Conversa com Lourenço Mutarelli

Conversa com o autor de O Natimorto

15 de dezembro de 2008 Conversas

Conversa com Lourenço Mutarelli, concedida em 07 de Julho de 2006, na residência particular do autor e desenhista, em Vila Mariana, São Paulo. Versão editada.

Nos desenhos e álbuns de Lourenço Mutarelli destacam-se especialmente o traço marcante e as histórias que evidenciam um caráter visivelmente autobiográfico. Reconhecido inicialmente no universo dos quadrinhos por meio de uma obra extremamente singular e autoral, Mutarelli menciona entre os autores que o influenciam, Kafka, Ionesco e Beckett. Em nossa conversa, o autor discute alguns pontos em comum e as principais diferenças entre o desenho, o romance e o teatro. Mutarelli fala do seu encontro com a Cia da Mentira[i] e do processo de criação da peça O que você foi quando era criança?[ii]. O autor comenta ainda o seu último álbum A Caixa de Areia, e fala sobre o desejo de transportar o espectador de teatro com o mínimo. 

MICHELLE NICIÉ – Lourenço, pelo telefone você me disse que achava muito diferente o modo como você trabalha a narrativa gráfica, a escrita teatral e um romance. Fale um pouco sobre esses processos, sobre essas diferenças.

LOURENÇO MUTARELLI – Ainda estou tentando entender essa diferença. Eu sinto que trabalho em freqüências diferentes. Antes de começar, quando não tenho o argumento ainda, mas um pseudo-argumento, um plot, já sei de que forma vou abordar, se vai ser quadrinhos, teatro, ou livro. Desde o começo sei o caminho a seguir. O teatro e a literatura, a grande diferença, eu percebi depois do meu primeiro romance. Quando li meu primeiro romance percebi que imaginava pessoas reais, os personagens. No teatro mais ainda porque você tem um ser humano ali representando. Parece que a história é mais crível. Os quadrinhos, mesmo enquanto estou desenvolvendo o roteiro, muitas vezes não desenvolvi fisicamente o personagem. Só quando começar a desenhar. Não faço muito estudo de personagem, começo desenhando e sigo esse personagem. Quando vou ler quadrinhos, talvez por eu ser desenhista, fico vendo o desenho. É muito difícil transpor e começar a ver aquilo como um ser. Aí está a maior diferença entre o meu trabalho para quadrinhos e para teatro. Os atores da Cia da Mentira quiseram se inspirar num gestual baseado nos meus personagens dos quadrinhos. Comentei que achava que não tinha a ver, porque em nenhum momento pensei em quadrinhos quando fiz o texto. Mas eles seguiram esse caminho, acho que funcionou. Mas, não era o que eu pensava. Agora eu tenho feito até o contrário: tenho uma idéia, convido os atores que preciso, e aí vou começar a fazer o texto. Então, já tenho esses personagens, pelo menos fisicamente, essa estrutura física. É quase fundamental para o ser humano a estrutura física. Se ele é gordo, magro, tudo vai influenciar muito no caráter, e internamente no personagem. Tenho partido desse princípio, acho que aí estaria a maior distinção que eu faço.

MICHELLE NICIÉ – O tema do circo é uma referência concreta nas suas histórias. De onde vem esse encantamento pelo circo? Em que medida é possível se traçar uma conexão entre o circo, o teatro, os quadrinhos e um universo que se aproxima, em algum sentido, do romance policial? Você acha que existe algum ponto em comum entre essas linguagens na sua obra?

LOURENÇO MUTARELLI – O circo me assombra muito mais do que encanta. Onde eu passei a minha infância tinha um circo muito mambembe, ia lá com um vizinho, a gente via eles montando, às vezes, a gente espionava eles ensaiando. Uma coisa que me impressionava é que era um mundo feio. Porque era um circo muito mal cheiroso por causa dos animais. Acho que o que mais me atraía eram os animais. Quando a gente vê um circo pela primeira vez, não parece que é a primeira vez que a gente está vendo. Acho que é uma coisa que…

MICHELLE NICIÉ – Toca em algum lugar?

