Iluminando o problema da autonomia da obra de arte

Crítica da peça Breu, de Pedro Brício

30 de julho de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

“Para Proust, não se trata de escrever um romance de impressões seletas e felizes, mas sim de enfrentar, por meio da atividade intelectual e espiritual que o exercício da escrita configura, a ameaça do esquecimento, do silêncio e da morte. Em outras palavras, não é a sensação em si (o gosto da Madeleine e a alegria por ele provocada) que determina o processo da escrita verdadeira, mas sim a elaboração dessa sensação, a busca espiritual de seu nome originário, portanto a transformação, pelo trabalho da criação artística, da sensação em linguagem, da sensação em sentido.”

Jeanne-Marie Gagnebin, O rumor das distâncias atravessadas


Dentre os principais problemas da estética, talvez o mais importante seja o problema da autonomia da obra de arte, fundamental para o surgimento da estética em sentido moderno, como disciplina filosófica distinta da ontologia e da ética. Se, na Antiguidade e na Idade Média, o valor das obras era determinado com base em sua capacidade de desempenhar mais ou menos satisfatoriamente funções religiosas, políticas ou educativas, na Modernidade as obras passam a ser pensadas como tendo o seu fim – e a sua lei (nómos) – em si mesmas (autós). Na Crítica da faculdade de julgar, de Kant, encontramos a célebre articulação entre arte e desinteresse. As obras de arte passam a valer tão somente pela sua capacidade de nos propiciar um prazer desinteressado, isto é, um prazer que não é mais condicionado nem por nossos interesses teóricos nem por nossos interesses práticos. Belas não serão mais as obras que servem à nossa vontade de conhecer melhor o mundo, nem tampouco aquelas que fornecem modelos para a boa conduta dos homens, mas tão somente aquelas que, pela lei de sua forma, são capazes de nos dar muito a pensar, sem que possamos encontrar um conceito determinado que explique a causa da atração que elas despertam. Nos termos de Kant, as verdadeiras obras de arte desencadeiam um “jogo livre entre a imaginação e o entendimento”, um jogo no qual o entendimento tenta dar um sentido às múltiplas imagens sensoriais produzidas pelas obras, sem jamais ser inteiramente bem sucedido. A riqueza sensorial (ou sensacional) das obras sempre transborda para além dos sentidos (ou conceitos) eventualmente encontrados, e o jogo precisa recomeçar, sendo potencialmente infinito. Se a busca do sentido eternamente prometido pelas obras, mas jamais encontrado definitivamente por seus espectadores, é a fonte dos prazeres propriamente estéticos, compreende-se como é possível diferenciar uma obra de arte de uma mercadoria cultural: estas últimas, para tornarem-se vendáveis, devem produzir um prazer facilmente reconhecível, familiar, uma sensação que cabe em um sentido, ao passo que as primeiras sempre escapam por entre os nossos dedos quando pensamos tê-las apreendido. Dessa concepção da própria natureza da arte, surge o problema da autonomia da obra de arte, o problema das possíveis relações entre a realidade que configura o mundo das obras (sempre inapreensível segundo critérios unicamente extra-estéticos) e “o mundo lá fora” (onde as coisas têm nomes e sentidos familiares). Se, por um lado, é indiscutível que houve uma valorização da arte quando ela se tornou autônoma, auto-suficiente, independente das funções sociais que porventura possa desempenhar, por outro lado o seu significado existencial torna-se opaco quando sua utilidade (para o conhecimento e a moral) deixa de ser um critério para pensar o seu valor. Como é possível afirmar a autonomia da obra de arte sem condená-la a mero passatempo de “eruditos ociosos nos jardins do saber” (Nietzsche), sem simplesmente cortar seus laços com o mundo que nos circunda, sem convertê-la em puro entretenimento?

