Crônica de um divórcio entre ator e cenário

Crítica da peça Ana e o Tenente, de Rafael Camargo

27 de novembro de 2011 Críticas
Ana e o Tenente. Foto: Rogerio Nunes.

“Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento do absurdo. Como já passou pela cabeça de todos os homens sãos o seu próprio suicídio, se poderá reconhecer, sem outras explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento e a atração pelo nada.”

Albert Camus, “O mito de Sísifo”

Ao entrarmos no teatro, deparamos com um parque de diversões abandonado, com direito a trem fantasma, carrinho bate-bate, piscina de bolas, a coluna vertical em forma de termômetro que mede a força do martelo do aspirante a super-herói, e uma geringonça de difícil definição, espécie de gaiola, onde a princípio se aboleta o tenente. Além de evocar calorosamente o Tivoli Park, que ficava na frente do mesmo Jockey cujo teatro recebe hoje Ana e o tenente, o cenário chama a atenção pelo cuidado com que foi realizado. Em produção de proporções modestas, sua qualidade desponta como promessa de um espetáculo de qualidade. Mas o cenário não existe sem a luz. E merece igual aplauso o responsável pela iluminação do espetáculo, que também consegue extrair o máximo da relativa pobreza de meios, compondo, juntamente com o cenógrafo, uma atmosfera onírica, como se se tratasse de um lugar fora do tempo. Outra peça fundamental para a composição da atmosfera do espetáculo é a trilha sonora, dominada por canções que parecem oriundas de algum filme de Emir Kusturica, com aquela sonoridade cigana, alegre, circense, típica dos Bálcãs. Cenário, luz e música constroem o caminho para uma volta à infância. Uma volta, eis um ponto forte da encenação, sem idealizações. Além de o parque de diversões ser decadente, os sonhos, anseios e perguntas que despontam na peça, se por um lado remontam a uma época em que nada ainda era óbvio e tudo guardava uma certa aura misteriosa (ou mesmo fantasmagórica), por outro não eliminam o que há de angustiante nessa experiência infantil. Quem ousa sonhar e indagar precisa suportar os pesadelos e a ausência de respostas. É, aliás, essa tensão entre sonho e pesadelo, infância e idade adulta, ingenuidade e desilusão que criará um antagonismo entre Ana e o tenente.

O tenente começa a peça sintomaticamente preso em uma gaiola, em uma indumentária e em um posto – o de tenente – que limitam o seu espaço de liberdade. Desde as suas primeiras intervenções, fica claro que seu propósito é se libertar daquela existência que lhe parece totalmente sem sentido. O sentimento do absurdo que acompanha todos os seus passos ao longo da peça é reforçado pelo fato de, em nenhum momento, chegarmos a compreender qual é a sua relação com o cenário no qual se encontra. O tenente aparentemente não tem nenhuma relação com aquele parque de diversões e, suspeita-se, tampouco com o exército. Ser tenente, para o personagem vivido com competência por Sérgio Medeiros, que coerentemente com seu papel nunca parece totalmente confortável em cena, significa apenas ser obrigado a trajar um uniforme. Um uniforme que, ao contrário do que promete a etimologia da palavra, não é de forma alguma capaz de dar uma forma, um sentido, uma direção a quem o veste.

Essa dissonância entre personagem e cenário, base para o sentimento do absurdo como sentimento de quem se sente estrangeiro na própria casa, marca também o aparecimento de Ana. Ao contrário do tenente, porém, ela tem um nome próprio. Próprio mas absolutamente comum – o que já evidencia que se trata aqui da construção de um tipo (como o tipo “tenente”) e não de uma personagem dotada de psicologia individual. Ao contrário do tenente, ela se compraz em apresentar aos espectadores todas as atrações daquele parque de diversões, como se o conhecesse melhor do que ninguém – muito embora ela tampouco pertença àquele lugar. Ao contrário do tenente, ela não parece sofrer com a ausência de respostas. Quando o tenente lhe pergunta quem ela é, Ana, evocando talvez a Capitu de Machado de Assis, simplesmente responde: “Eu sou eu”. A plena identidade consigo mesma, não importam as circunstâncias, será o seu traço distintivo ao longo da peça, aquilo que estabelecerá o seu antagonismo amoroso com o tenente. Mesmo quando ele exige que ela assuma uma função, um título, um uniforme qualquer, Ana não o leva a mal. Sabe que é um imperativo da vida em sociedade. Um imperativo que, como todos os outros, pode ser burlado. Com a malícia e as artes da infância.