LOURENÇO MUTARELLI – Em algum lugar ancestral, mas não ancestral da minha pessoa, talvez da minha carga genética, não sei. Isso me fascina muito. Principalmente, o circo de horror, o circo das aberrações. Acho que se você passa um tempo no circo vendo todo aquele universo, quando você sai, não tem como você não perceber que entra para um outro circo. Que é a nossa sociedade, um circo tão engraçado e tragicômico como o outro só que o ingresso é bem mais caro. Na peça, eu parti desse princípio. Onde começa e onde acaba o circo? Nos quadrinhos, o circo tem muita influência. Acho até porque a gente também usa outras referências. Quando a gente cita referência no desenho de outros autores, a gente deixa de citar muitas coisas que a gente viu e que marcaram que não são de autores. É a pintura de um trem fantasma, um cartaz de um circo. O circo sempre usou muito o cartaz. E sempre usou imagens muito fortes porque é o apelo dele.

MICHELLE NICIÉ – A questão da aberração?

LOURENÇO MUTARELLI – A aberração. Tem também uma iconografia muito próxima ao tarô. A iconografia medieval. Mesmo as coisas mais recentes. Parece que eles mantêm uma linhagem, uma tipologia. Acho que muitas artes beberam, se não no circo, nessa iconografia dos cartazes do circo, das propagandas que estão difundidas pelo circo. É uma estética característica com muita influência medieval das iluminuras talvez, das miniaturas. Tem um poder esse ícone do chamado das apresentações. Em relação ao romance policial, lembro Kafka, Um Artista da Fome, que não é um policial, obviamente, mas sempre tem algo que lembra. Sempre que eu lia Kafka me dava muito essa sensação de ler um policial, de sentir uma ameaça e um mistério.

MICHELLE NICIÉ – O que te move, te motiva a escrever especificamente para teatro?

LOURENÇO MUTARELLI – Teve uma coisa que me surpreendeu. Acho que tenho onze álbuns, três romances publicados, uma peça escrita. Devo ter mais algumas coisas. Só vivi isso quando essa peça foi encenada e também quando começaram as filmagens e os ensaios do meu primeiro romance que foi filmado que é O Cheiro do Ralo. No caso do Cheiro do Ralo, o que me tocou é que eles não mudaram nenhum diálogo do livro e ver os atores materializando isso foi muito legal, ver que os meus diálogos funcionavam. Embora eu faça uma distinção entre quadrinhos e esses outros meios, tenho certeza que se o meu diálogo pode ter alguma eficiência é por causa dos quadrinhos. Porque o quadrinho é o balão. Você tem que sintetizar a história em balões e trabalhar isso, usar uma linguagem sempre coloquial, sem impostação, que flua com uma certa naturalidade. No teatro, foi como eles gostavam de chamar, um processo colaborativo, e infelizmente é um grupo comunista, como eu falava brincando. São anarquistas, não tinha liderança, e faltou uma liderança para que a coisa não desandasse. Muitas coisas eram mudadas, eu estava aberto a isso. Só que a gente se desentendeu num determinado ponto e eu me afastei. Quando voltei, tinham mudado demais. Durante um tempo eu acompanhei as mudanças, participei, e teve um momento em que eles pediram ajuda, eu disse que queria tirar o meu nome porque não reconhecia o meu trabalho ali. A gente chegou num meio termo. Quando fui assistir à peça, como as pessoas não me conhecem, eu podia ter um retorno imediato. É uma sensação interessante, para o bem e para o mal. Você vê o que funciona, o que não funciona, e essa coisa de trabalhar com personagens e com atores, você pode trocar uma idéia, não impor um personagem. Isso é legal, o ator vai querer saber a gênese de cada um deles. Eu tenho que me aprofundar muito mais no personagem para convencer esse ator, para que ele acredite e desenvolva esse personagem à sua maneira. Acho que essa experiência também é menos solitária do que escrever quadrinhos ou um livro. Esse convívio, essa troca, é muito estimulante. Essa coisa de poder ir apresentando o texto aos poucos, ou de uma vez. De repente, ver as primeiras leituras e aquilo tomando forma. É o que eu me questionava quando não estava envolvido com teatro: a questão do efêmero. A obra, o texto fica por quanto tempo quiser, mas aquela apresentação é única. E não só aquela temporada, cada dia é único. Você começa a ver várias vezes uma mesma peça porque escreveu e tem mais paciência. Começa a ver essa magia, aí você já está infectado (Risos). E o meu pai fez teatro uma época, tentou teatro.

