Não somos destino

Crítica da versão online da peça Mata teu pai, de Grace Passô

17 de outubro de 2021 Críticas

Não sei há quantos dias permaneço aqui, entre uma vídeochamada e uma aula remota, entre um livro e uma performance. Arrisco uma palavra ou outra, engasgo, gaguejo, desisto, me entrego… E, então, escrevo. Neste empenho em manter a sanidade, abro um vinho, leio um livro, ouso começar um artigo do zero, apago as únicas cinco linhas que esbocei. Respiro. Eu acho. Busco o ar. Nem sempre o encontro. Falta o ar. Não sei se é ansiedade, mais uma crise de asma ou sintoma de Covid-19. Ou se é tudo isso ao mesmo tempo. Quinze abas abertas no notebook. Em uma delas, sinto o impacto de uma colisão forte o bastante para me sacudir, me resgatar de mim mesma em um fim de tarde de domingo, um encontro que me devolveu o ar que há poucas linhas me faltava. Encontrei-me com Debora, Debora Lamm, dando vida ao texto “Mata teu pai”, de Grace Passô.

“Na minha terra não tratariam essa febre assim, tratariam essa febre com uma simpatia que não existe aqui.”

O texto é de 2016, o espetáculo estreou nos palcos em 2017, com direção de Inez Viana. A peça passou por Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Mas o monólogo de Débora Lamm ganhou nova forma em 2020. Não mais se materializa em palcos país afora, mas repercute em telas e alcança espaços diversos. Refiro-me a este espaço que é tão real e tão abstrato ao mesmo tempo, a este espaço sem toque, mas de tantas trocas, este já famigerado palco em espaço virtual.

“Para de achar que a gente é destino!”

Débora é Medeia, uma figura bastante revisitada, readaptada, redesenhada por dramaturgos, poetas, músicos, escritores, pesquisadores, enfim… Mas, ao contrário da trama da mulher indomável na tragédia de Eurípedes, a personagem na releitura de Grace Passô mobiliza-se em prol da luta, para além do desejo de vingança. Medéia faz das palavras sua arma: “Preciso que me escutem!”. O texto se direciona a buscar o engajamento, enquanto a protagonista apresenta a sua narrativa e se dirige à plateia, ou seja, a nós, às suas filhas, filhas de Medeia. “Olha pra mim, muda essa história!” O apelo é repetido e revisitado durante a performance, sob a iluminação de Nadja Naira e Ana Luzia De Simone e no cenário elaborado por Mina Quental (Atelier da Glória), Medeia traz à tona a ambiguidade da sua narrativa, revisitando o mito trágico, sublinhando suas contradições em tom de convocação. Um convite para re-criarmos juntas a sua história, a nossa história. A Medeia ambientada no Brasil pandêmico do século XXI vive em meio aos escombros da cidade grande, enquanto narra seus encontros com mulheres de diversas nacionalidades: síria, cubana, paulista, judia, haitiana… As figuras femininas evocadas no monólogo são apresentadas como espaços para a demonstração das singularidades e das contradições presentes nos encontros. A estrangeira em cada uma de suas interlocuções revela uma Medeia que se identifica com a condição de imigrante, que não se encerra nestas terras em que pisa, ao mesmo tempo em que não se remete a outro lugar. Como a manifestação de um exílio de si mesma, a indomável mulher encarna o não-lugar, transcende a própria fronteira da subjetividade do “eu”. Entre sonhos, diálogos, descrições e relatos, Medeia experimenta o transbordamento de um corpo há muito encarcerado. Nos seus devaneios, o gozo é o gesto que a faz superar a carne e tornar-se mar. É na água que vaza para fora do corpo que o seu ser é recuperado. É no transcender que ela se faz mulher.

Na voz de Debora, “somente as transexuais que se deitam em camas de hospitais para modificarem seus corpos” a entendem, assim como “somente as terroristas na frente das torres gêmeas” a entendem. A Medeia de Mata teu pai não se conforma, tampouco se afoga ensimesmada em seu próprio lamento. Enquanto a versão euripidiana temia o seu desventurado destino (“Ai! Desgraçada de mim e dos meus males. Ai, ai de mim, que fim será o meu?”), estamos aqui diante de uma Medeia engajada em fazer soar o que há de mais indomável na sua existência: o empenho em reescrever a sua história. O texto proferido por Debora nos provoca a repensar quem são os nossos verdadeiros algozes, ao passo que aponta para a falácia na perpetuação da rivalidade feminina, que tantas vezes é estimulada pela narrativa hegemônica. A culpa não é da mulher que se torna refém das forças sociais, a hamartia não tem como ponto de partida aqui a própria armadilha do patriarcado. Não há oráculo para antecipar um destino que não é acontecimento, mas sim uma elaboração pelas relações de opressão. A culpa tragicamente personificada em Jasão, ou ainda em Creonte, faz aqui visível uma questão de amplitude maior: a culpa é de quem nos faz sentir o violento peso de um fardo que não nos pertence.

