O inominável-divino-marginal

Crítica da performance Sonho Alterosa, de Caio Riscado, e da exposição Vênus nos espelhos, de Fernando Codeço

25 de outubro de 2013 Críticas

A universidade como espaço de diálogo, de cruzamento entre dramaturgias: ficcionais ou não. Esse foi o contexto proporcionado pelo FITU, Festival de Teatro Integrado da Unirio, que ocorreu entre os dias 2 e 6 de outubro de 2013. Dentro da programação, as pesquisas dos artistas Fernando Codeço e Caio Riscado, interligam-se aleatoriamente por um mesmo universo condutor: o das travestilidades. Aleatoriamente porque nem os artistas tinham consciência do potencial de diálogo travado entre seus trabalhos e nem o festival propôs esse encontro. Mas mesmo para o olhar não especializado era evidente o trânsito fluente do universo travesti na exposição Vênus nos espelhos de Fernado Codeço e na célula performativa Sonho Alterosa de Caio Riscado.

O momento parece ser propício para falar da questão. Com a proliferação da teoria queer pensar em existências e sexualidades explodidas de uma heteronormatividade vigente, pensar numa vida travesti autônoma e não transitória, impregnada no cotidiano do cenário-cidade, parece ser necessário como demanda para a universidade. Esses trabalhos ocupam um lugar importante na transposição de um olhar que encara o travesti como periferia-tabu para o de práticas de proximidade. A universidade funciona como lugar fronteiriço entre o público e o íntimo, a rua e a casa.

É na sala de exposição do CCH (Centro de Ciências Humanas – UNIRIO) que acontece no dia 2 de outubro a mesa de debate Vida e arte marginal que junta a Codeço a alguns colaboradores (1) da sua pesquisa. Entre eles está Luana Muniz – Presidente da Associação das Profissionais do Sexo do Gênero Travesti no Rio de Janeiro. Numa roda intimista, a palavra é dada à Luana. Ela põe as mãos trançadas no peito, agradece: obrigado. Todo seu discurso funciona como desmistificação de um olhar – maravilhado ou preconceituoso – o que interessa a Luana é a real(eza). Ela é rainha, mas de um mundo real, cheio de amores perdidos, de criminalidade e de uma rua que ela consegue evocar através das suas anedotas. Luana nos diz: “Aí você tem que se apropriar da palavra (…). O mundo vulgarizou. Entre a briga do homem e da mulher eu não tenho nada a ver, eu sou travesti. O trabalho que é ‘imortalado’(…). Eu não quero fama eu quero ser conceituada”. Luana como conceito já existe, o seu corpo já é obra: nariz, peito, perna, bunda e seio.

O corpo travesti já é ficcionalizado. Ele se apresenta como trans-formação móvel, como identidade em fluxo e convida o olhar para uma experiência estética. Comporta uma feminilidade exuberante e um falo – que não se exclui, não se esquiva. O travesti não é um animal exótico, mas um corpo dotado de potencial atrativo e, talvez, por isso repelido por uma sociedade de desejos oprimidos. É esse corpo multidimensional, atravessado e borrado que nos chega através dos trabalhos em transparências e em cima de espelhos de Codeço.

O artista teve diversos encontros com travestis nos quais as desenhava através dos seus reflexos nos espelhos. A modelo-travesti é um reflexo atravessado de transparências. O próprio momento de feitura da obra conta com uma tensão sensual na interação entre esses dois corpos – um construtor, o outro obra – que se arranjam num ato-encontro. Na rua, na cama, na Glória. Esses desenhos não se pretendem representações fiéis, apresentam um quê caricatural, são ferramentas de por à prova a marginalidade em que os travestis se encontram. Ao desenhar Codeço se borra junto com sua modelo-reflexo, numa possível obra-interseção.

Foto: Divulgação.

A maneira que as obras estão dispostas na galeria fazem com que o olhar da recepção também seja refletido nos espelhos e através dos desenhos, tomando uma outra dimensão, uma outra camada. Eu agora refletida através deles. Eu intrinsecamente refletida. Me fazem questionar: o que é o perto?