MICHELLE NICIÉ – Era isso o que eu ia te perguntar agora. Se antes de você escrever o espetáculo, você já tinha tido algum contato com teatro?

LOURENÇO MUTARELLI – Eu tinha um contato. Infelizmente também, nos anos 80, eu andava com um grupo de amigos que eram todos de teatro. Eu ia muito em peças, mas isso me distanciou muito do teatro. Porque eles eram de uma geração onde o ator era sempre afetado. Isso me incomodava demais. De uns tempos pra cá, mudou bastante, pelo menos na postura. É mais tranqüila. Mas, sempre achei muito fascinante teatro. Nunca imaginei que iria escrever para teatro. Eu fazia quadrinhos porque quadrinhos ninguém cobra, não é nada, você faz o que você quiser. Quando fiz meu primeiro livro, falei: “Puxa, agora…”. Mas, também foi aceito. Para mim é um laboratório, não tenho grandes pretensões, tenho uma idéia, procuro desenvolver. Não vou dizer que não sei nada de teatro, sei quase nada. E gosto de saber só isso. Porque vou fazer o que eu compreendo. Aí, acabam dizendo que eu inovo, mas costumo dizer que tanto na literatura como no teatro eu não inovei, eu só não sei fazer. Quero experimentar idéias e trabalhar muito com teatro, dirigir e quero estar…

MICHELLE NICIÉ – Atuando?

LOURENÇO MUTARELLI – Agora sou ator (Risos). Fiz um curta, um longa e vou fazer outro agora. E foi curioso. Um cara me ligou da USP, ele tava com um roteiro de curta metragem. E aí eu falei: “Puxa ele vai querer ajuda no roteiro, e eu estou meio sem tempo”. Ele falou: “Não, eu queria te convidar para ser o protagonista”. Eu falei: “Olha é tão insólito o teu convite que eu vou aceitar”. Costumo dizer que é protagonista e galã. (Risos). E foi muito legal porque era uma época que eu tava trabalhando com o grupo e eles reclamavam porque diziam que alguns textos não funcionavam na hora de falar. Eu desconfiava disso. E aí eu falei: “Puxa, se eu agir no papel inverso, talvez eu entenda”. Foi uma das brincadeiras mais divertidas que já fiz. E quero fazer muito, mas em cinema. Teatro eu fiz, mas é difícil. Eu não tenho técnica nenhuma, não quero aprender técnica, mas precisa. Eu substituí um ator na peça, fiz duas apresentações, eles gostaram, eu me diverti muito, mas não pretendo fazer teatro como ator. Mas, fazer parte daquilo é muito legal, criar alguma coisa. E a dedicação desses atores em tentar construir aquele universo que você vislumbrou. Puxa, é tão emocionante você ver, é muito gratificante. É o meu hobby. (Risos).

MICHELLE NICIÉ – Fala um pouco como foi o seu encontro com a Companhia. Como é que foi o processo de ensaio?

LOURENÇO MUTARELLI – O encontro é curioso, eu tava esquecendo. Foi a primeira vez que fiz uma figuração num filme e era junto com o Donizeti, que é o diretor da peça. Eu não o conhecia, mas o pouco que a gente conversou, ele me ensinou tudo o que eu preciso para atuar: “Não atue, reaja”. A cena foi cortada do filme.

MICHELLE NICIÉ – Qual era o filme?

