Resta pouco a dizer, mas o resto é essencial

Crítica do Programa II do Festival Resta Pouco a Dizer

15 de março de 2008 Críticas
Performance: Respiração +. Foto: divulgação.

Assisti no Oi Futuro ao segundo programa do conjunto de peças curtas de Samuel Beckett, apresentadas sob o nome Resta pouco a dizer, dirigidas por Adriano e Fernando Guimarães. O programa se inicia pela apresentação da performance Respiração +. Esta consiste em: duas caixas de vidro, suspensas por uma armação de ferro, contendo água. Dois performers, por meio de escadas, entram nas caixas. Um terceiro performer porta uma campainha e um relógio. A cada ressoar da campainha, um dos performers emerge da água e instantaneamente diz um texto que alude ao ato de respirar (necessidade, capacidade, etc.).

A respiração ali está, por sua escassez, acentuada. O movimento habitual e por vezes imperceptível (por sua freqüência) é transmudado em artifício, pela via da restrição. Pela falta, percebemos a respiração em sua necessidade. Ecos desta primeira performance ocorrem, em seguida, sobre o palco, onde são substituídas as caixas por baldes (Respiração I e Respiração II).

As “Respirações” (o conjunto das performances) procedem como uma costura entre as três peças encenadas. Ao que me parece, há um forte diálogo entre os textos e as performances. Primeiramente gostaria de apontar duas opções feitas pelos diretores, o modo como foram levadas à cena: Catástrofe, Ato sem palavras II e Jogo. Foi mantida, nas três montagens, certa “fidelidade” aos textos de Beckett: não houve justaposição de outros elementos, nem a inserção de citações. Outro ponto comum: algumas rubricas dos textos foram expostas via projeção; era oferecido desse modo um contato direto com um fragmento da peça escrita (sabia-se de antemão os elementos de base das cenas que se dariam a seguir).

Sugiro agora (de modo inconsistente, mas somente para dar a ver alguns pontos) interpretações sobre as peças de Beckett. As três estruturam-se sobre um regime de coerção. Catástrofe se sustenta entre a possibilidade e a impossibilidade do ver. Ato sem palavras II, pela repetição de uma mesma partitura física em ritmos díspares, coloca ação e inação como possíveis. Em Jogo, o curto tempo concedido a fala, a expõe a contínuas restrições. Se possíveis são essas visadas sobre os textos, digo que as “Respirações” foram estruturadas sobre princípios similares: é na economia de elementos, no limite a que estes são forçados, estando quase por perder suas fronteiras (o que vemos pode tornar-se indistinto aos olhos), que é performatizada a necessidade. Pela escassez, aquilo que a principio nos é comum, se presentifica.

Todo o programa me pareceu ter sido gerado através do franco diálogo com os textos escolhidos, criando-se, a partir do material oferecido por estes, as performances Respiração +, Respiração I e II; e estas por estarem ali, por entre as peças, são também produtoras de ecos. Esbarra-se por vezes em excessos nas interpretações dos atores (Catástrofe) ou problemas na dicção (Jogo), mas, de todo modo, o programa 2 de Resta pouco a dizer me pareceu ser uma proposta consciente e sensível às demandas dos textos de Samuel Beckett.

Vol. I, nº 1, março de 2008

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