Ana torna produtivo o vazio de sentido em que ambos se encontram. Se, naquela estranha realidade, as leis são todas desconhecidas, não havendo senão risíveis simulacros de leis – como aquela que torna condenável a leitura de revistas pornográficas e a masturbação –, abre-se o espaço para a contínua criação de jogos. Os jogos também não têm um sentido último, também eles parecem gratuitos, mas isso não incomoda Ana. Trajada com uma camisa bege do Ramones, numa postura ao mesmo tempo cândida e revoltada, adolescente e desperta para a complexidade e a opacidade de sentido do mundo que a cerca, Ana, vivida com grande alegria por Isabel Pacheco, passa a peça inteira convidando o tenente para dançar com ela. Em uma cena, inclusive, ele aceita o convite. Mas não chega a se constituir um verdadeiro pas de deux: eles dançam juntos (lado a lado) e (mas) separados. Ana, entretanto, não desiste. Ao longo de toda a peça, ela endereça uma questão apenas ao tenente: em um jogo onde não falta desejo, onde pode talvez brotar até mesmo o amor, quem é que se importa com o sentido?

Esta é, a meu ver, a questão central da peça, aquela que o autor do texto endereça diretamente ao espectador, usando Ana e o tenente como mediadores. O problema é que, se por um lado o jogo acontece na cena, favorecido pela inventividade das marcas criadas pelo diretor Joelson Medeiros, por outro o autor Rafael Camargo recua diante da radicalidade das questões que levanta. A impressão é a de que os atores são bem sucedidos onde os personagens, por uma inconsistência do próprio texto, fracassam. Em outras palavras: se Sérgio aceita o convite de Isabel para dançar, e esta coreografia é a alma mesma do espetáculo, o mesmo não se pode dizer do tenente com relação a Ana.

Ana o convida um sem número de vezes para jogar, para representar com ela, e o tenente recusa. Essa recusa, que poderia ser alçada a um nível bem mais interessante se o autor tivesse se mantido fiel ao princípio beckettiano da peça, se tivesse evitado até o fim qualquer psicologização dos personagens, é não obstante sabotada quando Rafael Camargo resolve ser didático. Valendo-se do tenente como porta-voz, mais ou menos na metade da peça o autor explica num tom excessivamente professoral a origem de sua revolta face à ausência de sentido da existência. O tenente reclama então do palhaço que escreveu aquele texto que ele é obrigado a seguir, que o enclausurou naquela situação e naquela farda – naquele fardo! – que ele não escolheu. Uma brincadeira cênica faz com que o desenho do palhaço que ilustra o trem fantasma brilhe nesta hora, como que confirmando a acusação que faz o tenente ao pretenso autor de sua existência, contra o qual ele inclusive lança alguns petardos – bolas de borracha. O tema macbethiano é assim rebaixado: em vez de simplesmente apresentar cenicamente a tese de que a vida é uma história, contada por um idiota, cheia de som e fúria, que não significa nada, deixando que cada espectador tire suas próprias conclusões e monte o espetáculo como puder (ou quiser), o autor opta por formular com uma simplicidade pueril o sumo de uma experiência que de forma alguma se deixa reduzir ao clichê da revolta do personagem contra o pretenso autor de sua existência.

Assim, se por um lado o desfecho da peça se torna absolutamente inteligível, com o tenente imitando o exemplo do protagonista do filme Trinta anos esta noite, de Louis Malle, por outro o seu desenrolar deixa de provocar o espectador como provoca nas primeiras cenas, quando simplesmente não há qualquer chave capaz de explicar o sentido do que se passa, e somos tocados pelo mesmo sentimento do absurdo que caracteriza as existências de Ana e do tenente.

Patrick Pessoa é professor do Departamento de Filosofia da UFF e dramaturgista.

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