Do livro ao palco

Crítica da peça O natimorto

15 de dezembro de 2008 Críticas
Atores: Nilton Bicudo e Maria Manoella. Foto: Lenise Pinheiro.

A produção paulista O natimorto, adaptação do romance de Lourenço Mutarelli feita por Mario Bortolotto – que também assina a direção – veio fazer temporada no Rio de Janeiro, assim como as peças Vaca de nariz sutil, texto de Campos de Carvalho encenado pelos Parlapatões, e Hotel Lancaster, texto de Bortolotto dirigido por Marcos Loureiro. Vaca de nariz sutil encontrou seu lugar no Teatro Poeira, palco de estréia de outro romance de Campos de Carvalho, O Púcaro búlgaro, encenado em 2006. Já Hotel Lancaster foi inserido na programação da Sala Multiuso do SESC, espaço que acolhe, vez por outra, espetáculos pouco convencionais. Até aqui, é possível ver uma combinação de situações favoráveis para a vinda destas três peças de São Paulo para o Rio. No entanto, O Natimorto veio fazer temporada no Teatro do Leblon, que não parece ter o perfil do espetáculo.

O natimorto estaria mais bem inserido no circuito carioca se estivesse em cartaz no Espaço Cultural Sergio Porto, ou no Teatro do Jockey, por exemplo, em espaços em que o ingresso é mais acessível e que costumam receber um público mais jovem, menos focado numa idéia de “qualidade” que não parece fazer parte da proposta desse espetáculo. Questiono, portanto, se a peça encontrou seu público aqui no Rio. Quando assisti, tinha mais ou menos dez pessoas na platéia, num teatro de mais de 400 lugares. Esse é um dado que influencia a recepção do espetáculo de modo pouco favorável.

Logo no início, na cena que envolve os três personagens da peça – o Agente (Nilton Bicudo), sua mulher (Martha Nowill) e a Voz (Maria Manoella) – é possível perceber que o registro de atuação de Martha Nowill, que parecia buscar uma comicidade imediata, não se encaixava bem naquele teatro vazio. Seus gestos e sua forma de modular a voz previam o riso que acontece quando o teatro está cheio ou quando há uma atmosfera de descontração e familiaridade entre os atores e o público. A cena pareceu deslocada, como se fosse um número à parte, esteticamente desconectado do resto da peça, embora tenha ficado clara a sua importância para a trama.

A peça mostra o encontro entre uma cantora e seu agente. Ela tem uma voz tão pura, que os ouvidos de um ser humano comum não são capazes de escutá-la, ou seja, ela canta sem emitir nenhum som. A Voz está visitando a cidade, pois o Agente vai apresentá-la ao Maestro. Na noite em que A voz chega, eles vão jantar na casa do Agente. A mulher, depois de insistir para a Voz cantar, fica revoltada quando descobre a particularidade da “voz da pureza”. O casal briga e o Agente leva a Voz para um quarto de hotel. Ele propõe que eles fiquem ali confinados por tempo indeterminado. Ela não aceita a princípio, mas eles chegam a um acordo que determina que ela pode sair quando quiser, mas que ele não tem a intenção de fazer a mesma coisa. Ao longo do espetáculo, vemos uma sucessão de cenas em que ele está sempre no quarto, enquanto ela entra e sai, trazendo maços de cigarros e notícias sobre o que acontece com a sua vida, especialmente sobre os encontros com o Maestro. Cada maço de cigarros traz uma imagem que, segundo o Agente, determina o destino daquele dia, como se fosse uma carta de tarô.

De início, Nilton Bicudo e Maria Manoella têm atuações equilibradas entre si e os diálogos iniciais despertam o interesse. É de fato curiosa a analogia que o Agente faz entre as imagens da campanha antitabagista nos maços de cigarros com as cartas do tarô, em especial a interpretação que ele apresenta para a imagem que dá origem ao título da peça. A teoria desse personagem sobre o natimorto é de uma beleza incômoda: “Ele representa a vida vencendo qualquer obstáculo. Apesar de muito doente ele nasceu. (…) Mesmo que um bebê nasça morto nós consideramos o seu nascimento. (…) Viveu uma vida intra-uterina. Para morrer, é preciso viver. (…) Isso é sublime. Ele tornou mãe a mulher que o pariu. E ela sempre dirá: meu filho “nasceu” morto. Isso o torna um ser superior, quase santo. Viveu sem macular-se do mundo. Pulou uma passagem de sofrimento e desilusão. Foi da não existência para a não existência protegido no interior de sua mãe. Puro.”

Ao longo do espetáculo, Nilton Bicudo encontra um bom caminho na atuação que vai assumindo traços mais firmes e cores mais intensas, solução que não funciona tão bem para Maria Manoella. Na cena final, percebemos que a opção por carregar nas tintas teve resultados diferentes para cada um dos dois. A trajetória interna do personagem de Nilton Bicudo fica mais definida, enquanto a personagem de Maria Manoella é retratada de forma mais bidimensional.

No romance de Mutarelli, há uma progressão da solidão do Agente que se expressa nas suas falas cada vez mais longas. Talvez seja possível dizer que há um momento, quando ele faz o percurso por todas as cartas do tarô, em que sua introspecção se torna irreversível. É como se o universo interior desse personagem fosse crescendo na história de modo que o confinamento em si mesmo se tornasse ainda mais opressor que o confinamento no quarto do hotel. Na encenação, que suprime essas longas falas, há uma inquietação crescente, que se expressa numa acentuação do histrionismo na atuação, especialmente de Nilton Bicudo. Acredito que essa seja uma opção que prioriza o que é mais comumente entendido como eficaz para uma adaptação de um texto literário para o teatro: priorizar diálogos, tornar a trama mais ágil, materializar o que é pensamento em algo visível, perceptível. Mas o que se ganha em dinamicidade se perde em conteúdo. O que no texto é a opressão do pensamento do personagem, por exemplo, no palco se traduz em uma trilha sonora com volume excessivo, como se o público tivesse que sentir um incômodo físico para entender o que se passa com o personagem.

São escolhas que não dão muito espaço para a fruição da dimensão poética da história. A narrativa está lá, mas concentrada numa idéia de ação que dispensa a reflexão. Os improváveis personagens de Mutarelli são apresentados apenas como pessoas esquisitas. Em vez de vermos dois personagens afundando nas suas características mais íntimas, vemos dois personagens ficando loucos – algo bem menos complexo e sofisticado do que o sugerido no romance.

Não acho que seja função da crítica policiar adaptações de textos literários para o palco. Mas no caso dessa peça, o espetáculo desperta a curiosidade do espectador para a leitura do romance na medida em que há algo no desenrolar da trama que parece um pouco esvaziado. A subjetividade dos personagens não parece receber atenção suficiente. A leitura do romance, nesse caso, pode contribuir para uma melhor fruição da peça, para um entendimento mais profundo da humanidade daqueles personagens. Além disso, a discussão sobre a transposição para a cena é válida quando traz à tona que o que se pensa sobre adaptação para teatro está tão quase sempre preso às idéias de ação, diálogo, agilidade, dinamicidade – e que isso não necessariamente torna a cena mais interessante.

Vol. I, nº 10, dezembro de 2008

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