Ponto sem partida

Crítica da peça Memória afetiva de um amor esquecido

10 de junho de 2008 Críticas

Com Memória afetiva de um amor esquecido, a companhia Os Dezequilibrados continua investindo nas suas principais propostas – em especial, o trabalho em espaço não-convencional, o vínculo com a gramática cinematográfica e o deslocamento do espectador de uma posição meramente passiva.

Entre estas características, a utilização do espaço não-convencional é, sem dúvida, a mais bem administrada pelo grupo, que investe num espetáculo itinerante pelos oito andares do prédio do Oi Futuro. A verticalidade deste espaço é aproveitada pelo diretor Ivan Sugahara, que já tinha realizado expressiva “ocupação” do quarto de um apartamento em Um quarto de Crime e Castigo e do hall de um cinema em Vida, o filme. Neste novo trabalho, o diretor nem sempre procura aproximar o universo abordado do espaço escolhido, por mais que as instalações do Oi Futuro sejam inicialmente aproveitadas como referentes às da clínica Be Happy, especializada em apagar memórias dolorosas das mentes de seus clientes.

Ivan Sugahara sublinha, pelo menos em alguns momentos, a desconexão entre o espaço e o contexto da cena. É o caso da passagem em que o casal protagonista evoca um espaço externo, transitando na ficção por uma locação bastante destoante do prédio do Oi Futuro. Em Memória afetiva de um amor esquecido, o espaço não reverbera no espectador como uma carga de informação complementar ao que é mostrado, a exemplo das encenações do Teatro da Vertigem, ambientadas em igrejas (Paraíso perdido), hospitais (O livro de Jó) e presídios (Apocalipse, 1,11), mas como uma escolha que, juízos de valor à parte, parece ocasional e, em certa medida, propositadamente arbitrária.

A visão das cenas dispostas entre os andares do prédio é muitas vezes parcial, captada de modo mais ou menos integral dependendo de onde estiver o espectador. Ivan Sugahara aproveita esta variação fazendo, inclusive, com que uma ou outra cena seja mais escutada do que vista, com o provável intuito de transformar a platéia em observadora voyeur. Mas o público, tratado como testemunha do procedimento de apagar as lembranças de um personagem que deseja deletar experiências de sofrimento, não chega a ser deslocado de uma função convencional. É como se o espectador permanecesse no lugar de espectador, sem ser realmente incluído dentro da cena, por mais que a divisão palco/platéia, tanto fora como dentro do teatro Oi Futuro, tenha sido borrada. E o diretor também não aproveita de modo crítico uma eventual passividade do espectador no “papel” de cliente da Be Happy, exposto à ideologia manipuladora e massificadora da empresa.

A conexão com o cinema, por sua vez, vem à tona com alguma timidez no espetáculo. A exceção dos momentos em que os atores extravasam os limites da “tela” e irrompem em cena, durante a parte da montagem passada dentro do teatro, Memória afetiva de um amor esquecido não chega a fazer um acréscimo significativo à discussão temporal contida na contracena entre teatro e cinema. Em certos momentos, talvez o diretor destaque o cinema, manifestação artificial por depender de elementos técnicos para ocorrer, como o espaço da captação do autêntico, a julgar pelos closes no rosto da atriz Cristina Flores. Uma perspectiva ligada, de alguma forma, ao campo temático da montagem: a tendência contemporânea de se evitar o sofrimento a todo custo, de reprimir o extravasamento natural da emoção, através de mecanismos artificiais.

Não é uma percepção original. E está aí – e não no fato de nem sempre avançar nos “tópicos” da pesquisa desenvolvida ao longo dos anos – o principal problema do espetáculo, que não parece portar uma fala específica em relação a uma questão, por si só, já desgastada. Não se trata exatamente de uma falha de dramaturgia, assinada por Rosyane Trotta tendo como inspiração central o filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, mas da própria escolha do grupo Os Dezequilibrados no que diz respeito ao ponto de partida do trabalho. Conectado ao gancho temático, a companhia aborda ainda o desejo desesperado de driblar a passagem do tempo ao realçar o patético da desenfreada sucessão de cirurgias plásticas. Mas novamente neste ponto não constrói uma fala própria. Reitera um discurso corrente, ao invés de buscar um olhar menos viciado a respeito dessa discussão, e perde a oportunidade de realçar o descompasso crescente entre as imagens externa e interna do indivíduo à medida que o tempo avança.

Seja como for, mesmo com todas as restrições, Memória afetiva de um amor esquecido sobrevive graças, em parte, a uma interessante mistura de registros interpretativos buscada por Ivan Sugahara junto ao elenco, característica que remete a Adaptação, o mais interessante entre os filmes roteirizados por Charlie Kaufman, também aproveitado na concepção dramatúrgica. A uniformidade dos primeiros minutos – nos quais todos parecem atuar numa mesma linha, marcada pelo gestual expansivo e pelo elevado tom de voz, elementos que remetem um pouco ao jogo com a platéia do teatro de rua – cede lugar a percursos mais individualizados. A contenção de Saulo Rodrigues, que executa com controle e disciplina a curvatura emocional de Vicente, um personagem discreto, contrasta com o despudor com que Ângela Câmara cria, por meio de uma composição física repleta de pequenos descontroles (em especial, lábios e olhos), uma figura assumidamente caricata. Com menos oportunidades, José Karini é obrigado a lidar com a linearidade messiânica do médico. E Cristina Flores projeta a intensidade de Dora, apesar de incorrer, em determinadas cenas (como a da briga com Vicente, no início do espetáculo), numa melodia vocal algo piegas.

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