually she managed to get somewhere close to the flat, cold, toneless voice that he could hear in his head” (HAYNES; KNOWLSON, 2003, p. 109).

[2] “The whole nature of man tends towards freedom; he therefore carries the proof in his own person that as material for the Theatre he is useless. In the modern theatre, owing to the use of the bodies of men and women as their material, all which is presented there is of an accidental nature. The actions of the actor’s body, the expression of his face, the sounds of his voice, all are at the mercy of the winds of his emotions: these winds, which must blow for ever round the artist, moving without unbalancing him. But with the actor, emotion possesses him; it seizes upon his limbs, moving them whither it will. (…) It is the same with his voice as it is with his movements. Emotion cracks the voice of the actor. It sways his voice to join in the conspiracy against his mind. Emotion works upon the voice of the actor, and he produces the impression of discordant emotion” (CRAIG, 1911, p. 56).

[3] É fundamental pontuar que minha interpretação de Ato sem palavras I foi completamente influenciada pela fala de Fábio de Souza Andrade, no contexto da montagem da peça pelo Coletivo Irmãos Guimarães em 2015, na “Ocupação Sozinhos juntos”.

[4] “Le monologue moderne a une assise beaucoup plus large que le monologue classique: il n’est pas destiné à exhausser le moment délibératif et décisionnel d’un personnage pris dans un conflit qu’il s’agit de mener à son terme: il rend compte globalement de la relation au monde et à lui-même de tel ou tel personnage” (SARRAZAC, 2012, p. 261).

[5] Tradução de Millôr Fernandes. Disponível em: http://www2.uol.com.br/millor/teatro/index.htm. Último acesso em 07/08/2015.

[6] “Seria necessário talvez afastar completamente o ser vivo da cena. Não se pode dizer que não retornaríamos a uma arte de séculos antiquíssimos, cujas máscaras dos trágicos gregos levam, quem sabe, os últimos vestígios. Haveria um dia o uso da escultura, sobre a qual começamos a indagar estranhas questões? O ser humano seria substituído por uma sombra, um reflexo, uma projeção de formas simbólicas ou um ser que possuiria a aparência da vida sem ter vida? Não sei; mas a ausência do homem me parece indispensável. Assim que ele entra em um poema, o imenso peso de sua presença apaga tudo o que está ao seu redor” (MAETERLINCK, 2013, p. 91-92).

[7] cf. Ramos, Luiz Fernando “O bode expiatório da violência modernista”, In: Mimesis espetacular: a margem de inveção possível, pp. 43-49.

[8] “De fato, essa presença soberana e incontestada de corpos livres de culpa nos espaços cênicos da atualidade está relacionada a um longo e penoso processo de emancipação das artes performativas da sombra do macaquear, principalmente afeita ao seu afastamento das formas dramáticas. No plano do drama moderno, por exemplo, considerado em suas vertentes simbolistas ou naturalistas, ainda ocorre uma sublimação dos aspectos físicos em bruto que denota esse recalque, ou essa tentativa de supressão de um corpo indesejado. No caso do simbolismo teatral de Maeterlink, por um lado, na busca de uma presença estática, suporte de uma dramática que evoca uma dimensão metafísica. No caso do naturalismo, por outro, em todo o arsenal de dissimulação da representação, que implica em minimizar ao máximo os traços do ator e maximizar a instância do personagem, domesticando os procedimentos teatrais mais rústicos e buscando a indistinção entre gestos teatrais e ações cotidianas para apagar os aspectos presenciais nas ações interpretadas. Ao mesmo tempo, é nas formas mais avançadas de embate contra a servidão do teatro ao drama, ou do opsis ao mythos, que surgem sinais que apontam para a contemporânea supressão do trauma. Um caso exemplar é o de Gordon Craig e de seu famigerado objeto cênico que substituiria o ator de carne e osso, o ubber-marionetten, ou supermarionete. Mais do que eliminar um corpo de ator, Craig propugnava ali por uma presença que estivesse liberta da função dramática e pudesse significar algo por si mesmo, no imediato da fruição espetacular” (RAMOS, 2012, p. 35).

[9] For this Scene has a life of its own… Not a life which in any way at all runs counter to the life of the Drama. I made it to serve the Drama, and it does so; it serves the whole poetic Drama: and maybe I shall later discover that it can make itself even more useful. I call it the fifth Scene, for it meets the requirements demanded by the modern spirit – the spirit of incessant change: the sceneries we have been using for plays for centuries were merely the old stationary sceneries made to alter. That is quite a different thing to a scene which has a changeable nature. This scene also has what I call a face. This face expresses – its shape receives the light, and in as much as the light changes its position and makes certain other changes, and inasmuch as the scene itself alter its position – the two acting in concert as in a duet, figuring it out together as in a dance – insomuch does it express all the emotions I wish to express (CRAIG, 1923, p. 20).

