A morte que ninguém pode ver

Crítica da peça Paisagem Nua, de Joelson Gusson.

23 de junho de 2012 Críticas
Foto: Paula Kossatz.

O grupo Dragão Voador Teatro Contemporâneo se apresentou com o repertório denominado Trilogia da Matéria, até o início de junho, no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto. As três peças – Manifesto Ciborgue (2009), Paisagem Nua (2011) e Amérika! (2012) – tratam de vícios específicos da sociedade contemporânea: o vício ciborgue, sobre o desejo e viabilidade de transformar o corpo com o uso de próteses; o vício da espetacularização midiática da morte, e a consequente banalização da mesma; e, o vício do consumo, iniciado pela sociedade americana. O que une as dramaturgias é um pensamento voltado para ideia de deterioração, sobre aquilo que, nos atos sociais, contribui para a transfiguração do corpo (a prótese, a morte) e a descaracterização do humano (o consumo). A Trilogia inverte o valor das novidades do nosso tempo, o que para a maioria das pessoas pode ser visto como um comportamento favorável, para este conjunto de artistas, trata-se de um anúncio de falência – da “Matéria” em decomposição.

O espetáculo sobre o qual irei refletir trata da decomposição em sua forma mais crua, e por isso mesmo inalcançável: fala da morte. Não da morte em si, do corpo morto em estado de decomposição natural (é este que é inatingível), mas do que bordeia a morte, do que preenche este imaginário e do que se realiza socialmente em função de uma morte declarada. Os outros espetáculos falam do que o homem é capaz de deteriorar. Paisagem Nua, com Carol Ferman e Joelson Gusson, refere-se à deterioração que o homem ainda não consegue entender. A decomposição, quando não inventada pelo homem, torna-se incompreensível. Por este motivo, necessita de “ajustes” exteriores a ela para tocar algum discernimento. A morte continua sendo o nosso maior mistério.

A passarela verde neon que divide o espaço cênico, o globo de espelhos de discoteca ao fundo, as almofadas de tecido brilhoso postas nas laterais da passarela para o público sentar: a morte é um artigo da moda. E vai desfilar em suas mais variadas formas tal como uma criação de grife, assinada, que se despede de seu auge no final de cada estação. A moda morre o tempo todo. A morte não sai de moda. E as duas estão juntas no trabalho do fotógrafo japonês Izima Kaoru na série Landscapes with a corpse, que foi utilizada como motivação para a criação do espetáculo. Nas fotografias (também projetadas em cena), belas imagens de modelos “mortas” usando roupas de estilistas famosos. As modelos “morrem” lindas, a morte é bela e perfeita, assim como a moda. O hiper-realismo das composições fotográficas revela o quanto de artificialidade existe no embelezamento da morte, neste sentido, a imagem da morte romantizada chama a atenção para os discursos que transitam em torno do corpo morto – a ficcicionalização, a espetacularização, a sacralização, a dramatização da morte.

A dramaturgia de Paisagem Nua, ora ficção, ora realidade (quando, por exemplo, Joelson Gusson, ator e diretor da peça, diz um texto explicativo sobre as fotografias de Kaoru) se propõe como negação à forma sensacionalista do tratamento da morte. A palavra “espetacularização”, com este cunho depreciativo que conhecemos, que retira a importância das coisas ao invés de dar-lhes propriedade, enfim, banaliza-as, parece ser o motivo para um maior desconforto. De outro lado, anuncia-se o “espetáculo” como o único lugar no qual a morte ainda pode se tornar visível (o espetáculo artístico). O que diferencia a espetacularização midiática do espetáculo teatral? A arte, propriamente. Mas o que não se diferencia? Em que momento o espetáculo e o seu derivativo se assemelham? A crítica à espetacularização parte do entendimento de que a mídia, com seus recursos que primam por criar sensações a partir de notícias exageradas, esvazia da morte o seu sentido sacro e a preenche com uma matéria vulgar. Já no palco, a morte poderia atingir um estado de presença superior. Entretanto, a morte, como que dando uma rasteira neste pensamento, posicionando-se acima da nossa capacidade de julgar os meios de anunciá-la, ou de descrevê-la, mostra que a sua intocabilidade não pode se fazer presente, nem no palco, nem fora dele. Isto ocorre porque a morte, independente da qualidade de sua representação, será sempre dramatizada. Para nos aproximarmos da morte, a mesma passa por um processo de construção dramática – às vezes em prol da comoção medíocre, às vezes não.

Então, esta tentativa de fazer ver a morte de outra maneira é interessante como tentativa, mas como falar de assassinatos, suicídios, acidentes, doenças terminais e mortes naturais sem ficcionalizar, ou narrar tal como um repórter, a morte que já se deu? Como ficar diante da morte longe da cena da morte verdadeira? Joelson narra uma experiência particular (é o que parece) de um dia em que precisou levar a mãe de carro até o local de um acidente de trânsito com uma vítima fatal. No meio da estrada, esperando resgate, a mulher estirada no chão tinha as unhas pintadas de vermelho vivo e um rádio de fita K7 tocava ininterruptamente tornando a “cena” angustiante. Pois bem, a morte verdadeira, até em seu instante real, só pode ser vista como “cena”. A mulher morta foi lida como unhas vermelhas, cenário ermo e trilha sonora. E qualquer outra pessoa poderia ter tido a mesma imagem, a mesma visão cênica do acontecimento, porque a morte não era visível nem mesmo no corpo morto daquela mulher. A morte é uma “cena” preparada, como uma composição fotográfica, ou alguns minutos de passarela. A morte não é nada disso, mas é vista como se fosse, porque se não somos nós que a dramatizamos, ela mesma se dramatiza.

Assim, a morte na passarela de Paisagem Nua é a mesma dos jornais, só que arrumada de terno e vestido elegante, espetaculosa, protagonista, dona da passarela e do microfone, com muito glamour. A morte que não quer te fazer chorar à toa, mas te fazer rir da cara dela.

E quanto ao título do espetáculo, uma evidente inversão do nome da série fotográfica de Kaoru, na qual o fotógrafo forja corpos mortos, a Paisagem do Dragão Voador, é Nua, porque os cadáveres, já compreendemos, não são visíveis.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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