Corações dentro do gabinete

Notas sobre Nica, de Elisa Band

23 de outubro de 2023 Críticas

Nica é um espetáculo de elogio à nossa atenção à vida, à nossa atenção ao mundo, ao nosso afeto ao que existe, existiu ou existirá de mais perto ou mais longe de nós. A definição do espetáculo, deliberadamente despreocupado com sua definição, veleja sobre caldas misturadas de peça-conferência, autorrepresentação, memórias compartilhadas e performances poéticas de cena, sons, músicas e textos.

A peça, diz no palco a atriz-performer-autora-personagem-ser viva, é para celebrar a vida. É dessa forma que Elisa Band tece sua dramaturgia, costurando em seda dados científicos, dados médicos, taxonômicos, cartográficos, literários, suas paixões por coleções, procedimentos de saúde pelos quais sua mãe se submeteu etc. No início, no fim e no meio, cita-se diversas vezes, como um lastro, metafórica ou literalmente, o músculo central das coisas: o coração (do da baleia azul ao da mãe submetido à cirurgia cardíaca).

No centro da cena – ou “do peito” da cena – uma escrivaninha, um gaveteiro que contém as possibilidades de mundo, as coleções guardadas da performer em seu desejo em ter um gabinete de curiosidades. São arquivos de insignificâncias sanguíneas que dão mais sentido à vida, como mapas (quem não os ama?), anotações sobre literatura, sobre anatomia, sobre invertebrados, sobre palavras atraentes ou o que mais quisermos preencher numa gaveta que ainda poderia ser aberta.

Em passo comum com modalidades contemporâneas das artes da cena, Nica não se preocupa com começo, meio e fim. Sua construção rizomática e sua não-dramaticidade (no sentido consagrado da ação ficcional, personagens, tempo e espaço, conflito dramático) faz-nos imaginar que a peça poderia continuar indefinidamente. E também poderia ter começado desde sempre, como objetos coletados por um colecionador atemporal.

Natália Macchiavelli, Elisa Band e Gilda Nomacce em Nica. Foto: Karina Bacchi.
Natália Machiavelli, Elisa Band e Gilda Nomacce em Nica. Foto: Karina Bacchi.

 

Nica dispensa a busca por encadeamentos narrativos tradicionais, não é necessário – como a vida. Tudo que vive – e tudo que não vive, mas existe – tem lógica, a lógica simples da complexa existência. Mas, na dramaturgia do espetáculo, isso não significa desorganização nem aleatoriedade: percebe-se a estruturada trama de palavras em todo o texto, ideias justapostas com cuidadosa liberdade, porém mais como jogo do que como história a ser contada. E o que é dito se “incompleta” com naturalidade nas atitudes cênicas, desviando-se de demandas por relações intrínsecas entre o texto proferido e sua representação para o público. É assim que o corpo do espetáculo adquire des-contornos espontaneamente borrados, um corpo que catalografa órgãos heterogêneos de significados. Verbalizando uma enciclopédia particular, Elisa magnetiza as ideias e as coisas que elas representam para atraí-las até si, em espécie de gravidade lunar, onde, próximas umas das outras, as ideias levitam, e a epistemologia da existência é girada em baixa rotação, pois não é o choque, mas a coexistência das ideias que regula o bom batimento cardíaco da peça (do mundo?), compassado em ludicidade e poesia. Este jazz verbal controlado nos toca, nos captura para um recreio cognitivo, e, concomitantemente, para pensarmos em nosso próprio gabinete de conceitos, lembranças, curiosidades. Ao juntar o coração de uma baleia ao coração de um beija-flor, ao coração de sua mãe, a peles secas de escorpiões, ao perímetro geográfico sujeito a terremotos, à Medusa, ao centauro de Harry Potter, Nica opera em cima de princípios performativos de atos de fala, embaralhando sua gramática com aspiração a universalidades.

É possível também entrever que notações do processo de construção da peça sejam vez ou outra mencionadas na dramaturgia, conjugando-a com outra categoria de composição das artes cênicas muito atual, em que o processo se reivindica como a obra. A certa altura, Elisa agradece aos partícipes do espetáculo, não apenas aos parceiros criativos, mas aos objetos que conviveram com eles na etapa de criação, e antes disso, aos seres ou objetos que deram origem a estes objetos, como as folhas dos cadernos de anotações que, antes de serem cadernos, foram um dia floresta. Ou as ovelhas, cujas lãs tosquiadas permitiram as peças de roupas que estaríamos vestindo no momento da encenação. Há sentido no existir, em estarmos naquele lugar assistindo àquele espetáculo. E se duvidarmos do sentido, temos a liberdade de juntarmos nossas peças, histórias, vocabulários, raciocínios, fragmentos de lembranças e performatizá-los para esta finalidade. É o que Nica se (nos) propõe.

Com sua delicadeza performativa, todas estas elaborações dramatúrgicas de Elisa, parceiras (Gilda Nomacce e Natália Machiavelli) e parceiro de cena (Peri Pane, autor da trilha sonora original) nos levam a sentir vontade de um bem-estar mais duradouro conosco mesmos, com o interior de nossos corpos, com quem ou o que está ao nosso redor, com o interior dos corpos de qualquer coisa. Adquirirmos o hábito e o habitat dos corações.

O elenco de Nica. foto: Karina Bacchi.
O elenco de Nica. foto: Karina Bacchi.

Alessandro Toller é dramaturgo e professor de literatura dramática. Formou-se em dramaturgia na Escola Livre de Teatro de Santo André e foi artista docente na SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco. É mestrando em Teoria Literária e Literatura Comparada.

Informações sobre o espetáculo: https://su.art.br/projetos/nica/

Vol. XV nº 74, outubro a dezembro de 2023

Foto em destaque: Karina Bacchi.

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