Medeia me ilumina o precipício diante do qual nos encontramos e, mais do que isso, ela me convida a saltar. Como em um susto, me transfiro para fora da experiência cênica, olho para os escombros que insistem em permanecer aqui. A experiência do teatro online parece me transferir às distrações que surgem mais espontaneamente do que quando me encontro na plateia do espaço físico. Essa interrupção, em termos brechtianos, me afasta da empatia, enquanto paradoxalmente me conecta às mais urgentes questões subjetivas. Olho para os resquícios de quem já fui. Abraço a minha fúria e pouco a pouco me orgulho das minhas pequenas revoluções. Volto à Medeia: “Vocês mudam uma ou duas palavrinhas do vocabulário de vocês pra dizer que acham injustos esses mesmos homens de sempre. Mudam o jeito de se vestir. Uma ou outra coragem nasce. De vez em quando… Mas romper, mesmo, abraçar a justiça com verdade? Isso vocês não fazem.

Angústia. É esse o sentimento que me atravessa enquanto insisto ser brechtiana e tento me blindar ou manter algum distanciamento do grave no grito de Medeia e do seu olhar inquietante, instigante e persuasivo. Angústia por ser persuadida? Ou esgotamento por insistir em vão neste afastamento impossível? Angústia por sentir demais, por sentir na pele o tremor da sua voz, por sentir o corte das suas palavras e o arrepio provocado pelo suplício no seu olhar? Medeia grita, convoca, clama, apela e abraça! “É sempre de nós que o mundo espera. De nós esperam filhos, de nós esperam amor, amor, mais amor… De nós esperam uma força descomunal, trabalho dentro e fora de casa… De nós esperam beleza! Até mistério esperam de nós.” Por falar em distância, a Medeia de Grace afasta-se da Medeia de Eurípedes, para além da substância e da essência trágica, ela redesenha seus contornos, propõe uma nova potência em seu discurso, ou melhor, uma potência outra, pois incomparáveis são suas vivências, sua relação com o espaço e o tempo, a demanda do seu corpo e, principalmente, as suas urgências insurgentes. Ou como já nos provocou Grace, em um dos seus relatos, “o que faz uma mulher ser indomável?”

A linguagem teatral experimentada por Grace Passô, em sua dramaturgia, orienta-se pelo estranhamento, pelo engajamento crítico do espectador de modo a superar a postura contemplativa na recepção da audiência. A partir de fábulas contemporâneas metafóricas, que se distinguem por evidenciar o jogo de forças entre a ficção construída e a realidade por trás da situação apresentada, Grace busca mobilizar a desconstrução de paradigmas e padrões perpetuados pela sociedade, reconhecendo que há um abismo na comunicação dentro das relações sociais estruturadas e que é preciso investigar o que está mal-entendido, o que não é dito, o que é disfarçado e subtraído pela dinâmica da lógica dominante. Em Mata teu pai, Grace mais uma vez faz do teatro um campo para investigação da linguagem, dedicado a evidenciar o descompasso entre corpos, palavras e imagens, bem como se debruça em ultrapassar as representações sociais e culturais preconcebidas.

Ao final da peça, fiquei com questões que ainda não consigo responder, e, sinceramente, acredito que não existem respostas formalmente alcançáveis. Admito que sequer pretendo alcançá-las. É possível falar em mobilização efetiva sem encontrarmos onde reside o nosso ponto de intersecção, sem essa identificação, que se revela inescapável aos afetos? É viável nos engajarmos em uma causa tão potente, sem uma adesão, ainda que emotiva?

Medeia não me alcança com respostas, sequer me abre a porta desta prisão na qual me encontro. Mas ela me ilumina o precipício, me coloca diante do cárcere, desloca minha posição para frente ao opressor. Medeia me faz ver que tenho febre, uma condição de alerta ao perigo iminente que nos cerca. Medeia entrega uma arma e, com os olhos marejados, me diz: “Tem bala aqui, e tem gatilho também!”

E transito, enfim, neste entre-lugar, nesta impermanência do precário, confrontando os escombros escancarados, escapando de qualquer certeza, longe de qualquer resposta, reconhecendo a catástrofe e atravessando ruínas. Munida de bala, de dor, de fúria. É nessa faísca de esperança que encerro: Nós podemos reescrever essa história. Devemos reescrever essa história! Apagam-se as luzes, Medeia e seus gritos evaporam-se no gesto mais maternal que poderia dar a este mundo. “Olhem pra mim, mudem essa história. Para de achar que a gente é destino e MUDA, muda essa história!”

Sua voz segue ecoando em mim, enquanto sinto meu sangue reaquecer, o ar voltando pouco a pouco aos pulmões, e o despertar de um ato faz o coração bater uma oitava acima.

Filhas de Medeia, minhas irmãs, sejamos todas indomáveis mulheres.

 

Citações retiradas da peça disponível em https://youtu.be/ftMOty5adVQ A versão online de Mata teu pai está disponível no canal do Sesc SP no YouTube, no projeto #EmCasaComSesc.

Bruna Testi é Mestra e Doutoranda em Filosofia na Universidade Federal Fluminense (UFF), vinculada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia (PFI-UFF). Pesquisadora da estética teatral, atriz e militante do coletivo independente “Alguns de Nós” e monitora em formação pela “Escola de Teatro Popular do Rio de Janeiro” (ETP – RJ).

Vol. XIII nº 72, setembro a novembro de 2021

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