Posse e destruição

Crítica da peça Amérika! de Joelson Gusson, do Dragão Voador Teatro Contemporâneo

17 de maio de 2012 Críticas
Foto: Paula Kossatz.

Como extrair dos clichês, imagens que digam do mundo em que vivemos? Essa é uma provocação de Amérika! que, dita de outro modo, propõe ao espectador a renúncia aos modos habituais de se relacionar com os elementos da cultura justamente por meio da incidência sobre o lugar-comum, sobre um saber que não nos pertence, já que perpassa gerações. Para dar a ver algo tão formador de nossas personalidades, como é o consumo, uma das possibilidades é jogar. O termo jogar aqui também tem a feição do brincar infantil. Esse brincar na criança é acompanhado pela imitação e pela inabalável crença no brinquedo. Quando a criança brinca transforma a função e a imagem das coisas num relance. Uma poética que se vale de algo em semelhança com o brincar pode oferecer um distanciamento que estimula a visão de uma duplicidade própria das coisas, uma espécie de dança entre o material original e o objeto elaborado. No caso de Amérika!, o trânsito de personagens e situações-clichês aponta para a crítica na medida em que não existe a crença absoluta nas tipificações – os atores brincam de brincar.

Neste sentido, a estrutura da peça é uma tensão entre a fragmentação e um fio condutor. A meu ver, esse estado de tensão perpassa toda a encenação que se pauta por um movimento entre a posse (o fio condutor), e a destruição (o jogo, o brincar, os fragmentos). Posse e destruição são duas ideias que se conjugam no ato de profanar, assim como fazem as crianças ao brincar. Como está escrito no programa, uma das interlocuções para a criação é o texto Elogio da Profanação de Giorgio Agamben em que o filósofo se refere ao significado da palavra profanação como oposição complexa à sacralização. Sacralização significa separar, retirar algo do uso comum e levá-lo para uma esfera específica. Profanação é o movimento contrário que restitui ao uso comum o que foi separado, o que foi retirado da esfera pública.

A aproximação da esfera do consumo, pelo seu paroxismo, acaba dando a ver algumas possibilidades críticas que, de outra forma, deixaríamos como sendo algo que “nada tem a ver comigo”. A dramaturgia cria discursos que gostaríamos de admitir como uma fala estrangeira. O lugar-título escrito com k é alcançado quando conseguimos estabelecer relações com os resíduos que a encenação deixa escapar, resíduos de navegação do que se quer aproximar. Aponta para um modelo circular da atividade criadora, derivado (ou que deriva) do consumo composto por: natureza » cultura» lixo» natureza. Uma imagem possível é a de uma “onda que se ergueu no mar”, mas que não nos deixa ver o final de sua arrebentação, o seu lugar caótico, deixando ver apenas sua homogeneização. Se as cenas são imagens facilmente consumíveis, ao mesmo tempo, são imagens degradadas pelo valor de troca impresso nas mercadorias. O imprevisto aparece na medida em que conseguimos fazer sínteses das informações precedentes, que se estabelecem por lacunas (fragmentação) e continuidades (fio condutor) que formam a dramaturgia e suas imagens.

Amérika! é a terceira peça da Trilogia da Matéria criada pelo grupo Dragão Voador Teatro Contemporâneo, com direção de Joelson Gusson. A investida no trabalho dessa pesquisa iniciou com Manifesto Ciborgue (2008), e teve continuação com Paisagem nua (2010), ambas em cartaz, o que nos dá a oportunidade de assistir à presentificação das abordagens de um processo criativo. É possível perceber, vendo a Trilogia, a proposição da construção de imagens produzidas ao vivo como modo de percepção do mundo, ou seja, a transformação da imagem para além de uma função de mediação e sim, com existência própria. Neste regime, a crítica ao consumo toma a forma do avesso de seu elogio: não existem visões simplesmente acabadas para serem consumidas, na medida em que não são oferecidos dispositivos completamente construídos – eles necessitam do jogo para serem apreendidos. A humanização de Mickey Mouse é menos uma crítica ao antológico personagem do que a nós mesmos. Trata-se da objetualização das relações que, mesmo sabendo que estas possivelmente terão um fim, nós as deslocamos para uma escala de valores semelhante à dos serviços que nos são prestados.

O ponto de exclamação do título pode enfatizar as noções de surpresa e espanto, mas também pode nos confundir e nos deixar levar pelo entusiasmo. Esse é um risco que se corre pelas irregularidades das intensidades das imagens entre as cenas. Uma das consequências é uma espécie de aproximação um tanto ingênua de certas situações. Em contrapartida, o argumento original e a direção de Joelson dão a ver uma construção paulatina, um fio dramatúrgico sub-reptício que mescla fragmentação e necessidades. Todas as informações novas, ou seja, as proposições de novos modos de ver o que está no âmbito das nossas relações com o consumo, aparecem entre conhecidos clichês e o que podemos transformar pela recepção. Esse modo de construção aparece já na cena inicial que se organiza por um movimento de revelação na medida em que vai acontecendo. As composições de Lucas Gouvêa e de Raquel Rocha transitam pela mostragem de clichês como elemento crítico-cômico que aproximam as realidades globalizadas. Na mesma cena, Leonardo Corajo e Cris Larin são figuras menos determinadas, não surgem com uma construção precisa, e só aos poucos se tornam imagens daqueles que não aparecem: os que servem as mesas, os encarregados de preparar a comida, ou os que arrumam os displays com aqueles objetos de que tanto necessitamos para nossa felicidade. Se gostaríamos de ver claramente uma posição em que estivéssemos resguardados, nos sentiríamos imediatamente logrados.

O aspecto de aparecimento paulatino das características dos personagens-mostragens é uma qualidade que vai criando as apreensões em ato em composição com as noções temporais. Assim, as transformações podem ser vistas como profanações, pois a manipulação do jogo está visível. Os atores trabalham no que eu descreveria como um registro em que as regras do jogo ficam expostas. Deste modo, podem jogar sem o elemento sacro, ou seja, a reverência ao mito.

O discurso da Miss Indonésia polemiza a relação entre o desejo pelo chocolate Nestlé e sua afirmação como uma necessidade para além das questões ecológicas ou da sobrevivência dos orangotangos ameaçados de extinção pelo desmatamento que a empresa sustenta. Interessante é que, em um site de concursos de beleza, a Miss indonésia é descrita com a qualidade de uma beleza épica. O que vem a ser uma beleza épica? Talvez, fazendo uma relação selvagem com a Carta sobre a felicidade de Epicuro (“apoio e contraponto” para a peça), a Miss e seu discurso profanam nosso desejo de uma vivência realmente globalizada que estaria investida por relações de ordens causais fundamentais. A vida se mostra esvaziada de grandes eventos que se estendem em seu decorrer – se revela mais como pura atualidade, como um instante que é consumido imediatamente. A bela cena do Tsunami imprime, a meu ver, justamente o contrário da nossa apreensão de uma atualidade pura, na medida em que transforma a temporalidade e dá a ver a progressão e as interferências de outras temporalidades que estão no tempo compactado.

Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. “Elogio da profanação” in Profanações. Trad: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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