A arte é o nosso negócio

Crítica da peça Ópera dos vivos, da Companhia do Latão

30 de setembro de 2011 Críticas

“Há um sério risco de acabarmos por encontrar um emprego para a nossa ociosidade”

A insurreição que vem – Comitê invisível

Cada um dos quatro atos da peça Ópera dos vivos, encenada pela Companhia do Latão, de São Paulo, com direção de Sérgio de Carvalho, reconstitui uma etapa histórica da instituição de regimes de dominação da metade final do séc. XX. Os problemas que podem ser colhidos dos argumentos da peça, com os quais a sociedade atual está se deparando, referem-se a um novo regime de dominação dispersa, que Gilles Deleuze identificara como um regime de controle contínuo, percebido na substituição do cárcere por coleiras eletrônicas, na avaliação continuada e na formação permanente das escolas, nos hospitais, nas empresas e nas formas de tratar o dinheiro. A questão que paira para Deleuze e que se encaixa como questão da Ópera dos vivos é: ao que estamos sendo levados a servir?

O primeiro ato, Sociedade Mortuária – uma peça camponesa, revisita os meandros da formulação da máquina opressora no campo por ocasião da guerra fria e sob a égide da ditadura no Brasil. O ambiente rural construído pela cenografia de Renato Bolelli, que recorre a tábuas e materiais de obra, retrata a escassez e as dificuldades de obter madeiras até para confeccionar caixões. Foi isto que deu origem às sociedades mortuárias: a união para possibilitar enterros dignos. Logo, essas associações passaram a lutar também em prol de uma vida digna, sendo chamadas de Ligas Camponesas. A figura do latifundiário Capitão Quirino (Ney Piacentini), ao princípio da história, parece paternalista – ele chega a ser nomeado como presidente de honra da Liga. Próximo aos empregados, contudo, o patrão concede bens somente na medida em que vê possibilidade de melhorias da produção de suas terras. Este regime de autoridade é o que produz uma relação delicada e requer de todos os camponeses da fazenda uma atenção no trato com o Capitão, sua família e seus jagunços.

Marivaldo (Renan Rovida), filho do camponês morto, cuja família busca um caixão, é um personagem chave que detona viradas no comportamento dos outros. Com um jeito ingênuo, ele é pouco dado às convenções sociais. Em certo momento, Marivaldo trava uma disputa inocente entre ditos populares com o Capitão, até que este insinua sua autoridade dizendo: “Boca calada é remédio”, e recebe a saliente resposta: “Boca dura é poder”, o que deixa Quirino ressabiado. Essa cena, como algumas outras, expõem para o espectador a reminiscência da velha lógica colonial na ordem do campo. O trabalho de corpo dos atores é outro artifício da cena que ajuda a entender essa curva de comportamento da complacência à submissão campesina. Ao aumentar suas solicitações, os camponeses passam a carregar sobre os ombros o peso da opressão desregrada.

Ainda é lembrada a disputa entre os EUA e a URSS pelo domínio ideológico da população do terceiro mundo, exercida por um lado pela missionária americana (Ana Petta) e do outro pela professora comunista (Helena Albergaria). Assim aconteceu a corrida entre o Plano Marshal e o Plano Molotov nas áreas subdesenvolvidas. A concorrência, porém, não se restringia à adesão por um sistema econômico, era antes uma mostra da decadência de ambos os aparelhos. Esse foi um período de transição. A sociedade, antes da Segunda Guerra, definia-se por suas estruturas de disciplina rígida, como diagnosticado por Michel Foucault em Vigiar e Punir.

O que é retratado alegoricamente no segundo ato, Tempo Morto – um filme sobre o golpe, é o resultado dessa crise, especificamente como ocorreu no Brasil. Os espectadores, nesse momento, são conduzidos a outro ambiente para assistir à projeção. Filmado em preto e branco, misturando falso documentário com ficção e com um tom declamatório, este vídeo lembra a estética do Cinema Novo. A personagem principal, Júlia (Helena Albergaria), é uma atriz comunista que está fazendo papel de uma professora numa peça – que vem a ser exatamente o primeiro ato da Ópera dos Vivos. Fora dos ensaios ela começa a se relacionar com o banqueiro Funis (Rodrigo Bolzan) que se torna mecenas tanto do teatro como da incipiente televisão da época. O filme pode ser visto com se tivesse dois tratamentos, um mais documental outro mais ficcional, que todavia se entrelaçam, dando ao espectador a possibilidade de construir duas abordagens. No núcleo ficcional, percebe-se a construção dos perfis psicológicos dos personagens e, no documental, dos perfis ideológicos. Seguindo a mesma divisão, o representante do primeiro perfil é Funis e do segundo, Julia; as camadas se imiscuem por meio do relacionamento dos dois.

