O tom crítico da comicidade e da fantasia

Crítica da peça Os Mamutes, montagem da Companhia Omondé para o texto de Jô Bilac

13 de maio de 2012 Críticas
Foto: Rafael Bondi.

A Companhia Omondé, sob direção de Inês Vianna, encenou recentemente na Arena do Espaço SESC e no Galpão Gamboa a peça Os mamutes de Jô Bilac. Nesse primeiro texto do autor, escrito há dez anos, pode ser detectado um universo temático que seria abordado posteriormente em Serpente verde, sabor maçã (escrito em parceria com Larissa Câmara), que é uma forte crítica aos costumes de uma sociedade cada vez mais consumista e superficial, de uma infância tomada por prematura perversidade e crueldade, além de uma crítica à superficialidade nas relações afetivas nos dias de hoje (seja na esfera da família, das relações amorosas, ou entre amigos). Ambas são comédias negras carregadas de ironia e crueza, abordando o que há de mais perverso nas relações na sociedade de consumo exacerbado em que vivemos. Contudo em Os mamutes essa crítica é ainda mais eloquente e direta, provocando um riso nervoso do espectador diante das mais bizarras situações.

Com um caráter de fábula, a peça gira em torno da narração da personagem Isadora Faca no Peito, menina perversa e inteligente, que de seu quarto conta a história de Leon – um rapaz honesto, criado pela avó através dos valores cristãos – que precisa de um emprego. O rapaz tenta uma vaga para fritar hambúrgueres na Mamute’s Food, um fast food que vende hambúrguer de carne humana. Para isso ele precisa matar um mamute, protótipo de um ser humano sem valores morais. Esse dilema o persegue e ele se vê diante de uma encruzilhada: matar um ser humano, por mais vil que seja, ou entrar para o sistema e se tornar também a caça?

Nesta fábula fantástica contada pela menina Isadora, interpretada por Debora Lamm, a direção intensifica o humor da dramaturgia, sublinha o que há de mais cruel e descabido em seus diálogos, reitera a voz crítica do autor ao apelar para o cômico como forma de absorver aquela história. Para este propósito, a comédia é um estilo eficaz. Ela se mostra terreno profícuo para o autor dar voz à sua crítica em cena. O riso é carregado de estranhamento e identificação pelo espectador. Um riso nervoso, diante de situações fantásticas e grotescas, de reviravoltas na trama que convergem para um final nem sempre tão fácil de engolir. O gênero cômico é capaz de colocar uma espécie de lupa sobre a moral, os valores e costumes da sociedade. Pode ser um dinâmico caminho para a crítica social que percebe os aspectos insólitos, risíveis e ridículos de nossa realidade física e moral. Não me parece que há em Os mamutes o desejo do autor de “passar uma mensagem” – atitude que geralmente cai num moralismo ou numa piegas ingenuidade – mas antes, há o desejo de mostrar um aspecto da realidade de seu tempo, como ele a percebe.

Os personagens da peça são personificações exageradas e grotescas que beiram certo nonsense, despidas de qualquer apelo naturalista, porém capazes de produzir a identificação do espectador pelo forte teor crítico evidenciado pelo registro de atuação. Estereótipos exagerados da realidade, figuras saídas de uma fábula fantástica, mas possíveis de reconhecimento, Shiva Moon, Capitão Man, Gêmeo 1 e 2, Lola Blair, Squel são alguns dos mais exemplares da fantasiosa história de Isadora, imaginário não tão distante da realidade de nossas crianças mergulhadas em jogos virtuais e violentos.

Junto aos personagens demarcados desde o início da ação, há o coro, um dos elementos determinantes (talvez o mais incisivo, junto às falas da personagem narradora) para a materialização da voz do autor. É através desse dispositivo que ficam mais claras as críticas e comentários surgidos ao longo da dramaturgia. Corpo alegórico e coletivo, o coro endossa o tom fantástico do imaginário infantil contido no texto e atestado na encenação. Esse coro, em que somente a personagem central não faz parte em nenhum momento, canta e executa uma coreografia marcada, uma dança desenhada no espaço e que segue a mesma linha do exagero, do artificial. Não vemos os atores simplesmente dirigindo-se ao público e proferindo as canções num “olho no olho”. É um coro que olha para a história, sublinha o surreal da ação e se expande no espaço com forte apelo musical e rítmico. A direção musical de Marcelo Alonso Neves cria uma música que é forte elemento na condução narrativa da peça, tocada ao vivo junto ao coro e compondo uma sonoplastia viva e certeira à montagem.