[10] Hal Foster, em O retorno do real, emprega o “a posteriori” psicanalítico para inverter a leitura de Peter Burger da relação entre as vanguardas históricas e as neovanguardas: “Para Freud, especialmente quando lido por Lacan, a subjetividade não se estabelece de uma vez por todas; ela é estruturada como uma alternância de antecipações e reconstruções de eventos traumáticos. “São necessários sempre dois traumas para fazer um trauma”, comenta Jean Laplanche, que muito fez para esclarecer os diferentes modelos temporais do pensamento freudiano. Um evento só é registrado por meio de outro que o recodifica; só chegamos a ser quem somos no efeito a posteriori (Nachträlichkeit). É essa analogia que quero trazer para os estudos modernos do final do século: a vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos – em suma, num efeito a posteriori que descarta qualquer esquema simples do antes e depois, causa e efeito, origem e repetição” (FOSTER, 2014, p. 46).

[11] “C’est Maeterlinck qui, au temps de Freud, a théorisé avec le plus de force cette seconde forme de la parole muette, du discours inconscient, en analysant dans les drames d’Ibsen le “dialogue du second degré”. Celui-ci exprime non plus les pensées, les sentiments et les intentions des personnages, mais la pensée du “troisième personnage” qui hante le dialogue, l’affrontement avec l’Inconnu, avec les puissances anonymes et insensées de la vie. Ce “langage de la tragédie immobile” transcrit “les gestes inconscients de l’être qui passent leurs mains lumineuses à travers les créneaux de cette enceinte d’artifice où nous sommes enfermés”, les coups de “la main qui ne nous appartient pas et qui frappe aux portes de l’instinct”. On ne peut ouvrir ces portes, dit en substance Maeterlinck, mais on peut écouter ces “coups derrière la porte”. On peut faire du poème dramatique, jadis voué à l’ “arrangement des actions”, le langage de ces coups, la parole de la foule invisible qui hante nos pensées. Peut-être faut-il seulement, pour incarner cette parole sur la scène, un nouveau corps: non plus le corps humain de l’acteur/personnage mais celui d’un être qui “aurait les allures de la vie sans avoir la vie”, un corps d’ombre ou de cire accordé à cette voix multiple et anonyme. Et il en tire cette idée d’un théâtre d’androïdes qui fait communiquer la rêverie romanesque de Villiers de L’Isle-Adam avec le futur du théâtre: la surmarionnette d’Edward Gordon Craig ou le théâtre de la mort de Thadeusz Kantor” (RANCIÈRE, 2001, p. 40-41).

[12] “L’inconscient esthétique, celui qui est consubstantiel au régime esthétique de l’art, se manifeste dans la polarité de cette double scène de la parole muette: d’un côté, la parole écrite sur les corps, qui doit être restituée à sa signification langagière par le travail d’un déchiffrement de d’une réécriture; de l’autre, la parole sourde d’unepuissance sans nom qui se tient derrière toute conscience et toute signification, et à laquelle il faut donner une voix et un corps (…)” (RANCIÈRE, 2001, p. 41).

[13] “There might be something like the mythical primal scream, which stirred some spirits for some time, but, on this account, the moment it emerges it is immediately seized by the other. The first scream may be caused by pain, by the need for food, by frustration and anxiety, but the moment the other hears it, the moment it assumes the place of its address, the moment the other is provoked and interpellated by it, the moment it responds to it, scream retroactively turns into appeal, it is interpreted, endowed with meaning, it is transformed into a speech addressed to the other, it assumes the first function of speech: to address the other and elicit and answer” (DOLAR, 2006, p. 27).

[14] “C’est précisément ce caractère de ‘manque’, d’objet ‘perdu’, selon la terminologie freudienne, qui inscrit la voix dans le champ du pulsionnel: un objet de jouissance qui ‘manque’ et qui pousse le sujet à le rechercher, à combler le manque ouvert par sa ‘perte’, à retrouver la jouissance qui lui est attachée. Mais la quête est vaine et illusoire puisqu’il n’y a pas à proprement parler de perte réelle mais un ‘effet de perte’ induit sur la voit par l’action de l’Autre et de la signification qu’il attribue à une énonciation langagière” (POIZAT, 2001, p. 130).