LOURENÇO MUTARELLI – Era o Nina, o filme que eu fiz as animações. A gente se conheceu, eu fui ver o Prêt-à-Porter que ele estava fazendo. Fiquei fascinado pelo trabalho, pela dedicação dele. Só que ele é autocrítico demais.

MICHELLE NICIÉ – Mas isso é normal no ator.

LOURENÇO MUTARELLI – É, mas acho que tem que dar a cara à tapa, se soltar, experimentar. Não precisa ser o melhor. Quero que ele seja meu alter-ego. Ele me procurou porque queria comprar O Cheiro do Ralo para montar no teatro. Só que eu já tinha vendido para o cinema. Então, ele começou a escolher alguma coisa do meu trabalho. Aí, eu falei: “Você não quer que eu escreva alguma coisa para o grupo? Eu conheço o grupo, vejo quantas pessoas, eu faço um scanner rápido das pessoas”. Eles ficaram meio assim e tal, eu insisti mais um pouco, eles me deram elementos que interessavam para que eu constituísse uma história. Era justamente a decadência do circo. Eles queriam um texto contemporâneo; a relação humana como é trabalhada no meu trabalho. A partir disso, desenvolveram cenas tipo Prêt-à-Porter em cima de histórias minhas. Eu ia ver, e depois comecei a apresentar o universo como eu pensava. Fomos desdobrando juntos. Sempre tento buscar em mim alguma sensação que vivi para construir a história. A partir de uma metáfora que eu me lembrei da minha infância, comecei a desenvolver o texto da peça.

MICHELLE NICIÉ – Como é que foram surgindo as cenas? Improvisação?

LOURENÇO MUTARELLI – Eu colocava muito no texto o que achava. Não no espaço, mas interiormente o que aquele momento era para cada um, principalmente até apresentar melhor os personagens. Não teve nenhuma conversa que eu participasse nesse sentido. Fiquei fora como espectador. O que determinou a peça também é que, em cima das cenas que eu escrevia, eles improvisavam. A partir do improviso, eu reescrevia a cena.

MICHELLE NICIÉ – Tem uma coisa do circo que você já falou, o desaparecimento do circo, que surge de diversas maneiras na cena: na disposição espacial dos atores, naquele movimento que lembra uma semi-arena, na questão cenográfica que lembra uma lona suja, com toda aquela sensação que você tem do circo, essa decadência mesmo. O circo está presente também nos personagens, em seus nomes, num determinado humor que se aproxima muito do patético. Eu queria que você falasse sobre isso e sobre uma certa tensão que senti no espetáculo, um clima de suspense que acho que está muito na questão dos lapsos de fala, ou seja, aquilo que os personagens não conseguem dizer ao outro.

LOURENÇO MUTARELLI – Um ponto importante da peça é que eu quis pegar pessoas que estavam num momento da vida, dos 30 em diante, em que tinham se esquecido qual era o sonho delas. Aquilo que falava o que você vai ser quando crescer. Ou não tinham atingido, mas não fazia mais diferença. Estavam num ponto que também não dava mais para resgatar isso. Agora é a vida, e é daqui para frente, não dá para mudar. É o momento em que para maioria, com exceção dos artistas, é o fim da fantasia. O circo que acaba também é esse circo interno deles. Essa coisa de continuar brincando, continuar levando um pouco menos a sério algumas coisas, ou de rir de coisas pequenas, não só do outro. Me incomoda muito, isso vem dos quadrinhos também, que o humor brasileiro, principalmente o humor nos quadrinhos, e em alguns programas humorísticos, é sempre o “rir do outro”. Sempre, é a “Vídeo Cacetada”: o cara cai, o cara é gordo, o cara é careca. As pessoas não têm espelho em casa. Eu acho que somos ridículos, o ser humano é patético, esse sempre foi o meu princípio. A gente tem que rir da gente, rir junto. Isso está no circo também. A figura do que eu reproduzo ali é do palhaço que diz que a maquiagem serve para ele preservar o mínimo do amor próprio, a dignidade. Embora a gente ria do palhaço no circo ou de qualquer outra situação, é um jogo agressivo. Tanto a nossa relação com a arena quanto à reação do palhaço com a gente é agressiva. O palhaço tem isso, a fantasia é para que a gente não perceba o quanto ele é a gente. Aí causa um riso nervoso. Coisas que são meio veladas, na peça tem muito isso, “o que não é dito”. Eu passava muito para os atores “o que não era dito”. Mandei blocos de texto dizendo o que ele estava calando em alguns momentos, como eu via, como eu sugeria.