Talvez pelo tratamento dado ao ficcional ser demasiadamente teatral, com planos mais abertos, esta abordagem do filme não causa tanto impacto quanto os closes das ações expressivas do tratamento documental. Os diálogos também acrescentam pouco às imagens e são os discursos políticos que se sobressaem, afirmando vivamente a crise em que os personagens estavam mergulhados. É nesse extrato que se dá o paralelismo mais forte com o Brasil, com o qual se procura resgatar na memória histórica da plateia o ardil do capitalismo frente aos problemas de 1964.

Alinhada aos EUA, a ditadura militar deu um passo à frente em relação à estratégia comunista por ter tornado suas artimanhas dissipadas. A questão era de como exercer esse controle de forma individual. A resposta para a fundação dessa nova sociedade de controle no Brasil aconteceu no dia 26 de abril de 1965 com a fundação da TV Globo, ironizada na peça pelo nome de TV Todo e pelo magnata da imprensa, Ribeiro (Rogério Bandeira). Com isso, cada telespectador pode ser tratado como único em meio à mass-mídia.

Contiguamente à instalação dessa rede de contato-controle com a população, no terceiro ato, Privilégio dos Mortos, é apresentada a formulação da cultura popular que estaria sendo veiculada por esse aparelho de Estado-TV. Especificamente, a peça faz uma crítica à celebrização do movimento tropicalista, retratado com a banda Os Intocáveis (Carlos Escher, Carlota Joaquina, Helena Albergaria e Rodrigo Bolzan). Ao ter seu show empastelado por espectadores esquerdistas, os músicos ao lado da musa cantora, Miranda (Adriana Mendonça), mostram-se como o emblema do conformismo. É certo que o cenário, e também o figurino, de Vivianne Kiritani, desde o início deste ato dão indícios dessa proposta, ao trabalhar com materiais brilhantes e emplumados, justapondo o glamour ao brega.

Este movimento, não obstante, foi fruto de uma reação natural de guerrilha. Como é estrategicamente inviável eliminar a figura do vilão do imaginário social, com o risco da vilania recair sobre os donos do poder, nesse período alguns transgressores inofensivos foram eleitos para serem repudiados remuneradamente, enquanto o inimigo real estava sendo literalmente aniquilado por baixo do belo circo armado pela mídia, disfarçando a opressão. Esse argumento lembra, em parte, o que Chico Buarque assinalou na sua peça Roda Viva, encenada em 1968 por Zé Celso, com o intuito de afirmar que “a eficácia do teatro político hoje está no que Godard colocou a respeito do cinema: a abertura de uma série de Vietnãs no campo da cultura – uma guerra contra a cultura oficial, a cultura do consumo fácil. Pois com o consumo não só se vende o produto, mas também se compra a consciência do consumidor.” (CORRÊA 1968: 96)

A transformação do indivíduo em consumidor é uma das impressões conjugadas no quarto ato, Morrer de pé. Um ato feito em meio a dois sets de televisão, um programa infantil e uma novela, que apontam para as recentes mutações do capitalismo, no qual a sociedade está mergulhada atualmente. O foco do capitalismo neste momento da peça é vender o produto. Tudo é transformado em cifra. As fábricas, escolas, exércitos foram cifrados, transformados em empresas. Com isso, a alma de tudo se tornou o marketing, ele é o novo controle social, um controle de curto prazo, mas circulante e indefinido, pronto para produzir o homem.

Assim, ao expor uma crítica ao esvaziamento da arte e à transformação desta em um negócio, o espetáculo dispara uma reflexão no espectador sobre os sentimentos relacionados aos negócios em geral. A obra faz ressoar um refrão acerca das dimensões conflitantes em que o indivíduo é lançado a cada dia de labuta.

Referência bibliográfica:

CORRÊA, José Celso Martinez. O poder de subversão da forma. Entrevista realizada por Tite de Lemos, aParte, nº 1, TUSP, março e a abril de 1968. In Primeiro ato: cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974). Seleção, organização e notas de Ana Helena Camargo de Staal. São Paulo: Ed. 34, 1998, p.96.


Informações sobre temporadas no site da Companhia do Latão: http://www.companhiadolatao.com.br/

Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, pesquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.

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