Essas questões são formuladas (e respondidas) com clareza por Breu, peça escrita por Pedro Brício e dirigida por Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa, que recentemente cumpriue nova e curta temporada no Galpão Gamboa. Logo ao entrar no teatro, o espectador é envolvido no breu que dá nome à peça. Durante longos minutos, incapazes de vermos o que quer que seja – trata-se de uma experiência sensorial de rara potência, mais comum nas artes plásticas do que no teatro, a ponto de um espectador ter passado mal no dia em que fui assistir à peça, que teve de ser interrompida para que ele fosse retirado da sala –, somos forçados a entrar em uma outra dimensão, a cortar nossas relações com o mundo circundante, a mergulhar no universo (autônomo!) instaurado pela obra, no universo que é a obra. Tudo é escuridão e, ao mesmo tempo, vontade de enxergar. A princípio, começamos a enxergar apenas com os ouvidos. Alguns barulhos, que só a custo identificamos, traem a presença de alguém em cena, manipulando objetos que não vemos, e assim amplificando nossa inquietude. Finalmente, depois de um tempo que parece muito mais longo do que nos diria a cronologia vulgar – até o tempo da obra é autônomo em relação ao tempo dos relógios e das folhinhas… –, ouvimos uma voz de mulher. Ela diz um texto cujo sentido, em sua trivialidade, demoramos a discernir. Por causa da escuridão do teatro, de nossa ânsia por ver e compreender, já aquelas primeiras palavras, em si mesmas corriqueiras, nos aparecem como prenúncio de algo ameaçador – no mínimo, de um enigma a decifrar. Este misto de enigma e ameaça constitui o próprio tecido de que a peça é feita, uma atmosfera que em nenhum momento se desfaz. “It’s a strange world”, diria um personagem de David Lynch.

Acostumados, mais ou menos inconscientemente, com algumas regras dramatúrgicas raramente negligenciadas, os espectadores podem acalentar a esperança de que a apresentação dos personagens, de seus dramas individuais, de suas motivações acabará por lançar luz nas trevas. Assim, a angústia produzida pelos minutos iniciais de Breu vai sendo rapidamente aplacada pela esperança de um sentido, uma luz no fim do túnel. Nos minutos iniciais, desenha-se de modo ainda imperceptível na cabeça dos espectadores qual provavelmente será o arco dramático da peça: do mais profundo breu à mais intensa claridade.

Ocorre que a apresentação dos personagens não satisfaz a nossa esperança inicial. Quando a primeira luz é acesa, estamos diante de uma mulher mais velha (Kelzy Ecard), vestida com roupas simples, que trabalha em sua cozinha e que, no escuro, havia sido a fonte dos barulhos dificilmente discerníveis dos minutos iniciais. Esta mulher mais velha recebe a visita de uma outra mais nova (Natalia Gonsales), cujo suposto nome, Aurora, fortalece a promessa de sentido feita pela obra. É Aurora que, depois de uma hesitação que a princípio nos parece incompreensível, pergunta se a dona da casa não teria algumas velas e, depois da resposta irônica da outra – algo como “ah, minha filha, por que você demorou tanto a pedir luz?” –, começa a acender os primeiros fachos em meio à escuridão. O enredo também começa a se esclarecer, ainda que de forma ironicamente pouco clara. Aurora viera até a casa da senhora mais velha ajudá-la a cozinhar, a preparar um cachorro quente. Chegara lá ao cair da noite, por volta das oito ou nove horas, e a falta de luz no bairro seria a causa da escuridão. Como só depois da metade da peça cheguei a compreender, a senhora mais velha era cega e por isso se deslocava e realizava com tamanha desenvoltura as tarefas domésticas mesmo em meio ao breu. Dada a desenvoltura da primeira, não chegamos a compreender por que ela precisaria da ajuda de Aurora, mas logo ficamos sabendo que esta receberia um pagamento por seu trabalho. Tampouco chegamos a compreender de imediato qual seria a história da relação entre as duas, mas logo somos informados de que aquela era a primeira visita de Aurora àquele bairro afastado da cidade. Uma amiga, que pretensamente conhecia uma costureira da vizinhança, teria dado as indicações necessárias para Aurora. A velha, entretanto, coloca em questão a existência da tal costureira, tornando ambíguas todas as palavras de Aurora, que, desde o início, é colocada sob suspeita, como se sua disponibilidade para ajudar na preparação do cachorro quente fosse mero pretexto para a realização de desígnios ameaçadores. Quem era Aurora? O que de fato estaria fazendo ali?

A sensação de insegurança é amplificada quando uma notícia no rádio subitamente redesperto – provisoriamente, a luz do bairro volta a funcionar – localiza a ação no tempo histórico: estamos no início da década de 1970, no Rio de Janeiro, em meio à fase mais terrorista da ditadura brasileira, em que os “inimigos do regime”, tratados como criminosos de guerra, eram torturados e assassinados nos porões do “poder oficial”. Subitamente, a articulação entre a volta (apenas provisória) da luz e o redespertar do rádio restaura a relação entre o mundo autônomo da peça e o “mundo lá fora”. Transfigurada em elemento formal, no entanto, a realidade histórica apenas adensa a sensação de insegurança produzida pela própria encenação, que, apesar de se apropriar deste elemento extra-estético, não descamba para um realismo ingênuo, continuando a operar naquela zona fronteiriça entre a sombra e a luz, as sensações e o sentido, a cegueira (da protagonista, dos espectadores com ela identificados e, simbolicamente, dos brasileiros em meio à ditadura) e a vontade de enxergar, de finalmente despertar daquele mundo onde tudo é pesadelo e noite escura.

