Atos da fala como percepção

Crítica da peça Arte, de Yasmina Reza

23 de junho de 2012 Críticas
Foto: André Wanderley.

A peça Arte, em cartaz no Teatro do Leblon, encena o texto da dramaturga argelina, radicada na França, Yasmina Reza que, desde a sua estreia em 1995 em Paris, ganhou uma série de traduções e encenações em diversos países. No Brasil, esta encenação é realizada pela segunda vez, tendo sido a primeira dirigida por Mauro Rasi em 1999, com José Mayer, Luis Gustavo e Pedro Paulo Rangel formando o elenco. A montagem atual tem a tradução e a direção de Emílio de Mello e conta com os atores Marcelo Flores, Claudio Gabriel e Vladimir Brichta. Nessa montagem se dá a ver uma proposição que articula seus elementos em uma relação que ilumina a dramaturgia, deixando escapar em sua composição estética a força dos atos da fala como construção das nossas subjetividades.

A dramaturgia de Arte toma a linguagem como um modo de ação em que os indivíduos atuam sobre os outros, sobretudo por seus discursos, estabelecendo vínculos por meio dos confrontos, acordos, consensos e opiniões dissonantes. As trocas verbais são elementos que acabam influenciando a construção subjetiva dos personagens e fundamentando a percepção que estes têm dos acontecimentos. Dois movimentos importantes estão em jogo na linguagem aqui. Um deles é o fato dela se perguntar todo o tempo por seu significado ou mesmo por inquirir a respeito de diferentes maneiras de dizer alguma coisa, sobre seu preciosismo, sobre sua relação lógica com os referentes. Outro acontecimento está revelado em seu modo de montagem, dado pela intermitência entre os diálogos (clara inter-subjetivação) e o efeito destes nos solilóquios em que os personagens expressam suas percepções sobre o outro (calcado no que se acabou de dizer/escutar), e que influencia o processo de construção mental. Os solilóquios não são apenas interrupções do ritmo, mas fazem aparecer contrarritimos, ou seja, ritmos de tempos heterogêneos que trazem complexidade para a causalidade. Mostram também a importância e a implicação dos pensamentos, do que não é verbalizado, do que pode se fazer ouvir no silêncio.

Esta construção pela montagem de solilóquios e diálogos deixa transparecer um discurso que se realiza em um duplo movimento entre a desconstrução e o recolhimento dos fragmentos em uma nova arrumação. A escolha da arte contemporânea como instância para a experimentação de uma potência do teatro que se realiza na linguagem é, portanto, mais que uma espécie de mote para o desdobramento das discussões afetivas entre os personagens, uma qualidade radical do trabalho de arte que se pergunta a respeito de si mesmo, ao mesmo tempo em que possibilita a visada crítica da percepção.

A direção de Emílio de Mello procurou por elementos que sinalizam a força da linguagem da dramaturgia em contraponto com a ideia de ação. Se pensarmos que as duas ações fundamentais presentes no texto são a inusitada compra do quadro branco (que se dá logo no início) e mais adiante uma agressão inconsciente (sem maiores danos físicos ao agredido), percebemos uma boa dose de humor permeia o fazer dos personagens. Assim, fatos como os atores estarem mais distraidamente em cena antes do início da peça conversando baixinho, cantando uma canção, arrumando o cenário e tocando o sinal, se combinam com a troca dos elementos (objetos de cena) que realizam entre uma cena e outra e dão a ver tanto a percepção da estética como uma construção renovada de fragmentos, como deixa vazar um tempo de silêncio que alarga os sentidos do que foi dito. As trocas entre as cenas valorizam o silêncio como instância de eco para as vozes e pensamentos enquanto os corpos agem. O ritmo rápido das falas comporta instantes de pequenos tempos que escapam à noção mais tradicional de diálogo dramático ou psicologizante, sem deixar de trazer a reflexão em ato – criando possibilidades de remetimentos para o público.

Os atores constroem suas composições por essa mesma intenção que valoriza os atos da fala e as possibilidades do silêncio, favorecidos por gestos mais contidos, de qualidade clara e precisa. As atuações pontuam humor e afetos, elementos imprescindíveis na relação de amizade dos personagens e que elaboram sentidos com os quais a recepção pode se relacionar. Nesta direção, os atores perfazem uma semelhança com o trabalho da arte contemporânea, com sua proposição de estar em obra, só podendo ser concebida com a presença da recepção. Marcelo Flores agrega em suas falas e em seu corpo uma espécie de barril de pólvora que consegue se manter sem se consumir, responsável por uma espécie de energia continuada num limite que, em momentos precisos, deixa escapar os motivos daquilo que o afeta na relação de amizade entre os três. Claudio Gabriel mostra suas afetações mais reservadamente, um certo cinismo e uma composição com as mãos que deixa transparecer seu modo de defesa. Uma impressão possível é a de que em alguns momentos esses gestos estão um tanto repetidos e parecem querer resolver um modo de estar em cena, sobretudo nos solilóquios. Vladimir Brichta, embora carregue alguns gestos excessivos, dá a ver com sensibilidade o sofrimento e a fragilidade de seu personagem.

A cenografia de Aurora dos Campos, para além de dar uma espacialidade ampliada para o palco, cria uma noção de perspectiva problemática com a inserção de dois painéis brancos colocados em posições diagonais (telas que duplicam o objeto menor – o quadro branco comprado que gera o grande desconforto), imprimindo outra dimensão visual que sugere uma tensão formal entre os atores e uma suposta realidade pictórica revelada com humor, tendo em vista os atores diante delas. Essas telas em composição com uma terceira no canto esquerdo do palco ainda imprime a possibilidade de serem percebidas como pontos de fuga, cuja importância essa última parece querer anular. A posição da terceira tela não traça uma combinação harmônica com as outras duas, parece um objeto deslocado, como se tivesse a função de esconder aquela região do palco. Mas ter uma função não é propriamente algo que concerne à ideia de arte. Essa é uma questão que edifica a dramaturgia quando esta confere à arte um modo de repercussão nos personagens. A iluminação de Tomás Ribas cria ambientações entre recortes e amplitudes, como, por exemplo, no momento em que destaca os atores como formas impressas em relevo no painel do fundo. Modos de compor as imagens em relação às formas pictóricas.

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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