“A vida é perto”

Crítica da peça Inbox, de Gregório Duvivier e Clarice Falcão

30 de setembro de 2011 Críticas
Maria Eduarda e Gregório Duvivier. Foto: Theodora Duvivier.

Com a distância física não se brinca. Será? Depois de tantos emails trocados e conversas em chats nas quais a prioridade era saciar a curiosidade sobre vida do outro, a escritora Ana, personagem da estreia dramatúrgica de Gregório Duvivier e Clarice Falcão, descobre o quanto de ficção pode haver por detrás da tela do computador.

Em meio à ansiedade de não conseguir escrever seu segundo livro, Ana vê num fã que se aproxima virtualmente, John, a oportunidade de disfarçar o “ócio criativo” como “tempo ocioso” enquanto a inspiração não chega. Assim sendo, começa a estabelecer um tipo de amizade virtual com John, um rapaz viajado, que não se fixa em país algum, com um humor bacana, rico, e que parece ser sincero. Com o tempo as verdades de Ana também vão aparecendo: o livro que não sai da página em branco, o casamento morno, o tédio com a própria vida. Ana diz que sua literatura tem um quê autobiográfico, seu primeiro livro fala de seu marido, André, mas agora está tudo sem graça, não tem sobre o que escrever. John é cool, tem amigos incríveis, e mora em algum país muito distante. Duas pessoas, ao mesmo tempo, em dois espaços diferentes.

Por isso, o palco se divide. Uma mesa de computador está centralizada no proscênio. Metade dela tem objetos pertencentes a Ana, a outra metade, com as coisas de John. Em torno das metades da mesa, a cenografia de Aurora dos Campos simula as casas das personagens. A mesa é central porque a relação é inteiramente vivida ali. Sempre ao mesmo tempo, em duas partes do mundo, Ana e John se encontram em casa, em frente à tela. A direção de Bel Garcia dinamiza a encenação, que poderia ser meramente estática, com trocas de roupas, idas à geladeira, subidas e descidas de escada, cigarros e bebidas. Tudo numa movimentação cotidiana, natural, com coisas que se pode fazer enquanto a internet continua dizendo que você está ali. Por muito tempo as personagens permanecem apenas em suas próprias metades. Até que a história virtual dos dois se torna estranhamente confusa.

Dessas histórias de internet que as gerações mais recentes conhecem bem – na plateia, enquanto a maioria jovem do público ria alto com uma fala que dizia mais ou menos “eu sei que ninguém mais usa Hotmail, mas eu tenho preguiça de trocar”, a parcela de espectadores que não viveu sua adolescência e juventude trocando emails olhava pros lados com uma expressão interrogativa. A peça talvez não tenha conquistado tanto esta parte do público, mas reparando bem, a história dos dois poderia ter se dado por cartas, o que mudaria, claro, a velocidade dos acontecimentos, mas ainda assim poderia ter acontecido. Até porque, não é nada atual e inovador uma moça se dizer “encantada” por um rapaz do qual só se sabe o nome e umas historinhas sobre sua vida que podem muito bem ser mentira. Ana foi sincera com John. John desapareceu da internet. O que é o mesmo que sumir no mundo.

Se a história tivesse sido escrita por cartas mudaria também a forma da dramaturgia, que é, teatralmente, a pesquisa, ou a parte mais interessante do projeto. O texto é composto principalmente por emails trocados, e por algumas conversas aleatórias em chats. Os atores falam/encenam os emails de seus respectivos personagens. A enunciação dos emails evidencia a intrínseca estrutura dialógica que, cotidianamente, só é possível perceber por meio da leitura, ou da imaginação dos envolvidos na conversa (porque nós sempre imaginamos “como” o outro irá ler o que escrevemos). Então, a dramaturgia obriga a interpretação a encontrar um lugar de fala que é usual, mas é estranho também. E esta maneira de dizer sai como um misto de “o que eu escrevi” com “leitura em voz alta” mais “tom de conversa”. Um entre “o que está escrito” e o “como eu gostaria que o outro lesse, imaginando que eu estivesse falando aquilo em voz alta”. As interpretações de Maria Eduarda e Gregório Duvivier seguem exatamente esta intenção descrita. O texto inteiro é falado neste distanciamento que te engana, – um distanciamento falso, porque o email foi escrito por quem o fala, por isso, ele é íntimo do personagem, não distante – um distanciamento de leitura.

Maria Eduarda e Gregório Duvivier. Foto: Theodora Duvivier.

O tom de distanciamento de leitura acaba se tornando a regra da interpretação. E ela não sofre grandes abalos ou movimentos porque, de fato, os momentos de conflito, ou de nervosismo que só a personagem Ana perpassa ficam todos presos no Inbox. A tensão não sai da caixa de email, e como John não responde mais, a única saída de Ana é variar bebidas alcoólicas com emails angustiados. O público continua rindo dos clichês dos desencontros virtuais, mas a espera por resposta cansa não só a principal interessada. Quando John reaparece, ele diz a Ana mais um clichê que nós não cansamos de ouvir, nem de concordar: “a vida é perto”. Não dá para ficar inventando vidas à distância. A simpática moral da história é um elo de identificação certeiro.Dessas coisas de você não saber enxergar quem está ao seu lado. É bom que alguém te lembre disso às vezes. Alguém ou uma peça de teatro que ainda deu um jeito de atualizar o tema pra lá de antigo. Um tema de qualquer tempo, qualquer espaço. Aliás, as metades do palco não formam necessariamente espaços segregados. As duas metades são uma casa só, com os objetos das pessoas que moram nela, enfim, com apenas uma geladeira, somente um cabideiro. E aí dá para ficar pensando naquela relação do longe de quem está perto, perto de quem está longe… Uma reflexão corriqueira, que pode ser abordada numa conversa de um chat qualquer, e ser esquecida depois.

Ainda que “inbox”, a história é uma repetição de tantas outras. O que não dá para negar, neste caso, é que só com emails se escreve uma narrativa. E que tem uma pergunta, que independentemente da forma, vai sempre aparecer para ilustrar a vida dos casais:

“- Vc tá aí?”

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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