[15] “La parole fait taire la voix, la réduit au silence. Suport de l’énonciation discursive, la voix présente en effet la particularité de s’effacer littéralement derrière le sens du discours qu’elle énonce. Cette observation peut paraître énigmatique, elle est pourtant elle aussi, d’expérience quotidienne. Quand, par exemple, quelqu’un prend la parole, on est souvent au début capté par les caractéristiques de sa voix, son accent… mais très vite cela disparaît sitôt qu’on fait attention au sens de ce qui est dit, à tel point que pour ceux qui sont bilingues, il leur arrive fréquemment d’être incapables de se souvenir en quelle langue tel ou tel propos leur a été dit, alors même que les caractéristiques acoustiques des deux lnagues sont radicalement différentes et ne peuvent être confondues. Le même phénomène se produit lorsque le support de l’énonciation n’est pas sonore mais gestuel, comme dans une conversation entre sourds en langue de signes. C’est ainsi qu’il arrive fréquemment aux interprètes langue orale/langue des signes, d’être incapables de dire si tel ou tel échange avec un sourd bilingue orale/langue des signes, a été tenu dans la langue orale ou en langue des signes. On ne peut trouver meilleure illustration de l’effet d’effacement de la voix par la signification. La part de corps mise en jeu pour une énonciation en langue des signes est pourtant, évidemment, dune nature radicalement différente de celle de l’énonciation acoustique. Elle ne passe même pas par les mêmes cannaux sensoriels. Malgré cela le souvenir s’en perd, s’efface derrière le sens” (POIZAT, 2001, p. 127-128).

[16] “Maybe we can sum up this recurrence into a Lacanian thesis: the reduction of the voice that phonology has attempted – phonology as the paradigmatic showcase of structural analysis – has left a remainder. Not as any positive feature that could not be entirely dissolved into its binary logical web, not as some seductive imaginary quality that would escape this operation, but precisely as the object in the Lacanian sense. It is only the reduction of the voice – in all its positivity, lock, stock, and barrel – that produces the voice as the object” (DOLAR, 2006, p. 35-36).

[17] Pode-se retomar, aqui, a formulação de Lacan quanto à alienação – ao fading do sujeito como primeiro movimento de sua identificação – em Position de l’inconscient: “L’effet de langage, c’est la cause introduite dans le sujet. Par cet effet il n’est pas cause de lui-même, il porte en lui le ver de la cause qui le refend. Car sa cause, c’est le signifiant sans lequel il n’y aurait aucun sujet dans le réel. Mais ce sujet, c’est ce que le signifiant représente, et il ne saurait rien représenter que pour un autre signifiant: à quoi dès lors se reduit le sujet qui écoute.

Le sujet donc, on ne lui parle pas. Ça parle de lui, et c’est là qu’il s’appréhende, et ce d’autant plus forcément qu’avant que du seul fait que ça s’adresse à lui, il disparaisse comme sujet sous le signifiant qu’il devient, il n’était absolument rien. Mais ce rien se soutient de son avènement, maintenant produit par l’appel fait dans l’Autre au deuxième signifiant.

Effet de langage en ce qu’il naît de cette refente originelle, le sujet traduit une synchronie signifiante en cette primordiale pulsation temporelle qui est le fading constituant de son identification. C’est le premier mouvement” (LACAN, 1999, p. 315).

[18] “Bringing the voice from the background to the forefront entails a reversal, or a structural illusion: the voice appears to be the locus of true expression, the place where what cannot be said can nevertheless be conveyed. The voice is endowed with profundity: by not meaning anything, it appears to mean more than mere words, it becomes the bearer of some unfathomable originary meaning which, supposedly, got lost with language. It seems still to maintain the link with nature, on the one hand – the nature of a paradise lost – and on the other hand to transcend language, the cultural and symbolic barriers, in the opposite direction, as it were: it promises an ascent to divinity, an elevation above the empirical, the mediated, the limited, worldly human concerns. This illusion of transcendence accompanied the long history of the voice as the agent of the sacred, and the highly acclaimed role of music was based on its ambiguous link with both nature and divinity. When Orpheus, the emblematic and archetypal singer, sings, it is in order to tame wild beasts and bend gods; his true audience consists not of men, but of creatures beneath and above culture. Of course this promise of a state of some primordial fusion to which the voice should bear witness is always a retroactive construction. It should be stated clearly: it is only through language, via language, by the symbolic, that there is voice, and music exists only for a speaking being. The voice as the bearer of a deeper sense, of some profound message, is a structural illusion, the core of a fantasy that the singing voice might cure the wound inflicted by culture, restore the loss that we suffered by the assumption of the symbolic order. This deceptive promise disavows the fact that the voice owes its fascination to this wound, and that its allegedly miraculous force stems from its being situated in this gap. If the psychoanalytic name for this gap is castration, then we can remember that Freud’s theory of fetishism is based precisely on the fetish materializing the disavowal of castration” (DOLAR, 2006, p. 31-32).

 

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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