MICHELLE NICIÉ – É como se fosse um subtexto?

LOURENÇO MUTARELLI – É um subtexto. Era para eles aprofundarem os personagens com alguma gênese, algo interno deles. A tensão também é que a gente está falando na peça de um terceiro circo. O mais macabro de todos, perverso. O circo religioso. A coisa do palhaço que diz “se fosse Jesus, eu salvaria as pessoas”. A Igreja é um imenso circo. É um circo mais luxuoso, tem a parafernália, a indumentária, a desumanização, as figuras e os ícones. Esse momento que eles estão vivendo é também o fim desse circo. Através da reflexão da vida de cada um, do social, dos sonhos. Nem os sonhos infantis eles conseguem sustentar. A religião está muito defasada do nosso mundo, das coisas que a gente acredita. A religião sempre foi contra os sábios, contra as pessoas que se instruíam. O mundo hoje é muito cheio de informação, a Igreja ficou retrógrada e os homens nunca foram tão pagãos. Esse circo que não se sustenta mais reflete um peso nesse sentido.

MICHELLE NICIÉ – Quais as maiores diferenças que você pode perceber na criação de um “personagem de papel” e na criação de um personagem para o ator?

LOURENÇO MUTARELLI – O que eu percebo, que é óbvio, mas de qualquer forma, foi a primeira vez que eu vivi é que por mais que eu observe, eu tenho a minha visão de mundo. Os vários personagens dos meus livros não são multifacetados. Mas, se tornam no teatro porque entram as questões, a visão de mundo do ator. Nós não tivemos nenhuma grande divergência sobre o que estava sendo feito. Isso ajudou a multifacetar o personagem, tornar ele mais rico. Isso é muito diferente. O autor chega num ponto e se pergunta: Quem é o autor? Porque o ator cede muita coisa, traz coisas. É muito tocante, é como vivenciar um pensamento, uma coisa que não tem aquela força, aquela forma. Acho que eles potencializam. Para o autor, quando isso acontece, é um presente.

MICHELLE NICIÉ – São visíveis as diferenças entre o seu espetáculo e os outros espetáculos que estou pesquisando, que são Drácula e Outros vampiros, do Antunes Filho.

LOURENÇO MUTARELLI – Eu não vi o Drácula.

MICHELLE NICIÉ – Pessoas Invisíveis, do Paulo de Moraes.

LOURENÇO MUTARELLI – Também não vi.

MICHELLE NICIÉ – Tinha uma inspiração no universo do Will Eisner. E Avenida Dropsie do Felipe Hirsch você disse que viu. São espetáculos muito diferentes, e especificamente, o seu. Uma dessas particularidades pode ser observada no ritmo da cena, no domínio do tempo. No espetáculo de vocês não me pareceu que houvesse uma intenção de experimentar na cena um ritmo que se aproximasse dos quadrinhos. Porque você abriu mão de um caminho que talvez fosse mais simples pela sua experiência? Porque o espetáculo pode dar uma sensação de um tempo que se estende, que se arrasta, pesado, como se ele próprio ganhasse carne, fosse uma presença, um personagem?