Para além dos desenhos, a exposição conta ainda com três instalações de vídeo: duas delas com grandes transparências pintadas à frente dos vídeos que se fazem quase como um jogo de desvendar – estão sempre na tensão do oculto e do visível – questionam o apreensível; o outro vídeo envolto por um véu branco (que o reflete) se situa através de um leito com uma transparência que comporta um corpo desenhado em tamanho real. Esse mesmo vídeo nos mostra o encontro íntimo do artista com sua modelo entrecortado por imagens de procedimentos cirúrgicos. As imagens são porosas para uma discussão política, ora a beleza e a suavidade daquele corpo posando, sendo artisticamente traçado pelas mãos de Codeço – numa empatia quase romântica – ora a agressividade do corpo submetido a possíveis recortes e colagens.

O resto do espaço é ocupado por uma espécie de ateliê que conta com uma nova fase do projeto que traz repetições de retratos que caminham para o disforme, uma outra tentativa de proximidade do olhar. Essa fase com um teor de maior experimentação (talvez por isso colocada perto de uma mesa com pincéis e tintas, copos, vinho, papéis).

Em um cantinho perto da porta de saída um texto e três fotos. Um relato do encontro de Fernando com Janini e Flávia, que apresentam através do seu vocabulário e sua construção das frases uma abstração do espaço da galeria para a rua. Um transporte imediato, um drible da palavra.

Palavra que remete à célula performativa Sonho Alterosa (2) de Caio Riscado.

A entoação de um canto-protesto-denúncia. A descrição minuciosa de um cenário tão familiar: castelo, fonte, jardim. Impregnado em nós. Em todos os filhos da América. Um homem barbudo é quem fala. A voz é nem suave nem dura. Ele diz pra gente esquecer, ele olha nos nossos olhos e diz: esquece. Tarefa difícil para a recepção que é arrebatada pela investida lúdica do performer que, muito maliciosamente, se utiliza de uma mecânica de negação evocativa para solicitar o nosso esquecimento de um universo normativamente certificado como “feminino-desejável”. O performer evidencia o corpo como possibilidade, parafraseando Bourriaud ao dizer “fica só com uma coisa: fica com um corpo, e a sua possibilidade de negociação infinita” (BOURRIAUD, 2011, p.54).

Entre o esquecer e o escolher ficar, um universo é descrito diante de nós. Nesse sentido o uso da palavra está a serviço da criação de um mundo. A abordagem lúdica é empregada aqui com muita felicidade, servindo como um trampolim de aproximação para o público. A sutileza do discurso impede que o trabalho se aproxime de um tom panfletário, direcionando-o para abordagens políticas sinuosas. A exemplo do áudio em que ouvimos uma carta de abordagem direta à troca de sexo intercalada por nomes de travestis mortas (dado que não é revelado à recepção durante a performance mas que já fora revelado em outra parte da pesquisa). Os nomes aqui cumprem o lugar de denúncia com suavidade quase imperceptível e quebram a objetividade da carta informativa. Enquanto isso, o corpo no espaço se despe em pêlos para, então, se vestir em vestidos e máscaras. O corpo apresenta possibilidades de gestos-sociais, de postura enquanto força, de revelação não óbvia do olhar.

Foto: Bruno Mello.

O olhar ocupa um lugar de extrema importância tanto nesse trabalho quanto em “Venus nos espelhos”. Em Sonho Alterosa o jogo que Caio estabelece é fundamental para a aproximação da recepção entre o performer, em tempo real, e a imagem como potência de um discurso, em um tempo abstrato. A qualidade de “sonho”, palavra presente no título da obra, permeia um olhar que acompanha inúmeras mutações para esse corpo – binário, híbrido, deslumbre. Quanto à Alterosa, palavra da língua portuguesa que significa majestosa, fica um trecho bastante intrigante do texto dito por Caio: “tudo enorme, esgalgado, querendo se fazer presente, querendo ser visto”. Pensando em Luana, a travesti lá do encontro na galeria de Codeço, e suas formas imponentes, consigo lembrar dela dizendo sobre o/a travesti gostar de ser admirado, estar a serviço de ser visto, e o mais importante: “o corpo do travesti já é uma instalação artística”.

Notas:

(1) Ana Carolina Fernandes, Flora Süssekind, Bia Medeiros e Vinicius Nascimento.

(2) Criação e Performance: Caio Riscado; Colaboração: Clarisse Zarvos.

Referência bibliográfica:

BOURRIAUD, Nicolas. Radicante, por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

Mayara Yamada é aluna do bacharelado em Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO.

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