Interseções entre teatro e cinema através da Internet

Crítica do espetáculo Cardápio de soluções indigestas, do Teatro para Alguém

13 de setembro de 2010 Críticas

O modelo de sociedade, segundo Foucault, de uma “sociedade disciplinar” – a qual se caracteriza por uma forma de encarceramento completo do indivíduo num ambiente arquitetural – vem se transformando naquilo que Gilles Deleuze identifica por “sociedade de controle”, sendo um controle aberto e contínuo, anti-arquitetura, onde os dispositivos disciplinares tornaram-se menos limitados; as instituições sociais modernas geram indivíduos sociais muito mais flexíveis. Essa passagem para a “sociedade de controle” abarca uma subjetividade que não está atida à individualidade. O indivíduo não pertence a nenhuma identidade ao mesmo tempo que pertence a todas pois, mesmo no exterior das instituições sociais, continua a ser veementemente comandado pela lógica disciplinar.

Por um lado, a chamada “sociedade disciplinar” se funda nnas capacidades transversais, as quais se camuflam através das instituições modernas e de táticas de disciplina e confinamento, enquanto por outro, a nomeada “sociedade de controle” é assinalada pela possibilidade de ser nômade e invisível, acoplada às redes de informação. Nas “sociedades disciplinares”, o observador deve estar de corpo presente e em tempo real a observar, a vigiar, enquanto nas de “controle”, a vigilância é rarefeita, é virtual.

O site teatroparaalguem.com.br evidencia a ausência da necessidade de um edifício (no sentido estrito da palavra) e é fruto de um processo de mudança na sociedade que caminha cada vez mais para o mundo virtual. Concebido, há nove meses, pela atriz e diretora Renata Jesion, o site funciona como uma casa de eventos, em que o internauta pode ver peças teatrais ao vivo, ou ainda as antinovelas (não exibidas ao vivo) de Lourenço Mutarelli. Para pertencer à plateia desse teatro, não há necessidade de sair de casa e comprar ingressos, basta acessar e se posicionar diante do computador; tudo poderá ser monitorado, ou melhor, quase tudo, pois a câmera estabelece alguns recortes que, por vezes, poderia não ser a opção de olhar do espectador caso ele pudesse assistir no mesmo ambiente.

O resultado é surpreendente (no sentido positivo) e é uma ideia democrática: todos têm direito de testemunhar. A plateia é ilimitada: pode haver um único observador, cem, vinte mil, ou até nenhum.

No último dia 31 de agosto, às 21:30h do Brasil, foi possível assistir, direto de Portugal, junto de outros 29 internautas interessados, ao espetáculo teatral Cardápio de soluções indigestas. O texto é da autora Drika Nery, o qual foi dirigido por José Fernando de Azevedo.

A trama é estabelecida pelo diálogo entre uma detetive e um homem de meia idade, sendo que a contratada deseja contar a verdade que descobriu a respeito da esposa desse sujeito, enquanto ele desiste de tomar conhecimento da descoberta, apesar de tê-la contratado para informá-lo. Há indignação presente em ambos: a da contratada é por não poder terminar seu serviço contando o que sabe e a dele é pela insistência dela.

A dramaturgia é formada por diálogos sintéticos, curtos, mas dotados de significados no humor seco, sendo o silêncio tratado como o que há de mais corrosivo numa relação – algo que é evidenciado quando a personagem da detetive cobra o dobro do valor para ficar em silêncio e diz que “sempre se pagou mais caro pelo silêncio”, pela “desinformação”. Ao fim, o homem de meia idade pede o famoso cafezinho que finaliza uma refeição, que nesse caso sequer existiu, pois a cena se passa num escritório e o cardápio indigesto sugerido não lhe apeteceu.

Com a peça já iniciada, o ator e a atriz dialogam, desprovidos das suas personas, como se estivessem a discutir a peça que irão fazer. A metalinguagem enfatiza a sucessão de planos que está presente tanto no texto e na encenação, que se apoia no uso de espelho e projeção de imagem, quanto na própria condição de exibição do espetáculo, filtrado por uma câmera e intermediado pela grande rede. Poucos elementos de cena facilitam a ênfase dada às interpretações de Germano Melo e Gilda Nomacce que, apesar de serem convenientes para esse novo teatro que faz fusão com o cinema, não perdem a potência característica da arte do teatro.

A explosão de diversidade de linguagens artísticas é, sem dúvida, uma característica pertencente à arte produzida nas últimas décadas do século XX e nessas que iniciam o XXI. Videodança, videoperformance, enfim, há uma série de combinações de expressões artísticas que geram novos manifestos. Nesse caso, o espetáculo, por ter características pertencentes tanto ao cinema quanto ao teatro pode estar a criar um novo tipo de manifesto ainda não autônomo. Mérito do site e também do espetáculo, que não teve a preocupação de manter a câmera estática e incorporou, nesse aspecto, elementos assumidamente cinematográficos, quando inclui na equipe técnica um diretor de fotografia, Nelson Kao, e um assistente de câmera, Andréa Lucas Alcaraz. Tudo é feito em plano sequência, sem cortes. É um híbrido de cinema e teatro e parece ser uma busca inteligente por uma nova linguagem que traduz tão bem o nosso tempo.

Do cinema, permanece a vantagem do close. Do teatro, o “frio na barriga” do evento ao vivo. E da junção, se, por um lado, este tipo de evento isola o indivíduo cada vez mais no seu ambiente particular, por outro, possibilita que inúmeras pessoas assistam a um espetáculo, que talvez dentro de um edifício, não pudesse incluí-las ao mesmo tempo. E o melhor é a possibilidade de reunir um grupo de observadores que não podem ser limitados por barreiras físicas e geográficas: todos podem ver.

Terminada a apresentação, como numa espécie de “Big Brother” (embora muito mais “cult”), os espectadores puderam acompanhar comentários que, se estivessem fisicamente presentes no mesmo espaço, talvez não pudessem presenciar. Eram conversas de camarim, bate-papo entre diretor e ator para falarem de uma marcação de cena que não funcionou bem, entre assistente e iluminador para corrigir alguma imperfeição, enfim, coisas que esse novo manifesto pode, com maestria, proporcionar.

Teatro para Alguém: http://www.teatroparaalguem.com.br/

Foto em destaque: Alessandra Fratus.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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