LOURENÇO MUTARELLI – Quadrinho é arte seqüencial. Eu trabalho o tempo nos meus quadrinhos. Tenho silêncios, sempre trabalhei o tempo porque talvez seja uma das questões que mais me fascina. Gosto da dilatação, da agonia, da aflição, do peso do tempo. Abri mão porque já tinha me convidado para fazer o texto e depois tiveram problemas de ego, de pequenos poderes, e eu não estava a fim de entrar nesse tipo de coisa, queria brincar. Me coloquei nesse lugar, assisti aos ensaios, e me deu vontade de dirigir justamente por isso. Quando escrevo, não sei se por trabalhar com quadrinhos, vejo a cena. Escrevo vendo o palco, os atores. Você vê a direção quebrando a cabeça numa coisa que é tão simples. Acho que simplifica o autor dirigir e a direção é, mais ou menos, o que talvez eu viesse fazendo, conversas, trocas, uma visão um pouco mais distanciada para ver o conjunto, harmonizar. É isso que eu quero fazer. Talvez eles tenham sentido no meu trabalho a relação do tempo, não sei, ou se foi uma coisa que aconteceu. Mas, eu sempre gosto muito que o tempo exista, esteja presente.

MICHELLE NICIÉ – Vamos falar um pouco sobre Caixa de Areia. No álbum, o teatro, o jogo teatral, os limites entre realidade e ilusão, as noções de falsificação, simulação, fabulação, estão muito presentes. Acho que são até fundamentais para o desenvolvimento da narrativa. Você observa na sua escrita gráfica uma mudança depois dessa experiência com o teatro?

LOURENÇO MUTARELLI – Eu já tinha começado a fazer A Caixa de Areia antes do teatro. Mas, sempre pensei no teatro quando faço quadrinhos, sempre pensei que são personagens atuando. É bem evidente uma referência ao Beckett. Esperando Godot é uma peça que vi algumas vezes. Uma montagem pior do que a outra, mas é um texto maravilhoso. Adoro ler Beckett. Às vezes, gosto mais de ler do que de ver, por infelizes montagens. Antes da Caixa de Areia eu estava lendo alguns textos teatrais. Acabei conseguindo a obra completa do Ionesco. Eu conhecia só A Cantora Careca e Os Rinocerontes, tinha lido há muito tempo, tinha uma visão do absurdo como uma coisa engraçada. O Ionesco muita gente vê como comédia. Mas se você pega a obra completa e começa a ler, é assustador. É próximo do Beckett. É um absurdo que não é tão absurdo. Eu quis partir desse conceito que é uma coisa que eu venho percebendo que o presente muda o passado. É o meu trabalho mais leve de quadrinhos. Eu queria fazer uma história infantil, era a idéia inicial. Queria trabalhar ao máximo a minha suavidade, trabalhar com delicadeza assuntos, questões que são difíceis e pesadas, mas sem rancor. Os meus primeiros trabalhos eram muito rancorosos, muito juvenis. Aquela coisa de quando a gente quer tanto se expressar e só grita, não se comunica.

MICHELLE NICIÉ – Porque falar do patético e do precário da condição humana te interessa tanto?  Lourenço – Me fascina o patético porque todos somos ridículos. Eu cito sempre um amigo que começou a ficar careca junto comigo e antes da gente sair ele ficava uma hora arrumando, fazendo um entrelaçamento assim no espelho (Faz o gesto). Ele se olhava, saía na rua, e o primeiro vento… A gente sempre se imagina como se vê no espelho, com a pose, mas é preciso se desarmar disso. O patético é para que a gente possa se ver de uma maneira menos superficial. Somos patéticos. Acho que é a única maneira da gente tentar se olhar no espelho sem fazer força. Eu sou isso, e isso não é ruim. Ser patético, ou ser ridículo, isso tira um monte de peso da gente, liberta.

MICHELLE NICIÉ – E qual a relação entre vazio e invenção?

LOURENÇO MUTARELLI – Acho que em A Caixa de Areia, os personagens tentam cobrir aquele vazio, inventando. O vazio talvez seja insuportável. Alguém disse uma frase sobre o Barroco, não lembro quem, mas, dizia que o Barroco era uma tentativa de cobrir o vazio. Você vai enchendo de detalhes para que não haja o vazio. A gente faz muito isso. O vazio é a não-vida, é o nada, é o ser e o não ser. Então, acho que o Carlton (esse é o nome de um personagem que aparece no álbum A Caixa de Areia) inventava histórias para que eles não tivessem que suportar aquele deserto. Embora, eu adore histórias que não são meras fugas ou alegorias para distanciar a gente. Gosto de histórias que façam com que a gente perceba ou reflita sobre esse vazio.