A contextualização histórica da ação lança mais sombra sobre a figura de Aurora. Se, a princípio, não entendíamos por que cargas d’água ela viera ajudar uma velha cega a preparar um cachorro quente – motivo que beira o surrealismo –, agora começamos a suspeitar que ela possa ser uma agente da ditadura, infiltrada na casa daquela senhora indefesa – até o seu cão-guia estava doente, outra analogia entre o mundo da peça e a situação brasileira à época – com o intuito de obter informações sobre os militantes contrários ao regime. Essa suspeita se amplifica quando (1) a velha lhe pergunta se ela tem noção do que é ser violada, índice de que a própria senhora já teria conhecido pessoalmente os porões da ditadura, e (2), fingindo ter ido embora, Aurora permanece à espreita num canto da cozinha, a tempo de ouvir o telefonema que a velha recebe do irmão, militante procurado pela polícia, que a incita a sair imediatamente de casa, na qual estaria escondido “material subversivo” que poderia custar a vida da velha senhora.

Com o pretexto de ter esquecido alguma coisa, Aurora novamente anuncia a sua presença, e agora a velha, inquieta, manifesta abertamente a suspeita de que ela a estaria vigiando, com a ajuda de um parceiro ameaçador que teria permanecido do lado de fora da casa. Construídas as possíveis motivações das personagens, a peça teria um desfecho lógico se terminasse com o anúncio da prisão da velha senhora. Um desfecho lógico e claro.

Mas, felizmente, não é isso o que acontece. Pedro Brício e a dupla de diretoras permanecem fiéis à definição kantiana das verdadeiras obras de arte. Em vez de apascentar os espectadores de Breu com um sentido fechado, nos minutos finais da peça, quando a aurora do dia seguinte ao da noite escura em que transcorrera toda a ação finalmente chega, marcada pela discreta iluminação do cenário no quintal da casa da velha, as personagens retomam o texto que servira de fio condutor para o embate entre as protagonistas, subvertendo ainda uma vez o seu sentido. Se Breu, como peça eminentemente sensorial, se aproxima da música, é porque se constrói como uma série de variações em torno de um mesmo tema. O tema: a narrativa de Aurora de sua viagem de ônibus até a casa da velha, passando por locais abandonados, sempre observada por um homem sentado no fundo do ônibus. As variações: (1) o homem seria um agente do regime, que poderia estar seguindo Aurora até ali, com o intuito de prender ambas as mulheres; (2) o homem seria o parceiro de Aurora, que teria ficado do lado de fora da casa, enquanto ela, sendo mulher, teria mais chances de arrancar da cega as informações necessárias, antes da inevitável prisão; e, finalmente, (3) o homem seria apenas um galanteador, interessado nos dotes físicos de Aurora, ficando assim esvaziado o contexto histórico particular que dera à peça sua densidade e seu caráter ameaçador.

Depois que Aurora levanta essa última interpretação, a peça termina com a tênue luz da aurora emoldurando uma improvável conversa de alcova entre as duas mulheres, irmanadas pelo gosto de uma tensão que passa a ser erótica, e não mais política. O espectador, entretanto, depois de ver as suas expectativas de sentido tantas vezes derrubadas, já sabe que tampouco aquela última interpretação (ou variação) pode ser simplesmente tomada como a verdadeira, como o sentido último da obra. Se a peça, dadas as limitações contingentes de tempo e espaço, se interrompe e tem uma duração cronológica finita, a reflexão que ela propicia é potencialmente infinita, iluminando desde dentro as complexas relações entre arte e sociedade, entre a autonomia de obras que não fazem concessões à sanha de sentido de espectadores submetidos à ditadura do mecanismo de identificação e as inevitáveis relações que mesmo as obras formalmente mais herméticas ainda assim guardam com as realidades sociais e históricas que constituem o “mundo lá fora”, o que lhes permite preservar o seu alcance existencial, ético e político.

Patrick Pessoa é professor do Departamento de Filosofia da UFF e dramaturgista.

Leia também a crítica de Dinah Cesare para a mesma peça, publicada na edição de fevereiro de 2012:

http://www.questaodecritica.com.br/2012/02/sobreviventes-na-intermitencia-da-luz/

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