A direção de Inês Viana dialoga pontualmente com a dramaturgia de Jô Bilac ao externar o absurdo da ação dramática da peça – caça aos seres humanos coisificados – através da artificialidade proposta nas atuações. O excesso na entonação das falas, nos gestos emblemáticos e coreografados das atuações é proposital e bem executado em todo o trabalho. Somente na atuação de Diogo Camargos para o personagem Leon – personagem mais próximo de nossa realidade – esse registro é minimizado, e ainda percebemos o esforço do ator em dosar uma carga emocional e psicológica no personagem. Mas o trabalho que se mostra mais sofisticado em Os mamutes é o de Debora Lamm, que consegue compor uma figura infantil frágil e perversa, doce e sarcástica. Há uma doçura em sua composição física, em seus movimentos corporais que imediatamente entra em choque com a perversidade na condução que dá à história, e em como se relaciona com os fatos que sua imaginação mesmo cria. O exagero da personagem mostra o absurdo de uma inocência perdida e ao mesmo tempo exacerbada diante de seus inofensivos brinquedos. Em seu registro podemos vislumbrar ao mesmo tempo a menina contando a fábula, dentro da mais pura inventividade de uma criança, e a crueldade adulta, já instalada em seu imaginário.

O mesmo excesso das atuações e do texto pode ser verificado na concepção dos figurinos por Flávio Souza. Exceto pela caracterização de Debora Lamm e de Diogo Camargos, em que a vestimenta é mais realista e cotidiana, os demais figurinos compõem com uma acentuada caracterização (que chega a um nível grotesco na personagem Shiva Moon), um clima de bufonaria, com muitos tecidos sobrepostos e cores mais ocres e fortes. Esses figurinos são extensões do corpo dos atores, acentuam a artificialidade das composições e seu estatuto alegórico. Instalam o clima onírico da trama desenrolada em cena pelo imaginário da narradora Isabela. Também a cenografia de Nello Marrese e os recortes de luz de Renato Machado materializam todo o ambiente delirante da fábula infantil. O chão é revestido por um tapete de grama artificial (uma cor que remete diretamente a uma Alice no país das maravilhas ou A fantástica fábrica de chocolates, exemplares infantis que externam terror e crueldade em certa medida). Há uma cama que serve de baú de onde sai o personagem Capitão Man (vilão de história em quadrinhos interpretado por Ricardo Souzedo, que se movimenta no espaço sobre patins, trazendo mais um elemento lúdico ao contexto da peça) e brinquedos espalhados pelo espaço. O universo infantil das cores e brinquedos evocado pela montagem causa um estranhamento diante da narrativa cômica de tons perversamente negros. Assim como o faz o desenho de luz de Renato Machado confere um dinamismo a esse mundo infantil evocado pela cenografia, detalhando-o em recortes precisos que destacam os elementos, que são funcionais, da cena. Essa luz corrobora com o tom onírico e fantasioso que há na fábula de Jô Bilac.

Acredito que a imersão da Companhia Omondé no mundo proposto pelo autor tenha sido determinante para a montagem de Os mamutes ter imediata e positiva receptividade do público diante das ações desencadeadas ao longo da narrativa. É antes de tudo um trabalho de grupo, com a cara de uma companhia que busca sua identidade artística por meio de uma estética cômica, correndo os riscos que esse caminho oferece. A companhia materializa uma dramaturgia que tem algo a dizer sem ser ingênua ou pueril. Parece-me que o mergulho da equipe criativa no universo e na questão colocada por Jô Bilac é o pilar que sustenta tal encenação, que transita entre o jocoso e o trágico, que reitera o absurdo daquelas situações assumindo seu caráter perverso, caráter de realidade. O jogo entre os atores, os músicos, o coro, entre a voz do autor e o que ele quer comunicar ao espectador é eficaz porque não há meio termo: todos estão dispostos ao jogo proposto pelo imaginário da inocente menina Isadora Faca no Peito.

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro pela Unirio.

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