MICHELLE NICIÉ – Você disse que está escrevendo um novo espetáculo. É esse que você está dirigindo?

LOURENÇO MUTARELLI – Vou dirigir.

MICHELLE NICIÉ – Você falou também que tem vontade de aproximar mais quadrinhos e teatro.

LOURENÇO MUTARELLI – Pelo menos tentar aproximar mais essa freqüência de quando eu crio. Eu quero fazer isso que você tinha comentado. Já que eu vou dirigir, vou ter mais liberdade nesse sentido, quero fazer alguns esboços simples de como eu vejo algumas coisas.

MICHELLE NICIÉ – Você quer usar isso no processo também?

LOURENÇO MUTARELLI – Sim. Quero fazer um desenho para dizer: eu vejo mais ou menos dessa forma, como você vê? Nessa peça, o ator vai fazer dois personagens e a atriz vai fazer um. Quero que eles componham o figurino. Porque em O que você foi quando era criança?, quando eles estavam desenvolvendo os personagens, achei infinitamente mais rico do que o que foi feito pela figurinista. Porque o figurinista é um ser de fora que vai vir com um monte de conceito estético, e não é esse o caminho. Quero fazer um espetáculo mínimo que possa viajar sem muitos gastos. No cenário de O que você foi quando era criança?, eles gastaram mais dinheiro transportando o cenário pelo interior para viajar do que receberam. Quero que volte o pouco dinheiro que entra para os atores. Fico com a porcentagem mínima de bilheteria. O meu trabalho eu vou fazer aqui em casa, à noite. Vou fazer como um hobby mesmo. Posso desenhar um cenário extremamente elaborado, mas se o cenário vai aparecer muitas vezes, de muitos ângulos, vou simplificar. Acho injusto porque tem algumas pessoas nesse entremeio que levam mais do que os atores. Eu quero cortar essas coisas. Porque esse é o problema de Avenida Dropsie. Onde estão os atores? Quase somem. E atores legais e uma história tão boa que está num liquidificador com um monte de outras. Quando começa é um espetáculo, quase um show de mágica, mas depois não segura. Porque? Porque eles são pequenos. Eu não preciso de tanta coisa para te levar para um outro lugar. Toda aquela parafernália é fácil. Chove. Mas pode chover sem água. Tanta coisa pode acontecer. Essa é a magia, te transportar com o mínimo. E acho que aí vem uma grande emoção. Eu quero isso.

Notas:

[i] O espetáculo O que você foi quando era criança? foi desenvolvido num processo colaborativo entre Lourenço Mutarelli e a Cia da Mentira. A partir do tema mutarelliano da “decadência do circo”, os atores criaram cenas que tinham como base metodológica o ciclo de espetáculos Pret-à-Porter, de Antunes Filho. Do diálogo entre os improvisos dos atores, o universo das histórias gráficas de Mutarelli e da observação do autor nos ensaios do grupo, deu-se à criação do espetáculo. Os atores da Cia da Mentira integraram o Centro de Pesquisa Teatral – CPT, coordenado por Antunes Filho, de 1998 a 2003. A idéia fundamental da Cia da Mentira é dar prosseguimento à pesquisa iniciada no CPT, principalmente com o projeto Pret-à-Porter, no qual o ator é a peça chave do processo de criação. Desse modo, a companhia desenvolve uma metodologia a partir de técnicas de improvisação e do estudo de técnicas dramatúrgicas, com o intuito de criar uma “dramaturgia do ator”.

[ii] O texto foi publicado recentemente no livro O Teatro de Sombras, uma coletânea com várias peças de Lourenço Mutarelli, editada pela Devir.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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