Na memória do lar, um trabalho coletivo

Crítica da peça Caco – Possível produção de memória para o espaço da casa

27 de novembro de 2011 Críticas
Caco - possível produção de memória para o espaço da casa. Foto: Divulgação.

Estar diante de um objeto artístico que é fruto da formação acadêmica nunca deixa de ser um ato judicativo, embora muitas vezes nos surpreendamos com um olhar mais complacente, já que estamos diante de jovens cavando seu espaço profissionalmente. Acredito que se abra uma espécie de possibilidade maior para os erros e fragilidades de uma obra que é construída por quem ainda está começando a se inserir no quadro profissional das artes cênicas. Como se um espaço maior para a possibilidade do erro – entendendo o uso do termo da forma mais ampla e dialética, já que, acredito, não há certo e errado na arte e sim tentativas que se sustentam e outras mais frágeis, que não suportam o peso da exposição pública – se abrisse de antemão ao nosso olhar. Fico muito feliz quando vejo um trabalho de jovens recém formados (o que se estende a toda a ficha-técnica, desde diretor, atores, figurinista, cenógrafo e produtor) que antes de “acertar o alvo” ou de fazer um trabalho que se pretende “acabado” experimenta suas novas formas de criação teatral, evidenciando uma postura artística e uma forma singular de fazer teatro. Em Caco – Possível produção de memória para o espaço da casa podemos vislumbrar esse horizonte. Dirigido por Caio Riscado, recém formado no curso de direção da UFRJ, tendo no elenco atores que estão no processo de formação acadêmica e se estabelecendo profissionalmente nos palcos, o espetáculo se estabelece como uma experiência cênica genuína daquelas individualidades e, principalmente, como um trabalho autoral que se expõe e está disposto a correr riscos.

A peça, que esteve em cartaz por duas semanas na programação do Teatro Gláucio Gill, na Ocupação Complexo Duplo, é um espetáculo que trata de forma particular o tema do lar e a instituição familiar como base e primórdios de nossas redes relacionais. A partir de um emaranhado de memórias pessoais, sobre a infância, adolescência, relação com os pais, parentes, datas importantes do calendário familiar, amizades, encontros e desencontros, o espetáculo aborda o contexto do lar, a casa nossa de cada dia e aquela anterior, que construímos pela nossa memória. De caráter lúdico, o trabalho é formatado por elementos teatrais autorreferenciais, dialogando com o vídeo, a dança, o uso intenso de gestualidade marcada e coreografada, uma narrativa fragmentada e a ausência de personagens. Toda essa gama de características formais se completa num quadro colaborativo, onde podemos detectar a contribuição de cada elemento subjetivo envolvido no processo. A dramaturgia é um emaranhado de causos, lembranças e matérias do universo particular de cada individualidade ali entregue àquela experiência, que são costurados por Caio Riscado e Ana Clara Carvalho (que também assina a assistência de direção), fazendo surgir uma dramaturgia fragmentada em que se percebe o discurso falado, uma narrativa distanciada e um intenso discurso corporal, também tributário de um exercício da memória que cada integrante do projeto se propôs a ali expor.

Ao entrarmos no teatro o que se vislumbra é uma atmosfera de busca da aproximação entre espectador e espaço da cena. Uma rápida identificação sobre o tema se estabelece na cenografia (Mathias do Valle), composta por dois varais que correm longitudinalmente o fundo do palco. Neles estão estendidas roupas – o que remete ao espaço fora de nossas casas, ao quintal, quase o espaço da rua, que ao mesmo tempo vem acoplado à imagem materna – e dois lençóis em que são projetadas imagens de uma casa real (com um ventilador em uso, uma cortina que balança, a luz solar de final de tarde que adentra o espaço da casa) e filmagens caseiras, espécie de álbum de família, do arquivo pessoal dos atores. No lado inferior esquerdo um ator está sentado em volta de utensílios domésticos, brinquedos, bebidas e doces. Enquanto isso, uma das atrizes (Bel Flaksman) oferece balas ao público, estabelecendo um contato direto e pessoal. A luz (Ana Clara Carvalho e Pedro Capello) alimenta esse caráter lúdico do espetáculo, jogando com cores na mesma intensidade dos figurinos e das projeções, estabelecendo, assim, uma unidade composicional entre cenografia, iluminação e figurino. Cada ator, ao entrar em cena, carrega um balde, os mais variados em forma, cor e material. Esse objeto, ao longo do espetáculo, adquire as mais diversas funções dentro da teatralidade que supõe, como de banquinho quando os atores se colocam frente a frente com o público – relação essa estabelecida em diversos momentos no decorrer do espetáculo, revelando uma intenção de proximidade física e afetiva entre ator e espectador.

Foto: Divulgação.

Os figurinos (André Von Schimonsky e Cristiane Pinheiro), roupas coloridas, jeans, tênis e camisetas, ostentam um caráter lúdico, dialogam com os objetos cênicos e o espaço quase tomado pelo corte longitudinal dos varais. Há certos deslizes em sua execução, certo desleixo, mas ele opera uma função primordial na construção do trabalho como um todo, na medida em que a cartela de cores usada nos nove figurinos remete invariavelmente à infância, num colorido de cores fortes (azul, laranja, rosa, verde bandeira) que dialoga com o caráter lúdico de toda a encenação.

A atuação se dá num registro da memória de cada indivíduo através de discurso aberto ao espectador (direto e distanciado), um intenso uso da dança para estabelecer esse dispositivo temático (quando um dos atores, por exemplo, enterra sua cabeça num balde e “deforma”o rosto, como se estivesse alterando a própria fisionomia, o que remete aos jogos infantis diante de espelhos, janelas e vidros ). O discurso falado tem um caráter narrativo e que trafega entre a primeira pessoa, num viés mais autobiográfico, e outro discurso mais indireto, em que podemos perceber certo distanciamento que procura colocar o espectador na teia da identificação com o assunto tratado. Em meio a esse discurso falado, o discurso proferido pelo corpo dos atores está ligado ao imaginário das brincadeiras infantis (salada mista, jogos com os baldes, pula-pula num cachorro inflável, karaokê), das memórias dentro do seio familiar (o exagero na hora de um parabéns de aniversário, o desespero da criança atrás de seu cão perdido), e de como o corpo se relaciona com o espaço da casa, da intimidade nossa com a cozinha, um quarto, o quintal, os utensílios ali espalhados. O discurso esfacelado, feito de cacos de memória, palavras, lembranças, imagens, se unifica na conjunção de palavra falada e corpo coreografado, gesto identificado e bem marcado.

O trabalho coletivo evidenciado em Caco expõe um intercâmbio entre os artistas envolvidos na sua feitura: um migra para o espaço do outro, e isso se dá, acredito, não somente por ser um trabalho que nasce dentro do âmbito acadêmico, mas pela sua natureza investigativa e fadada à experimentação, ao erro, às fragilidades próprias de quem está começando os descaminhos da prática artística. Mas que evidencia uma exposição de ideias e tentativas.

Informações sobre Caco – possível produção de memória para o espaço da casa: http://acasadeparedesinvisiveis.blogspot.com/

https://www.facebook.com/pages/CACO-poss%C3%ADvel-produ%C3%A7%C3%A3o-de-mem%C3%B3ria-para-o-espa%C3%A7o-da-casa/253159048047019?sk=info

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro pela Unirio.

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